segunda-feira, 12 de janeiro de 2009




Rio importou sem
conhecimento de causa
a favela de Euclides


“e as linhas do telégrafo transmitiram ao país inteiro o prelúdio da guerra sertaneja... –
in Os Sertões, de Euclides da Cunha



Antes de distribuir o elenco do “drama histórico de Canudos”, como passou às páginas de Os Sertões, o que ficou da ação militar de uma república que mal entrara na puberdade, aos sete anos contados da deposição de Dom Pedro II, sobre a comunidade que encontrara em Antonio Vicente Mendes Maciel, por codinome Antonio Conselheiro, um guia espiritual bem acabado porque comprometido com o interesse social, Euclides da Cunha esgota conhecimentos universais da época no campo de estudo do objeto-síntese da tríade A Terra, O Homem, A Luta, qual seja o Homem encerrado ou localizado ou projetado num certo meio.
E o fez com aguda percepção dos fatos, das coisas à volta; o tônus de uma análise crítico-descritivo-comparativa e de procura da base da qual pudesse, senão resolver ele mesmo, pelo menos tornar solúvel para o futuro aquilo que logo lhe pareceu estranha porém fascinante equação – superada por Conselheiro e sua gente.
Uma equação com as variáveis revestida de rara simbologia e que Euclides teve o cuidado de não desnudar por entender, talvez, que se procedesse na dupla e estrita condição de engenheiro e militar estaria nesse particular como lhe reduzindo a frias expressões algébricas.
Optou pelo cotejo de teorias diversas, desprezando de imediato, por exemplo, a sustentada por alguns pensadores, ou autores, que dissociava o Homem do meio físico. Euclides já havia notado uma relação muito íntima entre os elementos físicos e os propriamente humanos em toda a complexão da espécie.
Dessa interrelação biofísica ele tirou deduções bem próximas do que não tardaria por consagrar-se como princípio pavloviano das conexões temporais. Não que o embalasse qualquer outro propósito que não fosse o de valer-se de fontes, a seu ver, idôneas, de conhecimentos gerais, do início do século (XX), para a descrição honesta e, nesta linha irrepreensível de tipos e de cenas da campanha, sobretudo da resistência de Canudos, porém Euclides da Cunha municiou-se de tal modo que se poderia até vê-lo apoiado à pirâmide Descartes-Darwin-Pavlov e suas ramificações disciplinares.
Uma delas a etnológica, em que repousa uma das partes mais sensíveis mas nem por isso vulnerável de sua obra maior como pretende, já em nosso tempo, fazer crer uma corrente de intertextualistas por excelência e no geral contra o pensamento político-ideológico do autor de Os Sertões.- a correr cristalino em Contrastes e Confrontos, pequeno e substancioso volume de ensaios praticamente condenado às traças: explica-o sobremaneira o fato de num desses ensaios – Um Velho Problema - Euclides tratar a questão social, que desde Pitágoras e Platão, como observou, vinha agitando os espíritos, voltado para o princípio da “socialização dos meios de produção e circulação”
Às primeiras luzes do século XX ele escrevia: “Assim ela (a questão em pauta) chegou até meados do último século - até Karl Marx - pois foi, realmente, com este inflexível adversário de Proudhom que o socialismo científico começou a usar uma linguagem firme, compreensível e positiva (...) A fonte única da produção e do seu corolário imediato, o valor, é o trabalho. Nem a terra, nem as máquinas, nem o capital, ainda coligados, as produzem sem o braço do operário. Daí uma conclusão irredutível: a riqueza produzida deve pertencer toda aos que trabalham. E um conceito dedutivo: o capital é uma espoliação. (...) A exploração capitalista é assombrosamente clara, colocando o trabalhador num nível inferior ao da máquina”.
Euclides da Cunha foi o introdutor no tecido cultural brasileiro do que hoje se designa como ”visão dialética do Homem e da Natureza”: o marxismo, que tem em apenso o lenilismo, ambos indissociáveis. E é bem provável deverem-se especialmente a ter Euclides seguido a carreira das Armas as manifestações sistematizadas, já sobre seus ossos, de cevados, uns, e esquálidos, outros, opositores das ideias que ele defendia neste compartimento das ciências sociais. O alvo visível, entretanto, não são essas ideias e sim aquelas do âmago da antropologia cultural, ou social.
Não é atoa que, vez e outra, são lançados dardos sobre quem quer que ouse aprofundar o bloco - A Luta – que fecha a trilogia sarmientiana, enquanto nas fundações, quando não, sobre o próprio Euclides nas suas reflexões em torno do complicado processo de definição e/ou de identificação do conjunto interracial brasileiro. E aprofundá-lo sem perder de vista “um velho problema” cujas raízes Euclides arrancou com a impetuosidade do cadete 308, que atirara aos pés do ministro da Guerra, conselheiro Tomás Coelho, em 1888, o sabre da monarquia com a metodologia do engenheiro e o descortino do jornalista, de um mergulho na ordem socioeconômico-jurídica, de uma Borgonha com o “direito de roubo” firmado por São Tomás de Aquino, para os espoliados, em razão do delitum legale, dos espoliadores, assim rconhecida a prática de vida de relação destes com aqueles, piedosamente, nada além do sentimento, por doutores das leis da Idade Média.
São leis que, em essência, romperam séculos e séculos até chegarem aos nossos dias intactas nos fundamentos, a ponto de terem produzido nos países de economia capitalista a singularíssima dicotomia, aparentemente descabída pelo insólito da progressão, sociedade desorganizada-marginalidade organizada.
É o progresso embasado na dissimetria (para o lado dos oprimidos, fatalista), peculiar ao império, à ditadura do capital, e sobreposto àquele que Euclides da Cunha, digna e lucidamente, perseguia, mas levando-se em conta a contemporaneidade de suas colocações primaciais, feitas acima de tudo pelo contacto direto e detalhista com desníveis localizados de uma civilização que não deixava de ser a do homo americanus, não lhe seriam de espantar, acredita-se, episódios como a guerra de quadrilhas – ferindo-se, hoje, na Favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, a maior do mundo, se não da América Latina, com 250 mil habitantes (recenseados até por volta de 1980).
Tirante o fato de esse confronto de facções assentar-se no tóxico – consumido dentro da sociedade, historicamente, outrora organizada, em termos, constata-se no episódio da Rocinha uma reprodução moderna ou, para sermos exatos, uma projeção desfigurada do de Canudos.
O Rio importou a favela de Euclides sem conhecimento de causa. Os esconsos da favela de Antônio Conselheiro, o Arraial de Bom Jesus, antiga fazenda de gado do sertão da Bahia, ao abandono, tomada por retirantes de várias partes do Norte e do Nordeste do Brasil, que interpretavam a política de impostos da república nascente como emenda pior que o soneto no original monárquico. E a opção pela justiça divina, visto que a social, terrena, se traduzia, ao parecer deles, - conduzidos pela logística messiânica do Conselheiro – por permanência do statu quo senhorial, arrastava levas, também, de bandoleiros, de pistoleiros da marca e sanha dos irmãos Chiquinho e João da Mota “aos quais estava entregue o comando dos piquetes vigilantes nas entradas de Cocorobó e Uáuá”, ou de Pedrão “cafuz entroncado e bruto, que com trinta homens escolhidos guardava as vertentes da Cana-Brava”, ou de Estêvão, guarda do Cambaio, “ negro reforçado, disforme, corpo tatuado a bala e a faca, que lograra vingar centenas de conflitos graças à desvulnerabilidade rara”.
Sim, a Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, aqui entendida como expressão-vítima do modelo econômico imperante no Brasil, extensivamente na quase totalidade da América Latina, adotou a favela euclidiana sem o menor conhecimento de causa. Todavia, com todos os vícios de que ela se impregnou ao correr dos anos no chapadão carioca, o efeito preocupa muito mais as classes dominantes do que as dominadas a nível nacional. E isto impõe estudo em separado.
Daí a mais viva atualidade da obra de Euclides da Cunha, que não pára em Os Sertões, tendo ele advertido em Contrastes e Confrontos que, “as catástrofes sociais, só podem provocá-las as próprias classes dominantes, as tímidas classes conservadoras, opondo-se à marcha das reformas – como a barragem contraposta a uma corrente tranquila pode gerar a inundação”.
Apegado a ideias expressas com a convicção do antimonarquista que não poupou tintas contra o massacre republicano de uma convergência de forças errantes que iam do jagunço ao simples homem do sertão, Euclides ardia por tocar o fio da meada que o levasse ao homo brasilianus - a seu ver, em princípio, inalcançável, ou difícil de alcançar, no tempo e no espaço.
Vislumbrou-o por instantes, contudo, na ordem, para ele notável, na fibra e na disciplina dos jagunços arranchados em Canudos: “Imaginemos que dentro do arcabouço titânico do vaqueiro estale de súbito a vibratividade incomparável do bandeirante. Teremos o jagunço. É um produto histórico expressivo. Nascendo de cruzamento tardio entre colaterais, que o meio físico já diversificara, resume os atributos essenciais de uns e outros – na atividade bifronte que oscila, hoje, das vaquejadas trabalhosas às incursões dos quadrilheiros”.
Toda aquela companhia – de guerrilheiros das caatingas – defendeu até à última gota de sangue cada degrau para o Céu anunciado por Antônio Conselheiro. E quem garante que o Céu de Conselheiro não estava sendo construído lá mesmo, às margens do rio Vasa-Barris para o alto da Serra de Monte Santo?...





* Publicado originalmente no Correio do Ilac, nº 5, 1987; revisto pelo autor, Fernando Henriques Gonçalves – presidente do Instituto Latino-Americano de Cultura