quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Algumas cenas



1. As irmãs

Cearense típica do agreste, Ana Guerra comprara uma casa na Baixada Fluminense, pelos lados de São João de Meriti, já encontrando como inquilino um gato e sem que lhe faltasse companheira à meia luz
Surge a ninhada. Chamam a atenção de Ana Guerra dois filhotes branquinhos, os olhos de uma perfeição aureolada a pincel de um Leonardo Da Vinci. Passasse alguém perguntando quanto era cada filhote, respondia invariavelmente com toda firmeza: “Nenhum deles está à venda”. Consigo mesma, murmurava: “Muito menos as duas irmãs; o tempo da escravidão já passou, as sinhás que aguardem uma outra oportunidade...”
Finalmente, entra em contato conosco em Niterói, após pensar maduramente a quem deveria confiar aquelas gatas, pois queria garantir um bom futuro para elas, sem vassourada, na certeza de que teriam um tratamento de seres da Natureza. Assim, ajeitou-as numa confortável gaiola e as trouxe.
“Por que duas?”, pergunto. E Ana Guerra: “Uma fará companhia à outra” Recomendou-nos que pingássemos, somente aquela vez, à chegada, um colírio nas gatas, uma gota em cada vista. Pinguei o colírio de euphrasia."Tanto faz... - disse ela. Pusemos, depois, no
chão dois pires com leite para as irmãs, que acabaram se lambendo, uma lambendo a outra.
E uma passou a se chamar Shana; a outra, Meg.
Não havia como não distinguir uma da outra, porque Shana ganhava corpo, crescendo mais que Meg, que se mantinha delgada, levando, às vezes, uns cascudos da irmã, da mesma idade, para que tomasse tenência, a fim de que seguisse franciscanamente as normas que o novo ambiente impunha. Uma vez, Meg resolveu aventurar-se a um – ainda bem que – breve passeio pelo telhado. Em baixo, ao vê-la seguir em frente, gritei: “Meg! Meg!”. Ela virou-se e me olhou longamente. Então, recuei para trás de uma parede como se a deixasse fazer o que quisesse.. Não demorou, sem que eu a visse descer, ali estava ela, de novo, ao meu lado. Não faça mais isto! - a repreendi. Não sei se ouviu, ou entendeu. O facto é que nunca mais repetiu a aventura de pisar no que chamam aí fora de mundo-cão.
Falece minha primeira mulher e as gatas ajudaram-me a superar o vazio. Ao fim do dia saía minha empregada, eu voltando à noite do trabalho, Shana e Meg sempre à minha espera. Se eu ficasse até mais tarde escrevendo no computador, as duas logo puxavam minhas calças como avisando-me: “É hora de ir dormir".
E eu obedecia.
Caso-me de novo e minha nova mulher toma a frente das obras de reforma do prédio construído com óleo de baleia segundo os mais antigos do Ponto Cem Réis de Santana, as quais de há muito eu vinha adiando. Chega o Pom, o gato deixado por minha mulher em sua residência no Rio. Ela soubera que o Pom andava muito caído, doente, e que, segundo o seu veterinário, se ela o conservasse no Rio o gato acabaria morrendo de tédio. Em Niterói, Dra. Maria da Glória e seu marido, também veterinário, Dr. Murad, fizeram um tratamento intensivo no Pom e ele se restabelece, inclusive após a extração de cinco dentes. E vem Bellynha, escolhida de uma ninhada que alguém largara dentro de uma caixa de sapatos à porta de casa, tendo os demais filhotes sido distribuídos via Internet a vários interessados, por doação. Completara-se a família felina, Bellynha a juntar cacarecos a um canto da casa para brincar à noite. Ah! Quanto a Shana e a Meg, Ana Guerra presume serem elas da raça ou descendência angorá, devido ao pêlo farto.


2.Água do Paraíba

Espalharam a certa altura do governo Chagas Freitas que a água do rio Paraíba estava contaminada. E, além de váríos copos levados do Palácio Guanabara para quem quisesse usá-los na prova da água acompanhando o tão aguardado estalido de língua do governador do Rio de Janeiro, dirigiram-se para lá batalhões de fotógrafos, cinegrafistas e funcionários do gabinete de Chagas E o cercaram à espera de que ele mergulhasse o seu copo em tão mal faladas águas. Enfim, ouve-se dele um sonoro gole. E Chagas sorri: “Estão vendo? A água é boa!”
De plantão por perto, uma ambulância. Para a eventualidade de alguma turbulência...


3. O psicotécnico.

Zé Grande, um dos repórteres mais conhecidos, e vistos, da região do Grande Rio, por guardar na ponta da língua praticamente todos os telefones dos distritos policiais, inclusive das delegacias do interior, nomes de ruas, praças, morros, localização de biroscas et caterva, e por sua altura olímpica – de salto a distância – era de toda confiança do governador Chagas Freitas.
Certa vez, no Departamento Social de O Dia, com o propósito de avaliar e melhorar o nível dos jornalistas decidiu-se contratar uma equipe especializada em teste psicotécnico E foram sendo chamados, um a um, os jornalistas para a avaliação, obedecendo-se, naturalmente, a uma agenda.
Encerrados os testes, chega à mesa de Manuel Abrantes, então na chefia de reportagem de polícia, um memorando, que ele lê entre risinhos proféticos. Convoca: “Zé Grande, compareça ao Departamento Social!”
E lá foi Zé Grande... Sem saber que iria receber as notas de reprovação no psicotécnico. No mesmo dia, chega a ordem de Chagas Freitas para que fosse dispensada dos serviços a equipe que ousara reprovar o Zé Grande.


4. Passarinho diz

No Jornal do Brasil, onde fui repórter durante muitos anos, na Sucursal de Niterói, quando também trabalhava em O Fluminense, como redator, sem prejuízo de minhas funções de revisor do Diário da Assembléia Legislativa, funcionário deste poder, junto ao Diário Oficial do Estado, sou escalado, com o repórter fotográfico Braz Bezerra, para cobertura de um seminário do Ministério da Cultura em Volta Redonda. Fazia, ainda, o fechamento, ao cantar dos galos, de um noticiário radiofônico, o Jornal do Estado do Rio, de propriedade do radialista Zoelzer Poubel, que chegou a eleger-se deputado estadual por um mandato
(O Poubel dos ventiladores, aquele que, um dia, sem um níquel no bolso e muito menos no banco para pagar em espécie, metade que fosse, o salário de seus funcionários, não teve outra alternativa senão quitar-se conosco livrando-se dos ventiladores de teto que uma firma anunciante lhe deixara no valor do que lhe devia. Oriovaldo Rangel, secretário de redação, foi logo garantindo seus dois ou três ventiladores dentre os que cobriam todo o espaço da sala de um prédio cujo gabarito remontava às primeiras construções da Avenida Amaral Peixoto. Solução de judeu a do deputado Poubel e que,portanto, não deixou ninguém sem o que abanar-se...
Retomando a esticada à Cidade do Aço a serviço do Jornal do Brasil, O seminário seria realizado no amplo auditório da Companhia Siderúrgica Nacional, instalando-se pela manhã, com intervalo para almoço e, mais tarde, o encerramento.
O primeiro a discursar foi o ministro interino da Educação; o titular viajara ao exterior. E ele, mal inicia o seu discurso, já o diligente assessor de imprensa do ministro as Justiça, Jarbas Passarinho, que marcava presença naquele evento educacional distribuía cópias aos jornalistas do que Passarinho falaria em seguida. Peguei logo a minha e me dirigi sem perda de tempo à sala de comunicações da CSN. Como havia feito um breve mas proveitoso curso de digitação por telex na Avenida Brasil, dentro do programa de aprimoramento e especialização do pessoal de redação do JB, não me foi difícil transmitir em poucos instantes a matéria para a sede do jornal, sem que deixasse de registrar algumas palavras do ministro interino da Educação apanhadas no ar.
Eu e Braz Bezerra, mais o motorista do JB, nos recolhemos ao hotel com a consciência tranqüila de havermos cumprido mais uma missão como mandava o figurino...
De manhã, bem cedo, batem à porta do quarto. Braz Bezerra, que se barbeava, foi ver quem era. E virou-se para mim: “Estão lhe chamando lá em baixo. Parece ser urgente. Ih... Vem chuva, pelo falatório”.
“Já vou!”, respondo, acabando de aprontar-me.
E desço ao saguão, degrau a degrau. Esperava-me de pé o interino, o JB aberto bem na minha cara. Por pouco não esfrega o jornal da Condessa Pereira Carneiro nas minhas ventas. Lia pausadamente e com uma exclamação de sua autoria a manchetinha de página:
-Passarinho diz!”
O homem estava furioso. Achava que eu havia posto azeitona na empada do Ministro da Justiça, passando-lhe o chapéu de dono da festa na Siderúrgica. “Passarinho diz... Só o que faltava!”.
Volto ao auditório da Companhia Siderúrgica Nacional para o encerramento oficial do encontro. Lá me esperava, desta vez, o professor Luiz Gonzaga Malheiros, de quem fui aluno no Colégio Modelo, de Nova Friburgo. Malheiros fazia, agora, parte da comitiva do ministro da Educação a Volta Redonda. Escoada a tormenta, Malheiros aproxima-se: “Que papelão, hein, Gonçalves! Ele nem esperou pela leitura das resoluções... Saiu de fininho, quem sabe para se queixar ao Nascimento Britto...”



5. um prédio ao fundo

O trem da Leopoldina, no retorno de Portela – que era o fim da linha no ramal do Centro-Norte do Estado – entrava em Nova Friburgo pelo lado esquerdo da Praça Getúlio Vargas. Apitando e batendo o sino de alerta para a passagem de nível, logo adiante. Bem próximo a um sobrado onde eu morava em quarto de aluguel enquanto fazia o curso científico no Colégio Modelo, dirigido pelo professor Messias de Moraes Teixeira. A poucos passos dali se via um largo, ao fundo do qual notei que havia desaparecido como por encanto pequeno prédio que servira de sede dos escoteiros friburguenses durante anos e que fora, agora, desativado, face à construção, em outro local, de uma sede nova. Mas o velho prédio, até então, parecera-me ainda em boas condições. Tanto assim era que um dia o professor Malheiros trouxe para mim a chave daquilo que poderia servir-me como escritório para meus estudos e minhas produções literárias.
Ocorre que na véspera do desaparecimento daquele meu escritório, durante a noite, dormindo em minha casa em Boa Sorte, onde costumava passar o fim de semana com meus pais, presenciara em sonho o desabamento do prédio dos escoteiros.
A isto não se dá nome de premonição? Coisa que parece ter principiado quando ainda pequeno, em Boa Sorte, onde meu pai tinha um armazém de secos e molhados e meu quarto, sala de estar durante o dia, ficava a dois braços de uma parreira de uvas.
Meu pai frequentava uma loja maçônica em Cantagalo e certa noite sonhei, meu pai já em casa de volta pelo trem expresso, com três batidas na porta do armazém... “Seu Aristides! Telefonema de Itaocara!” Era a telefonista do posto de Boa Sorte. E meu pai foi atender, tendo sido avisado por um maçon de que minha tia, irmã de minha mãe, havia falecido. Com a notícia, associei as três batidas na porta de casa a sinais maçônicos.
Além disso, o sonho incluía um vestido preto em minha mãe.


6. Um velório Kafkiano

Já soube de algum velório de pessoa comprovadamente viva? Tirantes os casos especificamente novelescos ou de catalepsia?! Pois assim aconteceu. Comigo
Uma queda acidental da cama durante o sono, tive o crânio fraturado, o sangue a escorrer pela testa, como se eu houvesse sido acometido de terrível pesadelo.Grito, e não me faltaram forças para ir ao espelho avaliar os ferimentos. Já minha mulher estava a meu lado, juntamente com minha cunhada e uma sobrinha. Sem perda de tempo, colocam-me dentro de meu carro, um Ford kA casualmente estacionado na calçada de minha casa e a cunhada foi dirigindo. Levam-me diretamente para o Setor de Emergência do HCN, Hospital das Clínicas de Niterói. Lá, submetem-me a vários exames, passando pela tomografia computadorizada e a ressonância magnética, após alguns curativos, tudo coberto pelo Ipalerj, o meu plano de saúde.
Nem imaginava que meu enteado mais novo, ao passar pelo Ponto Cem Réis e notar minha ausência por longas horas, descobrindo depois que eu me achava hospitalizado, pudesse entrar furtivamente no imóvel que custara meu suor de anos e apossar-se dele, trocando inclusive todas as chaves, não se sabe exatamente como – se chamando diretamente um chaveiro sem que provasse ser proprietário da casa ou através de uma ex-empregada minha que tenha levado a chave do portão por algum motivo.
Como se isso não bastasse, acompanhavam-me no HCN a minha mulher, a cunhada e minha irmã, freira da Ordem das Dorotéias, que viera de São Paulo, quando, inesperadamente, desata em redor do meu leito hospitalar uma nuvem de gente que havia invadido meu imóvel no Ponto Cem Réis e que, uma vez descoberto meu paradeiro, iniciava um plantão no HCN, à espera, tudo indicava, do meu desenlace. Minha mulher e minha irmã procuravam por todos os meios impedir que o enteado ou alguém a ele ligado chegasse até meu leito para informar-me que haviam ocupado o prédio do Fonseca e ali passado a morar. Minha família receava que eu sofresse um infarto ao ter conhecimento da ocupação. Assim, fui informado muito depois e por minha família, que me prepararam para isso.
Os exames a que me submeteram acusavam um hematoma gerado, do lado direito da cabeça, pela queda que levara, o que exigia o procedimento cirúrgico de uma drenagem do sangue acumulado. Entra em ação uma equipe cirúrgica de alta competência e especialização, chefiada pelo Dr. João Márcio. Antes que ele iniciasse a intervenção, o alertei: “Doutor! Não quero anestesia geral, por favor!” (Eu queria ver tudo, sentir tudo, por mais fortes que fossem as dores) Ele me respondeu: “Fique tranqüilo, vai ser anestesia local” Eu temia morrer anestesiado. O mesmo pedido eu fizera muitos anos atrás, ainda garoto, em Nova Friburgo, na Casa de Saúde do Dr. Mário Sertã, aonde meu pai me levara para uma operação do apêndice. O cirurgião era o próprio Dr. Mário Sertã, que me tranqüilizou: “Fique bem atento que vou lhe contar umas boas anedotas”. Logo à primeira, ele inflou as bochechas. Ao mandar-me para casa, recomendou todo cuidado para que nenhum ponto arrebentasse. Deixei passar uns dias e, com saudade da bicicleta, arrisquei-me a pedalar um pouco. Foi a conta: arrebentara-se um ponto. Entanto, sem maiores problemas. Lá estava, em Cantagalo, o meu tio Euclides (Euclides Santana Moreira) para fazer os curativos e, mais tarde, para retirar todos os pontos sem que houvesse necessidade de retornar ao Dr. Mário Sertã. Tio Euclides era um grande farmacêutico, que bem podia substituir eventualmente um médico, caso lhe fosse concedida pela autoridade competente a devida autorização. Criador de fórmulas para várias enfermidades, dir-se-ia milagrosas, cresceu no conceito dos cantagalenses de tal modo a justificar-se uma placa com o seu nome numa rua ou praça da Cidade dos Melros, que é Cantagalo.
De volta em pensamento ao Hospital das Clínicas de Niterói, eis-me diante do Dr. João Márcio, que acabara de receber, por sinal, justos elogios de um assistente por ter sido a cirurgia bem sucedida, ao que o cirurgião não se fez de rogado e abre um largo sorriso, orgulhando-se: “Eu sou eu!” Daí minha mulher tê-lo apelidado, em bom tom e hora, por gratidão pelo que fizera por mim, de Dr. Estrelinha, ao ouvi-lo gabar-se do sucesso da cirurgia. E com toda aquela gente sufocante ao meu redor, sem que arredasse pé, a tentar romper a barreira formada por minha irmã, a cunhada e minha segunda mulher, Franz Kafka talvez escrevesse que tinham montado um velório sem castiçais.


7. O cajado

O mais curioso, estranho, inusitado é que, ao término das visitas aos internos, um grupo de evangélicos dizia ter visto, com os olhos bem abertos, à saída da UTI, um homem de idade avançada, cor branca, a balançar um cajado. ”O que quer você mais?”, bradava este homem, de pé na Recepção, para o enteado mais novo. “Você já roubou a casa dele e agora quer matá-lo?!”
Não conseguimos identificar este homem, cuja barba pendia muito branca, conforme a descrição feita pelos evangélicos, de cuja idoneidade não levanto a menor dúvida. Sou de formação católica e somos todos cristãos.



8. As mãos

Um dos assistentes do Dr. João Márcio impressionou-me sobremaneira pelo tamanho das mãos, porém em estrita proporcionalidade anatômica à sua altura, de um remanescente escrito de alguma das mais antigas civilizações da América Espanhola.
Assaltou-me de imediato o que fariam aquelas mãos em mim Mal não seria. Além do mais, aquele assistente cirúrgico era compatriota de Hugo Chaves, presidente da República Bolivariana da Venezuela, a quem sempre admirei por suas
posições antiimperialistas e de solidariedade com os povos irmãos do continente Sul das Américas.
Na véspera da retirada do dreno de minha cabeça rachada, o médico assistente venezuelano teve amável conversa comigo e comunicou-me, referindo-se à drenagem do hematoma: “Amanhã pela manhã vou livrá-lo dessa tortura”. A sangue frio, quer dizer, com anestesia local, como eu fazia questão que fosse. Amanhece e submeto-me, na sala de cirurgia, àquelas mãos enormes do venezuelano a puxarem a tortura com pulso firme e exemplar perícia. Com anestesia local, foi uma dor só; teria sido bem diferente, muito mais doloroso, acredito, se fosse geral...




9 - Linha de fogo

Aos primeiros relâmpagos já se abria um sem-número de guarda-chuvas, ouve-se um estrondo a um canto lúgubre do céu, que se acinzentara, uma carga de chuva desabava, trovões e relâmpagos entrecruzavam-se, cenário de fim dos tempos. De repente, traiçoeiro, um raio que se partira deitava por águas em fora à nossa frente. Tínhamos saído ainda há pouco de enorme barca da Cantareira que rangia no ancoradouro da Praça Araribóia.
A linha de fogo que se formara em baixo seguia seu curso assustador perseguindo passageiros no desembarque, a correr pelo meio-fio da calçada direita do Restauraante Miramar. Corríamos, todos, guarda-chuvas abandonados pelo chão, eu já sem saber por onde andava, até que me vi diante de uma porta de aço entreaberta. Ufh! Entro. Era o tradicional Café Santa Cruz. Eu emudecera completamente, não conseguia articular uma só palavra. O garçom esperou já pondo um copo sobre o balcão. Dirigi-me a ele por sinais com as mãos, mostrando-lhe na prateleira uma garrafa de vermute e outra, de cachaça. E fiz com os dedos o sinal do traçado com as duas bebidas bastante conciliáveis naquela situação.
Só assim voltei a falar.


10. - O necrológio

Dificilmente se via um plenário tão cheio como nesse dia em que chegara a notícia de um acidente aéreo ocorrido, falava-se, próximo a Macaé, tendo como uma das vítimas um funcionário da Assembléia do antigo Estado do Rio, o qual trabalhava no setor de Segurança da Casa. Um negro simpático, alto, muito conhecido, que costumava acompanhar o deputado Vasconcelos Torres em suas andanças de campanha eleitora e, a exemplo de Vasconcelos, mudar um bom charuto de um canto a outro da boca, o que indicava uma ligação afetuosa entre os dois. Macaé era um dos redutos eleitorais preferidos de Vasconcelos Torres, que sempre quando lá ia, acompanhado do seu Segurança, não deixava de tomar uma talagada do uísque escocês que guardavam para ele no bar do Hotel Imbetiba - um hotel, pelo menos àquele tempo, pertencente ao Sesc e encravado numa pedreira que emergia de águas do Atlântico, coisa de cinema... parecia - juntamente com o seu fiel auxiliar, e, de lá, por vezes, partia para visitas a biroscas da região, onde acrescentava umas cachacinhas, acompanhado por fregueses desses estabelecimentos. Correligionários, a rigor, ou eleitores atraídos pela biritagem.
O plenário lotado, o deputado Vasconcelos Torres sobe à tribuna e faz o necrológio do funcionário com grande emoção, derramando-se em elogios a ele, a enxugar a todo instante, com um dos muitos lenços que lhe estendiam, as lágrimas que lhe escorriam pelo rosto. ..."Um funcionário exemplar, com uma larga folha de serviços prestados à Assembléia, ao serviço público, sem que faltasse um dia ao trabalho"... E por aí seguiu o seu discurso emocionado.
De repente, um acotovelamento junto ao portão da Assembléia, seguindo-se o desmaio de dona Filhinha sobre o balcão do setor de Segurança. É que voltara o Segurança dado como morto na tragédia aérea de Macaé. Ele próprio carrega dona Filhinha até o gabinete médico para que fosse atendida. E dona Filhinha recupera os sentidos com uns tapinhas nas faces e umas gotas num pouco d'água para segurar as coronárias, os dois se abraçam e o Segurança a quém Dona Filhinha substituía nos atendimentos ao público em sua ausência relata o que havia de fato sucedido: perdera o seu vôo de retorno a Niterói, tomando, então, um outro.


11. - Primeira Dama

Pelo testemunho insuspeito de Edmar Morel, insuspeito por tratar-se de um dos maiores repórteres que já teve o país, que foi perseguido, por lutar contra o Estado Novo, Getúlio Vargas foi um dos poucos homens públicos de que se pode orgulhar o Brasil em termos de honradez, honestidade, de lisura no trato da coisa pública. No Palácio do Catete, os filhos ainda pequenos, ele os mandava para a escola, de bonde, sob protestos da Primeira Dama dona Darcy Vargas, que replicava: “Assim é demais, Getúlio!” Julgava-o exceder-se na educação dos filhos não chamar um dos automóveis que lhe serviam no palácio para levar as crianças, ao que Getúlio justificava-se: “O exemplo deve vir de casa. E além de Edmar Morel que fechando uma reportagem histórica sobre Vargas revelava que o grande caudilho deixara todos os seus bens penhorados”, Barbosa Lima Sobrinho, que presidiu a Associação Brasileira de Imprensa por longos e profícuos períodos, outro velho adversário político de Getúlio, a certa altura de seus mandatos, irretocáveis, penitenciou-se dos ataques que fizera nos albores de sua vida pública a Getúlio Vargas, agora o reconhecendo um dos homens mais íntegros da história pátria.
Darcy Vargas, por sua vez tinha como menina de seus olhos a Casa do Pequeno Jornaleiro, uma de suas obras sociais que, ao lado da LBA, Legião Brasileira de Assistência fazia com que a Primeira Dama não esquecesse que era também uma dona de casa como outra qualquer, pelo amor como tratava os pequenos jornaleiros sob sua guarda, a ponto de nos fins de semana ir aquela instituição, que fica atrás da Praça Mauá, pegar na vassoura e num balde d’água, panos e outros apetrechos de limpeza, sem a menor cerimônia...
Passada a era Vargas, nenhuma outra Primeira Dama chega aos pés de Darcy Vargas, e o pior é que uma de suas sucessoras, Rosane Collor, Primeira Dama do governo Collor de Mello, encerrou as atividades da LBA, que se estendiam por todo o território nacional.
Os exemplos mencionados vêm a propósito da época em que vivemos após Vargas, João Goulart e Leonel Brizola. Uma época caracterizada pela maracutaia, venda de votos no Congresso Nacional e outras diatribes do sistema, como os escandalos na Previdência Social.


12 - O despachante

Em redor de uma banca de jornais de Nova Friburgo, bem ao lado do Restaurante Atlantic, próximo ao qual se erguia o prédio-sede da Academia Friburguense de Letras, onde o acadêmico e médico Rudá Brandão Azambuja deixou versos condoreiros polêmicos, que alguns críticos consideravam coisa do passado, como “OH, esponsais do eterno!”, costumavam se reunir nos fins de tardes, além do Dr. Rudá, o também acadêmico e político Nelson Kemp e sua gravatinha borboleta à la Brício de Abreu, colunista de rádio no memorável Diário da Noite antes de encurtar para tablóide, Nelson Kemp sempre presente com um soneto na primeira página das edições dominicais do jornal A Paz, semanário udenista que se editava na cidade em oposição ao pessedista A Voz da Serra, de Américo Ventura,liberal. Havia também outro periódico local, de propriedade de Juvenal Margues e cujo nome foge-me agora. Na Voz da Serra eu escrevia semanalmente a Coluna do Parlamento. Era a coluna do Parlamento Estudantil de Nova Friburgo, um parlamento de estudantes, principalmente do Colégio Modelo, fundado há muitos anos por iniciativa de Élio Sólon de Pontes. Em meu tempo, era presidido por Fernando Ventura.
Um dos que paravam, também, para falar de política junto à banca de jornais da Praça Getúlio Vargas era um despachante muito conhecido na cidade cujos tiques nervosos chamavam a atenção de qualquer pessoa que por lá passasse. Um belo dia, o poeta condoreiro Rudá, que conciliava sua dedicação à lírica com a medicina, olhou fixamente para o despachante e, dando-lhe uns tapinhas no costado, descarregou: “Ainda vou lhe pôr curado destes tiques nojentos!”
E não foi mesmo? Passa-se o tempo, encontro-me no Rio com o despachante e ele se posta diante de mim; espera um pouco pela minha reação e indaga, feliz da vida: ”Não está notando nada diferente em mim?” Só fiz abraçá-lo.
E ele: “O Dr. Rudá me corrigiu, me curou”.

13 - Cortado o mal

Eu namorava uma moça que, em conversa amistosa desfiou um caso que o abstêmio acaba engolindo a contragosto. O irmão da moça, tendo ido à praia, pisara numa madeira com um prego enviesado. Não deu maior importância ao ferimento, limitando-se a um curativo de simples topada.
Tarde da noite, já deitado, sacudindo-se de calafrios, grita pela mãe. A irmã chega primeiro e já baixando o mercúrio do termômetro. Acomoda, então, o termômetro debaixo do braço do irmão, aguarda alguns instantes e vê que a febre estava em torno dos 40 graus. Levam-no imediatamente para um posto do SAMDU e o enfermeiro, para o médico plantonista, vai logo dizendo: “O paciente cheira a pinga, doutor!” A irmã do paciente não esconde que ele, a conselho de uma tia em visita à família, virara goela abaixo meio copo de uísque.
“Pois foi a sorte dele!” – disse o médico após medicá-lo adequadamente conforme os preceitos regulares da Medicina, providenciando sem perda de tempo a aplicação da antitetânica, seguida de outros procedimentos afins à enfermagem.


14 - A ferroada

Num domingo desses em que o sol da Região dos Lagos chega a produzir à nossa frente algo como miríades de estrelas, se bem que temperadas por uma neutralizante e carinhosa brisa de mar, sentara-me num banco de pedra de uma parada de meio de estrada em Araruama, à espera de um ônibus de volta para Niterói. De súbito, a modorra a baixar-me lentamente as pestanas qual um paraguaio a relaxar após o almoço, com a diferença de que o paraguaio costuma estirar-se ao chão ou encostar-se numa árvore, por exemplo, e cobrir a cara com um chapéu de cantante sertanejo.
...E zás! Cai uma abelha por perto e ela, em vez de se erguer e continuar seu vôo de rotina, não! Crava uma ferroada em minha mão esquerda... Uui!
Um moço atrás de mim faz rapidamente a identificação: “É fêmea!”
Um mudo ao lado dele confirma balançando a cabeça. E empina o polegar em direção da boca, após agitá-lo para baixo. Repete o gesto. O seu companheiro assume o papel de intérprete: “Ele quer dizer que basta você molhar a mão com uma cachacinha que não sentirá mais dor”.
Corro até minha casa em Araruama, lembrara-me que havia lá uma garrafa de caninha do Norte, abro-a, entorno boa quantidade sobre a ferroada e retorno à parada de ônibus sem mais nenhuma dor.
Chega o ônibus, entro fazendo OK com o polegar, o mudo responde fazendo o mesmo. E seu companheiro - o ônibus já em movimento - levanta a voz: “Não esqueça de tomar umazinha depois que chegar!”.



15 - O gramofone e a paródia


Quando não se tinha outra coisa a fazer: baile na Sociedade Esportiva Friburguense ou na Fábrica Ypu, onde por chegarem mais damas que cavalheiros tomavamn chá de cadeira belas garotas, descomprometidas, para enlaçar ao ritmo de um samba-canção ou de um bolero na voz de Lucho Gatica ou-- de Bievenido Granda –“o bigode que canta” - nos reuníamos, à noite, no Atlantic à espera de A Vida Como Ela É, coluna do dramaturgo Nelson Rodrigues no jornal Ultima Hora, que com a extinção da linha de trem passara a chegar de ônibus. A Vida Como Ela É era a única leitura nossa naquele jornal. Motivo, por vezes, de disputa acirrada quanto a quem leria primeiro. Mário Haiut quase sempre vencia a disputa arrebatando a página de Nelson Rodrigues com uma avidez de leitor de Boccaccio. Além de Mário Haiut, de Rachid Namen, o qual me apelidara de ”doutorzinho”, e o apelido acompanhou-me por muito tempo; de Worms, um colega também no Modelo, operário da Fábrica Ypu com vocação para líder sindical, paravam junto às nossas mesas no Atlantic, às vezes, o poeta Sertório Canedo Neto e Hélio Albano, que aproveitava as noites mais frias de Nova Friburgo para meter-se em pesados casacos glaciais e sair pelas ruas da cidade posando de Rasputin. Moço de uma inteligência invulgar, culto, estudioso, conhecedor profundo de Literatura russa, Hélio Albano pegava aos domingos, pela manhã, o seu gramofone de toda estimação, e alguns discos de clássicos da música russa, indo recolher-se a uma sala do Colégio Modelo, na Praça do Suspiro, estirando-se sobre um tapete para ouvir, monasticamente, as suas músicas preferidas.
Na Rádio Sociedade de Friburgo, o nosso Parlamento Estudantil, sob a presidência de Fernando Ventura, obtivera autorização do diretor da emissora, Aloysio Moura, para apresentação de um programa de variedades. Havia até radioteatro, e Hélio Albano era o autor principal dos scripts.
No Restaurante Atlantic, não deixávamos de jogar conversa fora, de cometer versos satíricos e outras tiradas irônicas sobre toda uma fauna política, extensivamente cultural. Uma noite, Mário Haiut teve a idéia de parodiarmos um sucesso carnavalesco de Emilinha Borba e que falava em falta d’água. Justamente numa hora em que Friburgo, repentinamente, ficou às escuras. Os assovios, de todos os lados, não se fizeram esperar. O sucesso de Emilinha dizia: “E lá em casa não tem água nem pra cozinhar”...
Haiut deu início à paródia em meio ao blecaute: “Há quanto tempo eu não sei como enxergar”. Emendei: “Não sei se saio de casa ou se vou me deitar”... Com a contribuição de cada um dos presentes às mesas que o garçon havia juntado, a paródia à queixa de Emilinha sobre a falta d’água prosseguiu: “Francamente, a viver nesse negrume/ eu preferia ter nascido vagalume/ Enquanto a taxa aumenta/ aumenta a escuridão/ O povo já não aguenta/ tamanha exploração./ E sofre a cidade / sem iluminação.../ Suspiro, Paissandu, Vila Nova e Bar Ypu”...



16 - Os galos e Jânio

Jânio Quadros era um cultor emérito, exemplar do vernáculo. Até as abobrinhas que soltava uma vez e outra dissimulavam certa elegância de estilo. Pronunciar o ”erre” tocando a língua na parte superior da boca, eis dele um característico bem marcante, talvez o principal. Nas conversas de calçadas, de corredores e de gabinetes do Congresso, citavam-no como “o homem da vassoura”, que se propunha a varrer do país as mazelas.
O galo de briga era-lhe o símbolo das vítimas indefesas. Condenava assim, as brigas de galos como sendo uma barbárie. E Jânio, de uma penada, baixa decreto proibindo terminantemente o funcionamento de rinha de galos em toda e qualquer parte do território nacional. Os galistas se alvoroçaram acusando o presidente de arbitrário, acusando-o de impedir, de obstaculizar a atividade econômica. O uso do broche da vassourinha era moda nos passeios públicos.
O Diário da Noite passara a tablóide e Alberto Dines, que assumira sua direção, em substituição a Orlando Motta, embalado por idéias modernizantes, na linha daqueles que sustentavam a tese de que eram os nomes de colunistas e não, propriamente, as notícias que vendiam jornal, cuidou logo de contratar os melhores, de maior renome, colunistas do Rio. O primeiro a fechar contrato com o Diário da Noite, foi Nelson Rodrigues, mas o antigo espaço de A Vida Como Ela É não demorou a ser ocupado por outra coluna, escrita por um repórter na mesma linha do dramaturgo, sem que a substituição houvesse levado o público, ou parte do público de Ultima Hora para o Diário da Noite
Com todas essas mudanças, fui mantido no jornal de Assis Chateaubriand. Dias antes da proibição, por decreto presidencial, de brigas de galos, sou chamado à chefia de reportagem a fazer a cobertura crítica, com um repórter fotográfico, do funcionamento de uma rinha. Eu e o fotógrafo subimos o Morro da Gamboa. Entramos discretamente, numa espécie de circo muito bem instalado e iluminado, ao qual não faltavam as arquibancadas e ao centro, circundando a rinha, cadeiras preferenciais da platéia. No alto, algo como tribuna, de onde ficava alguém ao microfone comandando a função. Vinham de todos os lados as apostas em um de dois galos a ciscarem dentro da rinha no formato de picadeiro. Um circo psicodélico escrito. Penas a voarem, galos se matando, sangue a escorrer de seus pescoços, soa a campainha, os apostadores vão se retirando, seguem a sua vida normal.
No dia seguinte, correm na redação rumores de que na cúpula do jornal não haviam ficado satisfeitos com a reportagem sobre as brigas de galos. É que um dos diretores do jornal era sócio na rinha. Calazans Fernandes, que era o chefe de reportagem, apressou-se a assumir, perante a alta diretoria, a responsabilidade pela publicação. Enquanto isso, o repórter fotográfico mangava: “De minha parte, as lentes não mentem jamais”.
E Jânio? Acaba enfadando-se de defender os galos, preferindo continuar dedicando-se à última flor do Lácio, inculta e bela”. E à política, um pé cá e o outro lá, sem perder Londres de vista e, bem assim, sua admiração pelo Che. Numa entrevista de televisão, como o repórter lhe perguntasse por que condecorara Guevara com a Ordem do Cruzeiro do Sul, Jânio respondeu: “Um homem honrado, um sonhador, o Dom Quixote das Américas”.


17 . Capitão Chateau;

A ser verdadeiro o que contavam jornaleiros da Praça Mauá e outras pessoas antigas que costumavam fazer ponto ali pelo Bar do Zica, Assis Chateaubriand pisou terra firme de frente para a Bahia de Guanabara como Cabral em 1500 neste país-continente. Sem Pero Vaz de Caminha para relatar o que Chateaubriand havia encontrado à sua vista e com os bolsos, por assim dizer, furados. Entrementes, encantou-se logo ao primeiro passo com a paisagem e os golfinhos acrobatas. Voltar para o Nordeste, agora que pisei solo que está me cheirando a tão promissor, nem pensar! – devia estar imaginando. Seus biógrafos passantes escreviam nas estrelas que ele começara, no Rio, engraxando sapatos. Da graxa se alça de degrau a degrau até a dono de um império jornalístico, incluindo emissoras de rádio e tevê.
Presenciei, um dia, uma cena curiosíssima ao lado de uma banca de jornais perto do Bar do Zica, quase à entrada do edifício do Diário da Noite, na rua Sacadura Cabral. Um homem aproximou-se da banca, pegou um exemplar de “O Jornal”, que era o mais importante do império chateaubriânico, e o abriu como se procurasse constatar se alguma notícia de especial interesse para ele havia saído publicada, recuou até um poste, com o seu guarda-chuva, o jornaleiro não deixava de olhá-lo mas por outra razão: faltava pagar o exemplar. E cobrou, sem saber que se tratava de Assis Chateaubriand em pessoa, que se virando para o jornaleiro sorriu amarelo:” O jornal é meu, meu filho, não está me reconhecendo?” O jornaleiro pediu-lhe mil desculpas após trocar de óculos para enxergar melhor, e o Dr. Assis lhe responde com uns tapinhas cordiais. Sem que lhe pagasse.
Numa loja de discos de esquina para a Avenida Rio Branco rodavam o Bat Masterson... “No Velho Oeste ele nasceu/ e entre bravos se criou/ uma grande lenda se tornou/ Bat Masterson”...
Braz Bezerra não perdeu a oportunidade de parodiar a musiquinha que se ouviu na Praça Mauá durante muito tempo: “Na Paraíba ele nasceu/ e aqui no Rio se criou/ no jornalismo enriqueceu/ capitão Chateau... capitão Chateau”.

18 – A biografia e os braços abertos

Nelson Rodrigues, em instigante artigo publicado no Correio da Manhã, relacionou algumas celebridades que Deus as tenha, no mundo das letras e artes, sem que lhes faltasse cortejo à altura de suas obras, e outras, ao contrário, com uns quatro ou cinco presentes às despedidas, todos ou quase todos da família.
Nelson deduzia que a cada um que estivesse na fila da imortalidade seria de todo conveniente dar uns retoques à sua biografia após um ecocardiograma ou um eletro, o médico a auscultar-lhe periodicamente as coronárias.
Em suma, de um lado, o cortejo a dobrar esquinas e mais esquinas até serpear pela necrópole, já aí, por vezes, em se tratando de sambista ou de banqueiro do jogo de bicho, o surdo de uma ala de escola de samba no compasso do féretro. De outro lado, uma legião de leitores ou companheiros de um autor que atravessara o Atlântico e o Pacífico com suas obras vão surpreender-se de que ele se fora, por um jornal de tevê.
Estive no velório do poeta Olegário Mariano, que se notabilizou, principalmente, como autor de “O enterro da cigarra”. Foi no salão nobre da Academia Brasileira de Letras. Achava-me lá a trabalho, como repórter do jornal A Noite, a fim de anotar as presenças. Lembro-me que nesse dia caía uma chuva miúda, persistente. Vieram-me logo os versos mais conhecidos, antológicos, do Poeta das Cigarras: “As formigas levavam-na. Chovia./ Era o fim... Triste inverno fumarento”...
Olegário Mariano havia se preparado. Não como Manuel Bandeira, depois, ao escrever o livro “Preparação para a Morte”. Mas, louvando a Deus pelas cigarras, que, assim, continuaram cantando.
E Grande Otelo? Baixo astral no Brasil, já perdendo a fama de um de nossos melhores comediantes, bastou pisar em Paris, ainda no aeroporto, uma comitiva francesa recolhendo-lhe as malas para levá-lo em dois ou três táxis ao hotel onde ficaria hospedado, não resistiu à emoção de lhe terem oferecido a chance de recuperar a popularidade fora de seu país. E as emissoras de rádio e televisão brasileiras correram a montar a biografia de Otelo.
Acho que Nelson Rodrigues escreveu aquele seu artigo no Correio da Manhã muito antes de ter falecido o Zica da Praça Mauá, cujo nome corria de Beca a Meca como um dos maiores contrabandistas que freqüentaram o noticiário do Rio. Seu concorrente mais falado tinha por nome ou alcunha Fernandinho, sem nenhuma ligação, nem genética, com o “Beira Mar” de décadas mais recentes.
O Zica era nos anais fazendários um empresário bem sucedido, dono de hotéis, restaurantes, bares. Conhecido, inclusive, e bastante, no Norte e Nordeste brasileiros. Estava sempre de braços abertos aos nordestinos, que chegando ao Rio, de pau-de-arara, saíam logo à procura do Zica, que os empregava em suas várias empresas.
Comentava-se que os braços abertos de Zica, inspirados no Cristo Redentor, se estendiam à Santa Casa de Misericórdia, na rua Santa Luzia, instituição que ele ajudava. Não afirmo e nem ponho a menor dúvida quanto a isto.
Fato é que seus funerais cobriam toda a Avenida Rio Branco, desde a Praça da Candelária. E entre os que levavam castiçais se viam juízes e desembargadores.


19 - Um tempo sem Oposição

Fui o primeiro jornalista, repórter de A Noite, convidado por Ernesto Silva, a pisar solo do Planalto Central antes da construção de Brasília. O avião partira da área militar do Santos Dumont e viajavam comigo, a bordo de um bimotor da FAB, um técnico da Geofoto, empresa encarregada do levantamento aerofotogramétrico do sítio ideal, expressão da engenharia para definir o local mais adequado às fundações da nova Capital, e um fotógrafo do Ministério da Agricultura.
O coronel Ernesto Silva era o presidente da Comissão de Localização e Mudança da Capital da República, órgão que funcionava num pequeno conjunto de salas na Esplanada do Castelo. Eu passava por lá quase todos os dias à cata de alguma novidade relacionada à mudança que JK fixara para em cinco anos. No Rio, os cariocas em geral não acreditavam na mudança ou queriam porque queriam que a Capital permanecesse rodeada de praias.
O funcionário federal bufava... “Sem praia, bicho, que é isso!?”
Mas nem todos na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro pensavam assim. O mineiro Clemente Luz, por exemplo, talvez porque Minas não tivesse praia, sendo Mar de Espanha simples metáfora, entusiasmara-se com a determinação do conterrâneo JK em construir uma cidade do futuro em tempo recorde. Clemente, redator de A Noite por essa época, era, pode-se dizer, meu padrinho de jornal. Dizia-me ele, quando retornei do Planalto: Já estou saturado de viver de vales e penso seriamente em mudar-me para Brasília, se possível, logo que começarem a bater as estacas. Um pouco mais tarde, confirmava esta sua intenção: ”Não dá pra esperar mais. Vou ser candango, o que for”. Acaba revelando-me que já não tinha como quitar meses de aluguel de um quarto-e-sala na Zona Sul do Rio.
Brasília não havia sido ainda concluída, faltando muito o que fazer, a cariocada do serviço público federal a recusar, solenemente, altas propostas do governo, pelas quais teria o salário duplicado ou até triplicado se trocasse as areias de Copacabana pela vida que muitos aqui embaixo do Pão de Açúcar diziam ser monótona, tediosa, da nova Capital. As propostas incluíam o direito, inclusive, a moradia de parlamentar, pelo menos por algumas luas. O jornalista Clemente Luz, mereceu a oportunidade de corresponder aos acenos de Brasília, se deu bem, como muitos outros à procura de trabalho e bons rendimentos, principalmente mineiros, como ele, Clemente, e nordestinos. Até engravatados se consideravam candangos na hora em que o dinheiro começava a jorrar para seus bolsos ou suas contas bancárias. Quem demorou a ir ou, o que é pior, não foi, arrependeu-se.
O mais interessante, curioso, surpreendente que testemunhei naqueles dias rodando pela vastidão planaltina, ao centro do que se me afigurava imenso campo de pouso uma cruz erguendo-se bem alto a assinalar a localização exata do sítio ideal para acolher uma grande cidade – fora a união repentina, imediata de todos os partidos políticos em Goiânia e localidades vizinhas, como Luziânia, cidade do Brasil-Colônia a riscar a divisa com Minas Gerais. A um vôo de teco-teco para o coração do Planalto.
Pelo menos por lá, a UDN, União Democrática Nacional, e o PSD, Partido Social Democrático, que se engalfinhavam no Rio de Janeiro e em outros Estados da região, além do PartidoTrabalhista Brasileiro, o PTB, formavam juntos com Juscelino Kubitschek. O brigadeiro Eduardo Gomes, pelo comportamento de correligionários goianos, extensivamente planaltinos, era juscelinista por aquelas paragens, como qualquer candango que se prezasse. Não havia, pois, Oposição.


20. Os patins e a bicicleta

Vim a conhecer Tarcísio Tupinambá em Nova Friburgo, casualmente. Eu concluía o científico no Colégio Modelo e era da diretoria do Parlamento Estudantil, que Fernando Ventura presidia com garbo e fluente oratória. Tupinambá passa a vista sobre uns escritos meus, retira de sua pasta, entregando-me, uma proposta de associado da ABDE, Associação Brasileira de Escritores, que assinei depois de ouvi-lo a respeito dos benefícios que a entidade poderia nos trazer, das várias formas de incentivo à literatura, pelo relacionamento, inclusive, com escritores amadurecidos, sem esquecer os jovens a meio caminho.
Ao entrar pela primeira vez na sede da ABDE fluminense, fiquei conhecendo a escritora Gilda Braga Linhares, que deixou um livro inédito – “Sombra de um Vôo”, biografia romanceada de Raul de Leoni - cujos originais desapareceram misteriosamente. Estariam com algum herdeiro do poeta de “Luz Mediterrânea”? Os originais, sem cópia – conforme me dissera a autora na ocasião do desaparecimento - continham farto material iconográfico, incluindo-se algumas poesias manuscritas de Raul de Leoni, a quem dona Gilda, ainda bem jovem, conheceu de perto, de patinar em sua companhia no Rink de Niterói, entregando-se a volteios pela praça. Ali havia, mesmo, um rink de patinação, contou-me Gilda Braga Linhares. E que o poeta tinha bem mais idade que ela, cuja beleza que gente daquela época dizia ser estonteante, clara, chamava a atenção de todos. E que ele, talvez por isso, relutasse em namorá-la.
Graciliano Ramos foi um dos fundadores da ABDE fluminense. Ia de vez em quando a Niterói. Papear com os companheiros do partidão e das Letras. Muito amigo e admirador de Gilda Braga Linhares, que considerava bastante talentosa, Graciliano sugeriu-lhe, um dia, que escrevesse um romance ambientado na pesca em Jurujuba e a vida de seus pescadores. Não escreveu. E Graciliano havia deixado o tema para ela, que na qualidade de secretária da ABDE lavrava com toda desenvoltura, retidão e boa caligrafia as suas atas, a par de uma atividade política intensa, socialista ardorosa que era, sempre correspondendo-se com companheiras de Paris e de outras partes do mundo a respeito do que deveria ser feito em cada país pela libertação dos povos oprimidos, subjugados ao imperialismo.
O tesoureiro era o escritor, português, Sousa do Prado, há muitos anos radicado no Brasil, autor de várias obras, quase todas de ensaios críticos sobre política internacional, uma delas Tartufo Desmascarado”,não raro exaltando a Josef Stalin por suas ações decisivas no sentido de que a União Soviética viesse a tornar-se superpotência em tão pouco tempo. Outro livro de Sousa do Prado, de cunho, segundo suas próprias palavras, espiritista, não propriamente espírita, posto que se considerava o escritor um estudioso da fenomenologia do espiritismo como ciência, relata suas experiências neste campo ao fotografar a aura de diversas pessoas utilizando uma câmera especialmente adaptada para isso. Antecipava-se, assim, ao lançamento pelos soviéticos da máquina Kirlian, destinada a fotografar auras e que logo correu mundo.
Lembro-me de Sousa do Prado a pedalar uma bicicleta olímpica, proporcional à sua altura, aquele que, no basquete, fosse um atleta, seria capaz de fazer quantas cestinhas quisesse sem tirar os pés de campo. Era o homeopata da ABDE a fazer da bicicleta o seu único meio de transporte, a recolher mensalmente dos associados, como tesoureiro e cobrador, suas contribuições para a manutenção da entidade.
Morava longe do centro da cidade, em Buraco do Juca, praticamente no bairro niteroiense de São Januário, onde montara um laboratório de manipulação homeopática sem fins comerciais. Para suas experimentações no diagnóstico e no combate a várias doenças. O câncer, por exemplo, provocava-o nele mesmo, na mão esquerda, porque a direita, ele explicava, tirante, a rigor, os canhotos, era para os cumprimentos. A cada sessão da ABDE, aparecia o escritor homeopata, ora com a mão esquerda enfaixada, ora sem nenhum ferimento nela. Alguém com algum problema de saúde, em qualquer parte do corpo, podia contar com Sousa do Prado, que já na próxima sessão vinha com aqueles seus vidrinhos da homeopatia aos quais não negávamos fé.



21. Ficou o ursinho Misha


Paravam as máquinas de escrever na redação de O Fluminense, o bom e velho Alcides, já aposentado como revisor de textos para o linotipista compor após passarem pela diagramação - há séculos, dizia-se, sem arredar pé do jornal que era sua família – a cada expediente, que não deixava de cumprir como se estivesse na ativa, descansa a sua inseparável Parker 51 sobre a mesa para assistir na tevê à abertura das Olimpíadas de Moscou. O senhor Alcides, a caminhar para os 90 anos, recolhia-se em um asilo mantido pela Beneficência Portuguesa no outeiro da rua da Conceição, próximo ao seu hospital. Não fazia seu trabalho agora espontâneo junto com os revisores de textos já compostos, estes, numa sala da oficina.
De sorte que revisava textos de repórteres e redatores a um canto da própria sala de redação. Gente da oficina que subia à redação naquela tarde por algum motivo parava diante da tevê para olhar um pouco. O senhor Alcides não despegava os olhos de toda aquela imponência dos russos. “E ainda falam deles... – um gráfico comenta a seu lado – que comem criancinhas etc...”. O senhor Alcides esboça um sorriso, até que não se contém: “Com toda esta idade que pesa sobre mim, sinceramente, jamais tinha visto um espetáculo como este, magnífico! Morresse hoje, morreria com a convicção de se tratar do maior espetáculo da Terra, difícil de repetir-se em alguma das próximas olimpíadas”.
Tinha razão. Vieram as Olimpíadas de Los Ângeles, quatro anos depois. Um fiascão, diria aquele gráfico ou, sei lá, não teria dito em sua proverbial irreverência?!. Seguindo-se memorável sorriso do senhor Alcides... Deus o tenha, e perdoe, se puder aqueles que derrocaram a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Pelo menos, ficou na memória e no coração da Humanidade o ursinho Misha, mascote das Olimpíadas de 1980, a testemunhar que nem tudo está perdido. Ficou a lembrança da beleza e vigor das danças regionais, que mostraram a história de cada região de imenso e rico território. De uma perfeita coordenação de movimentos artísticos. Sobretudo, o alto nível de conhecimento do que o homem pode realizar pelo bem comum.
As Olimpíadas de Los Ângeles, à diferença, enorme, das de Moscou, apresentaram em sua abertura e no encerramento, como é do feitio do americano do Norte, o quê? Pelo que vimos, de interessante?, nada mais que tristes e enfadonhas réplicas do Velho Oeste com suas diligências e outros arremedos de uma tradição de desbravadores de terras, que não lhes pertenciam, dizimando indígenas, e que, hoje, envergonharia Lincoln.


22 - O engenheiro e o trombonista

Uma parada de trem a lembrar um desses aprazíveis recantos de turismo, localizada a uns dois apitos da sede municipal - Laranjeiras, o Engenho Central convidava-nos para seus bem cuidados jardins, numa praça a que não faltavam balanços e um chafariz. Dr. Péricles, um engenheiro que parecia ter avançado no tempo por suas invenções de alta utilidade, de uma engenhosidade que só o domínio de sólidos conhecimentos de eletrotécnica podia comprovar, era dono de tudo ou quase tudo que havia por lá. De um hospital muito bem equipado, um clube recreativo que nos fins de semana dava bailes animados por conjuntos musicais de cidades vizinhas, uma fábrica de caramelos que empregava praticamente a população local... Falava-se, inclusive, que o meio circulante de Engenho Central era de sua própria criação, ou seja, um sistema de vales, dentro da lei. Com a atenuante de que, caso alguém fosse viajar, não haveria problema: fazia a troca dos vales de acordo com a lei que regulava o sistema financeiro nacional. Ninguém reclamava de estar levando na cabeça... Fato é que, pelas línguas que se batiam, não havia quem desembolsasse coisa alguma por certos serviços públicos, como o hospitalar, a não ser nos atendimentos recebidos saindo-se de Engenho Central.
Eu era rapazola, estudante, quando conheci o pequeno mundo do Dr. Péricles. Funcionários dele levaram-me para lanchar em seu curiosíssimo escritório, ou moradia - não dava para distinguir bem o que era de verdade – e fiquei deslumbrado com o que via: uma faixa rolante de serviços de bar parando à frente de cada um de nós, a deixar micro-sanduíches de queijo e outros recheios, refrigerante e caramelos da fábrica do Dr. Péricles. Olhando mais acima, nova faixa rolante de serviços, desta vez de lava-pratos, talheres e demais utensílios de copa e mesa.
À noite, subo ao palco do clube de Engenho Central como crooner de um regional formado por Helinho, no sax, Joel, no piston, “Biju”, no trombone de vara, e Marcos de Clara na bateria. Interpreto um sambinha supimpa da autoria de “Biju”, agente da estação da Leopoldina em Boa Sorte.
Edson Fonseca, que era responsável pelo hospital do Dr. Péricles, batia palmas. E eu cantando: “Amor é sonho, é fantasia/ é ilusão/ que a mocidade faz viver no coração./ Depois que vem o desengano/ finda a comédia, acaba a farsa, desce o pano”... Lamento não ter guardado na memória a segunda parte, que seguia a linha melódica da primeira com rara singeleza e que bem podia ter-se perpetuado nas vozes de Ísis e Luma de Oliveira, filhas do agente ferroviário que, entre um trem e outro, teve tempo de ser trombonista e compositor.



23 – O cocheiro dos Hegdorn

Se havia em Rufino do que se orgulhar era daqueles dentes firmes e fortes que mostrava com um sorriso de marfim rangendo-os para que todos ouvissem, repetidas vezes, depois de lavá-los, no bochecho, a cachaça do alambique da fazendinha dos Hegdorn. À vista de quem passava na estrada, a fazendinha se destaca por cercar-se de atraente bosque. “Vamos à festa de Santo Antonio?” - ao patrão perguntava, e seu Hegdorn lhe respondia que sim.
Rufino era o cocheiro dos Hegdorn. Ajeita o acolchoado da carruagem para os patrões se acomodarem, dona Célia sobe pelas mãos do seu Antônio, que se apruma na bombacha e sobe. Rufino senta-se na frente, chicoteia de leve pelos lados e os alazões ganham a estrada.
“Amarrou bem as prendas aqui atrás Rufino?” – indaga dona Célia Hegdorn. “Tudo bem atado, patroa”. E os alazões se vão, potoc, potoc, potoc... ganhando estrada, potoc... - altivos. Já na entrada de Boa Sorte, Ôoo! as prendas oferecidas pelo casal Hegdorn são encaminhadas ao coreto da pracinha da igreja do padroeiro da vila para o leilão em benefício das obras sociais da paróquia.
Os festeiros rodeiam o padre, aguardando instruções sobre a hora em que deve começar o leilão. O padre empina-se para o espaço a fim de ver como está o tempo. “Não vai chover não seu padre”, diz um festeiro. Um foguete chia para os lados da fazenda do dr. Chicão, explode bem no alto. “Podemos lançar os nossos padre?” A um gesto afirmativo, um a um foram subindo os foguetes. Já a essa altura, Clara juntava as Filhas de Maria para a procissão com o andor de Santo Antonio. A banda de música, que viera de Cantagalo, tomava posição, e o maestro levanta a batuta. Ouve-se a música religiosa de estilo, dando início a procissão. O padre a frente, logo atrás dele um convidado ilustre da região segura uma enorme vela. Os acompanhantes seguem entoando: “Oh virgem... queremos Deus, que é o nosso rei, queremos Deus, que é o nosso Pai”... Há um espocar sucessivo de fogos, desenha-se no céu a imagem de Santo Antonio.
Rufino toma umas e outras a um canto da festa, porque nas barraquinhas permitidas pelo pároco, de álcool, só sai quentão. Alguém que já sabe o que Rufino fará traça um círculo no chão para ele pular dentro. E Rufino começa: “Eu nasci de um pingo, de um pingo fui criado... Eu nasci de um pingo”... Mais um foguete sobe... Do coreto, rica peça comprada em Paris, pelo que se ouve aos ombros, oferecimento de dona Berta, é exibida, muitos olhos em cima. O leiloeiro: Uma peça parisiense, da cristaleira de dona Berta. Dou-lhe uma... Dou-lhe duas... Joãozinho de Abreu acompanhava.
Sobe mais um foguete, os cavalos da carruagem relincham, Rufino retira de um saco algo que comer para os alazões. Rufino dá um pouco de feno ao cavalo do padre que prefere voltar montado para Santa Rita do Rio Negro, agora Euclidelândia, homenagem a Euclides da Cunha - a pegar o trem especial que trouxera de Cantagalo a banda de música.
O casal Hegdorn toma sua carruagem, Rufino chicoteia, de leve, para os lados, os alazões e clareia a boca com aquele sorriso de marfim potok... potok... potok...


24 - A onça e os carecas

Só gente de muito longe, de passagem por Cantagalo e pelas bandas de Itaocara, Pádua e outras praças, a acompanhar até de onde se via uma capoeira a linha do trem, não entrava para um corte à vontade do freguês ou pra aparar o cabelo, ou ouvir bons dedos de prosa. De pé na porta de sua barbearia, em Cantagalo, a fim de ver quem era, a navalha fechada na mão, “porque sou louco de arriscar-me a uma briga de navalha?- – dizia com um sorriso a balançar o queixo, e depois de mirar bem o sujeito, se vira para uns três fregueses que o aguardavam: “É um andarilho, que não faz mal a ninguém. Bem, pessoal, quem se anima a caçar ouriço caixeiro? – brinca, a tesoura entre os dedos, atendendo um freguês. Crak, crak, crak... Lacordaire está convidando para uma caçada no matão dos caxinguelês, lá perto do Amazonas, onde Aristides – não foi Aristidinho? – chegou a engatilhar para uma onça que o olhava, tristonha, uma lágrima a cair, e teve pena dela. Crack... crack. Recolheu a espingarda e, para não voltar com as mãos vazias, trouxe de lá um mico.
Zinho Barbeiro ajeita o espelho atrás da cabeça, o freguês aprova sem deixar de perguntar se era mesmo verdade aquela história do tapete voador.” isso é do tempo em que seu Euclides Santana e outros caçadores de boa mira da nossa Cidade dos Melros atravessavam noites arranchados numa clareira matando muriçocas enquanto não vinha o sono”, observa Zinho Barbeiro. Crack, crack, crack...
“Zinho! A Festa dos Carecas tá chegando. Vem gente de longe, como das outras vezes”, um freguês careca-senior alisa a cadeira por baixo. “É...”, Zinho devolve. Mas a minha freguesia com poucos cabelos vai continuar precisando de se livrar dos cabelinhos no nariz e nas orelhas, além de acertar as sobrancelhas. Quanto ao Aristidinho, com este cabelo de galã de cinema, está fora da festa” ...crack.
A Festa dos Carecas é das mais tradicionais do Centro-Norte fluminense. Em seguida vêm os festejos da famosa Exposição Agro-Pecuária de Cordeiro, uma cidade cujos moradores sempre andaram às turras com os de Cantagalo, e vice-versa, por causa de futebol. Saíam no braço antes e depois do jogo. Trem especial fazia o retorno da torcida e dos jogadores, dependendo de onde se ferira a partida, a Cantagalo, onde o expresso chegava de viés esperando-0 o agente seu Falcão com dona Mabília atrás de de um tabuleiro na janela da estação, a servir café com bolinhos, e a Cordeiro, ponto de almoço farto no meio da tarde, coincidindo com a hora do trem.
Mais assunto para a barbearia, à qual não faltava aquela revistinha A Careta, de crítica política e versos de Bastos Tigre. Indispensável àquele tempo numa barbearia que se prezasse, tanto quanto, hoje, o noticiário esportivo.
“Zinho!” – um freguês chegara há pouco, a Festa dos Carecas deve ter sido criada com os primeiros cordões puxados daquela marchinha carnavalesca... À exceção dos cabeludos, na barbearia, em uníssono: “Nós, nós os carecas... com as mulheres somos maiorais”...
“É... Só pode ter sido”, responde o barbeiro.
E o almanaque do Capivarol garantia que o óleo de ovo realizava milagres. Fazia nascer cabelo na mais luzidia das carecas. Havia, porém, carecas que não estavam lá muito preocupados com este detalhe, “pois... na hora do aperto... é dos carecas”...


25 – O golfinho da Barra

Roberta vem cavalgando o seu golfinho por águas da Barra da Tijuca, pára e me pergunta se quero uma carona. Respondo-lhe que fica pesado demais para o golfinho. E ela: “Nada disso, porque daqui a pouco, você verá, ele estará com um corpo proporcional ao nosso!” Estala-me cá dentro uma exclamação de certa incredulidade. Em todo caso, espero. Num estalar de dedos, eis o golfinho já de nosso tamanho, ou quase, Roberta deixa cair um braço como me convidando a subir e seguro-me em sua cintura, como faria se minha golfinista estivesse no selim de uma moto.
“Legal!” - uma menina a olhar a cena com muito interesse aplaudia... “Nunca a vi por aqui”, diz Roberta, descendo do golfinho, e a acompanho. A menina corre em nossa direção. Aperta, primeiro, a mão de Roberta e logo se identifica: “Lá onde moro, chamam-me de Cacau, mas meu nome mesmo é Claudiane”. “E onde mora?” – indaga Roberta. “Em Maringá, Estado de Mato Grosso”. Carol, voltando do banco em que trabalha, cantarola: “Maringá.... Maringá... la-la-ri do meu sertão”... “Falam que essa música é bem antigona – diz Cacau - mas ainda cantam muito ela por lá”
A garota aponta para mais adiante de onde estávamos: “São os meus pais”. Estirados sobre toalhas na areia, acenam para a gente.
“Oi, mãe! Oi, pai! Encontrei o Fernando Henriques!”
“Quem?”
“Fernando Henriques, o do blog!”
“Ah, sim! Muito prazer!” – diz a mulher, erguendo a cabeça para estirar-se de novo.
Estavam passando dias na Barra. “Alugamos uma casa bem perto daqui; daqui se vê” – Claudiane mostra. E Roberta: “Quer dizer que somos vizinhos de temporada”.
“Vocês moram aqui também? Ou estão a passeio, como nós?”
“Eu e Carol, aquela moça ali, moramos na terceira casa após a sua”.
A menina quis saber como veio parar ali na Barra o golfinho fantástico.
“Ele veio no tempo – respondo – de muitas e muitas luas, de muitas décadas atrás. Ele vem denunciar essa poluição... – Cacau não entendeu bem. – Todo esse lixo que jogam na água e vem sujando, envenenando a Baía de Guanabara, cada vez em maior volume de sujeira, acabando com os nossos peixes, tendo já acabado com os nossos golfinhos”.
“Quer dizer que eles existiram mesmo!” – Cacau se coça atrás da orelha.
“Sim, Cacau”, respondo. ”Não eram como nosso golfinho fantástico, que existe só enquanto o vemos e sentimos. Ao pormos os pés fora da praia, ele... pluft!”.
“Some!”
“Isso. Já aqueles que brincavam saltitantes sobre as águas em piruetas de palhacinhos de circo para quem passava de barca entre o Rio e Niterói...”
“Não existem mais, não é Fernando Henriques? O que é pena”.
“Mas jamais deixarão de existir em nossa lembrança, em nosso passado”... Cacau pega no braço de Roberta: “Tenho uma surpresa pra você. Olhe!”. Era uma foto de Roberta a cavalgar o golfinho fantástico da Barra. A mãe de Cacau já recolhendo as toalhas a chama.
“Estou indo, mãe!”. E virando-se para Roberta: “Pego depois com você a minha câmera, tchau!”


26 - A garrafinha e as três bicas

Meu primeiro vôo de helicóptero era pilotado por uma jovem aluna de um aero clube de Niterói, quando pelos nossos ares cruzavam pipas e não balas de metralhadora, o vento das hélices a espalhar crianças à saída de escolas. Era uma reportagem minha e de Lívio Campos, dele a cobertura fotográfica, para o diário O Estado, empresa coirmã do vespertino A Noite. Sobrevoamos em céu de brigadeiro bairros e morros da “banda d´além” da Baía de Guanabara, O Estado foi o jornal em que conheci Eduardo Santamaria, secretário de redação, Hesíodo de Castro Alves, Heitor Gurgel, que se dividia entre O Estado e A Noite. Pouco antes, quando ainda procurava fazer-me jornalista, inscrevi-me no Concurso do Conto Curto promovido pelo suplemento literário Prosa $ Verso, encartado naquele matutino e dirigido por Marcos Almir Madeira e Sávio Soares de Sousa. Juntara-se a essa promoção a Livraria Ideal, de Mônaco Silvestre. Ganhei o concurso com o conto Maneco Antes das Eleições. Algum tempo depois, sai de circulação O Estado, e o suplemento Prosa & Verso passa a ser editado por O Fluminense, órgão sob a direção de Alberto Francisco Torres, que era também seu proprietário.
E que dizer do Diário do Povo, que, falava-se, lhe deram sumiço para encobrir sonegação fiscal? Quanto a mim, entretanto, não tenho do que me queixar da folha de José de Mattos, muito bem editada, por sinal, tendo García como secretário dos mais competentes, ainda vivendo a era da caneta e das aparas de papel de que se servia para as titulações e as próprias matérias que redigia. Facto é que foi o Diário do Povo o primeiro a abrir espaço para que eu mantivesse uma coluna política no segundo caderno até o dia em que a Coca-Cola decide pôr fim às minhas críticas, de pernas curtas, à política internacional tal como estava sendo conduzida pelos Estados Unidos da América. Isto, abrindo seu cofre à propagada do refrigerante no Diário do Povo. A minha coluna tinha por título “Por trás Chapinha” e era ilustrada por Aurélio Zaluar. Do outro lado da chapinha, ao contrário do mundo de coisas boas”, como constava no anúncio imperialista, eu mostrava as mazelas do capitalismo, Vez e outra, saía na “Imprensa Popular uma nota sobre assunto abordado na coluna. Até me levarem, sem que eu soubesse, a um depósito da Coca-Cola que estavam inaugurando em Niterói. Mal cheguei lá, puseram em minhas mãos uma garrafinha de Coca-Cola. Tomei, constrangido, um gole e na primeira oportunidade, enquanto discursavam, deixei cair a garrafinha numa lixeira.
Nada recebia por aquela coluna em remuneração, mas ela abria degraus, como O Estado, com a diferença de que este pagava-me regularmente, a fim de que galgasse a imprensa carioca.
E José de Mattos? Figura curiosíssima, de um lado, e, de outro, um empreendedor, sem dúvida, conforme os costumes da terra. Certa ocasião, o seu jornal amanhece brandindo a seguinte manchete: ‘Lealdino Alcântara, um machão na Prefeitura de Niterói”.
A manchete valia quanto pesava.
Ah meu primeiro vôo... De não esquecer, também, a viagem de teco-teco, já na era JK, de Goiânia até ao Planalto Central antes da construção de Brasília, com pernoite na colonialíssima Luziânia, cidadezinha que exibia uma fonte de água de que o povo tanto se ufanava, por sua cristalinidade. Quem bebe desta água das três bicas, dizia, estufando-se, um menino da divisa de Luziânia com solo das Minas Gerais, aqui fica!

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Do desembarque na Normandia ao mistério do "mar de lama"


in memoriam
Gilda Braga Linhares
Nelson Werneck Sodré
Tarcísio Tupinambá

parte I


Em junho de 2009, Estados Unidos, Inglaterra e Canadá comemoravam junto ao Monumento e Cemitério de Colleville-sur-Mer o 65º aniversário de um facto histórico levado ao ar e às impressoras do mundo ocidental, além das linhas de telégrafo, nas barras dos anos 40, como Dia D. Era o desembarque anglo-norte-americano e canadense na Normandia, que na visão de estrategistas do Leste Europeu fora precipitado. De todo modo, o Dia D entrou para a História militar do Ocidente como epicentro da Segunda Grande Guerra.

Ao discursar na cerimônia em memória dos mortos na Batalha da Normandia, ao Norte de Paris, o presidente Barack Obama demonstrou vivo reconhecimento pelo que esse conflito teria trazido para ambos os lados do Atlântico: o progresso ao longo do Século XX. Em verdade, o progresso para os países ricos, visto que os pobres, do lado Sul do Atlântico, consumando-se a predição ou intuição de Getúlio Vargas, então presidente do Estado Novo brasileiro, ficaram ao deus-dará na divisão dos espólios de guerra entre as potências vitoriosas.
O Brasil só deslanchou no pós-guerra à custa de arrastadas negociações, pouco éticas, por sinal, com os norte-americanos e os ingleses (ver parte II de Do desembarque na Normandia...), sem que lhe aparecesse outra alternativa, coerente com suas melhores tradições, para seguir em frente - fosse marcando passo - na retaguarda da civilização. Antes do Ciclo Vargas, o Brasil vivia ainda na Idade do Bicho da Seda.
E a versão que mais se aproxima da exatidão dos acontecimentos que se seguiram à ocupação de parte da França pelos nazis na década de 40 é a que sugere uma divisão de poderes em Paris entre a Alemanha, propriamente, e o regime de Vichy, a colaborar com os invasores. Estes, apoiados pela ultradireitista Accion Française de Charles Maurras, cujo lema era Família, Trabalho, Pátria. Numa projeção para o futuro, no Brasil seria, nos “anos de sufoco” da década de 60, a ultraconservadora TFP, sigla de Tradição, Família e Propriedade, a acobertar grandes latifundiários de pé contra trabalhadores rurais acusados de comunistas por reclamarem terras para plantarem. Ganharam os tefepistas, por isso, cadeiras no Congresso Nacional. Tendo avançado raízes a terras portenhas, a TFP se pôs do lado da Coroa britânica e seu apoio logístico – os Estados Unidos da América – na Guerra das Malvinas, publicando sucessivas matérias, pagas a peso de ouro, em periódicos argentinos, a classificar de comunistas os partidários da campanha “las Malvinas son argentinas”. Uma guerra patrocinada e abastecida pela OTAN, Organização do Tratado do Atlântico Norte, com a colaboração, nas sombras, do Chile de Pinochet, contra a soberania da República Argentina sobre as ilhas descobertas por marujos franceses. E muito antes de navegarem por lá os piratas de S.M. a Rainha dos Mares, ao contrário do que derrama a literatura anglo-estadunidense mundo em fora.
Em Colleville-sur-Mer, vem à tona a situação no Oriente Médio, tendo-se notado estreita afinidade de pensamentos entre Barack Obama e o presidente francês, Nicolas Sarkozy, em que “um Irã com armas nucleares é motivo de preocupação, não só para Israel e Estados Unidos, senão para toda a comunidade internacional”. Obama observou, porém, que sua administração queria “abordar esse problema mediante negociação com o regime de Teherã”. O presidente americano viu os frutos da II Grande Guerra em boa colheita, em sintonia com os anseios da Humanidade, sublinhando que o confronto de seis de junho de 1944 “por um pedaço de praia de só sete quilômetros de largura por três de extensão” fora determinante para que o mundo despertasse de um longo e extenuante pesadelo, o mais sombrio de todos os tempos. Verdade se diga, já quando as forças nazistas haviam deposto suas armas, rendendo-se aos soviéticos em Berlim.
A data de 6 de junho assinala, ademais, a chuva de jovens paraquedistas de um front ocidental improvisado, a cair sobre praias com seus botes, em águas gélidas da Normandia e na linha de fogo intermitente do inimigo, misturando-se às névoas desprendidas do espaço aéreo de uma Paris ocupada.
Acrescente-se que quando se deu o desembarque na Normandia as forças soviéticas reagiam estoicas, em seu próprio território, ao avanço dir-se-ia, contraditório em princípio, de feras acuadas, até as baterem, uma a uma, em sangrentos combates. Lê-se na Wikipédia, a Enciclopédia Livre, que a Batalha da Normandia “foi uma grande jogada política para manter a hegemonia ocidental na Europa, tendo em vista a iminente derrota alemã para o Exército Vermelho, que vinha derrotando os nazistas sucessivamente desde a famosa Batalha de Stalingrado”.
Portanto, bem à diferença do que a mídia norte-americana vem passando à opinião pública décadas a fio, a Batalha da Normandia pouco influiu na solução do conflito, servindo apenas como ponte referencial no episódio da libertação de Paris, inclusive pelo facto de o marechal Petain parecer mandar tanto ou mais que os titulares da ocupação de uma cidade praticamente dividida, ou repartida. E note-se que Hitler entrou em Paris como para emoldurar-se com o Arco do Triunfo.
O triunfo, entretanto, desenhava-se era nas neves russas que já se prenunciavam quando os generais do Fuhrer preparavam suas divisões para uma investida pretensamente conclusiva no verão. Quando as neves caíram como uma bênção e às avalanches sobre o front gigantesco que, margeando o rio Volga, as recebia quais reforços de tropas, soviéticas, muito bem treinadas e, sobretudo, acostumadas a duras intempéries.
Os alemães, enfiados em “simples uniformes de algodão”, conforme relatos apressados mas de todo confiáveis, extremamente dramáticos, feitos nos diários de guerra dos oficiais nazistas, entre eles von Friedrich Paulus (1890-1957), que comandou o 6º Exército do Terceiro Reich na Batalha de Stalingrado, a enfrentarem, centenas e centenas estirando-se congelados sobre neves glaciais, quedas de temperatura aproximadas dos 45 graus abaixo de zero!
Vem agora o presidente norte-americano declarar na celebração de Colleville-sur-Mer que “nenhum homem que tenha derramado seu sangue ou que tenha perdido um irmão pode dizer que a guerra é boa, porém todos sabemos que essa guerra foi essencial” (in El País, es.(6-6-2009). Refere-se, naturalmente, à guerra levada pelos Aliados do Ocidente até à metade do percurso mapeado a percevejos niquelados , até ao lançamento, pelos Estados Unidos, das bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, em resposta (!) ao ataque da aviação japonesa à base aérea estadunidense de Pearl Harbour.
Porque a chamada Grande Guerra Patriótica, a impulsada do Leste Europeu, culmina
com a rendição dos alemães aos soviéticos no coração de Berlim, seguida do hasteamento, no alto do imponente edifício do Reichtag, da bandeira a tremular com os símbolos da foice e do martelo. O sonho às avessas de Adolf Hitler, que sofria da miragem de lhe estenderem tapetes para sua entrada triunfal no Kremlin. Em linha doutrinária que, desatada de Washinton, à mira dos fortes Apache da logística do Pentágono, acaba afinando-se ao sonho americano de derrotar a URSS a socos de heróis de celulóide revelados pela Guerra Fria. Ou, expressamente, de infiltrações persistentes no sistema russo, a mesma tática adotada, em vários momentos da História, em países da América Latina e o Caribe. Sem falarmos nos horrendos crimes praticados no Vietnã, em outras insânias do imperialismo ocidental, na covarde destruição de Bagdá, um dos mais ricos acervos arquitetônicos e documentais da História da Humanidade, motivo de instigante e irretocável artigo de Mansour Challita publicado no Globo, do Rio de Janeiro, em 24 de fevereiro de 1991, tendo por título “Bagdá, a bela”.
Premiem-se, por instantes, com um passeio por este texto de Challita: (...)“Bagdá foi fundada em 762 nas duas margens do rio Tigre, a 450 quilômetros do Golfo Pérsico. Mas antes dela, a terra onde ela se situa já era palco de grandes civilizações, notadamente a Assíria e a Caldéia. A civilização assíria, talvez a mais antiga de todas (dizem as lendas que Assur, seu fundador, era neto de Noah) destacou-se pela força e a organização. E também pela cultura. A biblioteca particular do rei continha mais de 4.000 manuscritos, redigidos em caracteres cuneiformes.
A civilização caldéia distinguiu-se pelo seu culto à alegria de viver. Sua capital, Babilônia, é chamada a Paris do mundo antigo, porque, como Paris, era um centro de diletantismo e de divertimento. A mulher babilônica era a mais emancipada do Oriente. A rainha partilhava com o rei os encargos do governo. Vênus, adorada também lá, era representada sob a forma de uma mulher em pé sobre dois leões: a força submetida à beleza.
Quando Bagdá foi fundada pelo califa Al-Mansur herdava aquelas tradições. Sob o califa Harun Al-Rachid (768- 809) ela se tornou uma cidade única no mundo. Capital do império árabe e da cultura árabe, era ao mesmo tempo uma cidade rica, poderosa, culta, emancipada, alegre. Lá eram concentradas as mulheres mais lindas e os tesouros mais preciosos do mundo, e também os maiores poetas, escritores, músicos, arquitetos, matemáticos, médicos, astrônomos, tradutores.
Os califas eram protetores generosos das artes e das ciências. A primeira tradução de Aristóteles foi paga, seu peso, em diamantes. ‘As mil e uma noites’, cujo ambiente principal era a Bagdá de Harun Al-Rachid – refletiam nas suas histórias cheias de feiticeiros que descobrem em toda parte montes de ouro, prata, diamantes, pérolas - o luxo insuperável daquela metrópole” (...)

Descerrado todo um quadro de esplendor, num texto digno de figurar nas melhores antologias, sem omitir os períodos de invasões pelos bárbaros saqueadores a partir do Século XIII até chegar à Primeira Guerra Mundial, Mansour Challita passa às estrepolias do império da modernidade:
(...) “Desde então, e após uma época de colonização britânica (1917-1932) Bagdá tem tentado readquirir algo de seu antigo esplendor. Incentivou o artesanato de tapetes coloridos, que evocam a vida alegre de ‘As mil e uma noites’. Aproveitou suas riquezas petrolíferas para criar uma economia próspera. Edificou três universidades. Cuidou de seus museus onde as glórias do passado sonham com glórias futuras. Quis também ser uma potência militar e invadir seus vizinhos (esquecendo que isto não é permitido a todos).
Bagdá foi submetida dia e noite a uma chuva ininterrupta de bombas destrutivas que nem os mais macabros contos de terror anteciparam. Será dito um dia que o que os tártaros, mongóis e turcomanos não conseguiram destruir da bela Bagdá foi destruído pela maior democracia do Século XX em nome da justiça e da liberdade?”.

Em dezembro de 2006, Saddan Hussein é levado à forca no Iraque pelos Estados Unidos da América, que se mostravam dispostos a assenhorear-se até a última gota e a qualquer preço, como sempre foi do seu feitio agir, do petróleo no Oriente Médio. Uma execução estúpida, de uma covardia sem par, na qual o líder iraqueano dispensou a venda nos olhos, mirando de frente o carrasco. Ele reclamava julgamento, imparcial, num tribunal internacional, de que os Estados Unidos haviam logrado escapar, pelos crimes cometidos no Vietnã, os maiores de todos os tempos, apesar dos incansáveis esforços de Bertrand Russell para que ‘a maior democracia do Século XX’ fosse encaminhada ao banco de criminosos de guerra.
E, assim, se formou o Império Americano. Esquecendo-se apenas de pendurar o retrato de Adolf no Salão Oval da Casa Branca.
Não existindo mais União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, nem o Muro de Berlim, nem se tendo constituído uma nova potência, ou superpotência, mundial em condições de fazer face a um império emergido de um passado recente, a China a cumprir sua destinação enigmática, que diferença faria se descendentes ideológicos do Fuhrer se pusessem agora em marcha batida rumo a um sítio ideal? Talvez por isso a Rússia de Putin mantém os mísseis da antiga URSS não desativados mas, ao contrário, apontados para os nódulos nevrálgicos do Ocidente.
Estendam na parede do quartel-general o mapa do mundo, preguem alfinetes niquelados nas zonas de progressão castrense. Observem que em 1941 a Alemanha já havia tomado a Polônia e que suas presas subsequentes seriam a Tchecoslováquia, a Bélgica, a Holanda, a Dinamarca, a Noruega e a França, nesta ordem.
E, “apesar da derrota (para os russos, já em Berlim), os círculos militares da Alemanha não abdicaram dos seus sonhos doentios de conquista e domínio mundial (A Batalha de Stalingrado, Edições da Agência de Imprensa Novosti, Moscou). Os governos da Inglaterra, França e Estados Unidos acalentavam tais sonhos, pois consideravam o militarismo alemão como principal força de choque contra a União Soviética. Somente entre 1923 e 1929 a Alemanha recebeu cerca de 4 bilhões de dólares de empréstimos estrangeiros, dos quais mais da metade – 2,5 bilhões de dólares – foram obtidos nos Estados Unidos.(...) Estes elevados montantes permitiram aos militaristas alemães reerguer a sua indústria bélica e formar um vasto exército equipado segundo a última palavra da técnica”.

Isto significa que, caso os alemães tivessem chegado ao término da guerra com a força que lhes atribuía a Norteamerica, capaz de bater os russos, Washington e a Berlim do Terceiro Reich se teriam unido no combate, não ao terrorismo de após Guerra Fria - das brumas do Oriente Médio - mas ao comunismo, ou socialismo - tanto faz..

Os Estados Unidos mostraram, mais uma vez, as suas unhas fascistas no regime terrivelmente caricato do macarthismo, criado pelo senador republicano Joseph McCarthy e denominado pela grande e corajosa dramaturga judia Lillian Hellman de ‘a caça às bruxas’, título de um de um de seus livros, assim traduzido no Brasil do original Scoundrel Time, no qual ela relata, sem meias palavras, pífias acusações de agentes do comunismo internacional assacadas contra autores e artistas de Hollywood, a intelectuais de um modo geral da pátria de Lincoln. Lillian foi quem enfrentou cara a cara os inquisidores da Casa Branca. Não houve fogueira, mas cadeira elétrica na prisão de Sing-Sing para o casal Rosenberg, os judeus Julius e Ethel, acusados sem provas de passar segredos nucleares aos soviéticos.
E Lillian Hellman, cujas peças, várias premiadas, foram reunidas num volume por título The Collected Plays, escolhida por críticos de arte a Mulher do Ano em 1973, Medalha de Ouro para Drama, concedida pelo National Institute of Arts and Letters, entre muitas outras distinções, acaba camareira num hotel de Nova York.

"Armistice? ! Non!" "Capitulation?!" Oui !"



Graça Aranha em Paris


I n t e r m e z z o

“Armistice?! Non!” "Capitulation?! Oui!"


Ao término da I Guerra Mundial (1914-1918), Graça Aranha, autor de Canaã, membro da Academia Brasileira de Letras e que era, então, embaixador do Brasil na Holanda, encontra-se em Paris com Maurício de Medeiros (1885-1966), ensaísta, jornalista e psiquiatra, que entre outras obras deixou Idéias, Homens e Fatos, publicada em 1934, ano do falecimento do seu irmão, o refinado poeta pernambucano Medeiros e Albuquerque, e Inconsciente Diabólico. Maurício de Medeiros era carioca da gema. Foi ministro da Saúde em dois governos: de Nereu Ramos e de Juscelino Kubitschek.
Transpirava elegância, o testemunho de quantos com ele conviveram. Em seu discurso de posse na Academia, ocupando a cadeira nº 38, patronímica de Tobias Barreto, Maurício de Medeiros abre seu discurso rendendo sentida homenagem à memória de Medeiros e Albuquerque, irmão quase um pai, dizia. Maurício de Medeiros especializou-se em medicina psiquiátrica na França de 1906 a 1907.
Em Paris, outubro de 1918 desfolhava-se, a Prússia do Kaiser Guilherme II a descansar armas, e entre as forças aliadas corriam rumores de armistício em curto espaço de tempo. Os franceses, com os belgas, primando pela tradição de sempre perseguirem a vitória até o fim, forçam a retirada dos alemães de suas fronteiras.
Maurício de Medeiros, no ardor do discurso pronunciado na Casa de Machado de Assis, conta que, achando-se também Delgado de Carvalho, nessa ocasião, em Paris e por cultivar devotadamente a língua francesa para sair-se bem em sua cátedra e nas animadas e inteligentes papotages dos sofisticados cafés parisienses, a escrever em francês a la pata llana, como diriam os vizinhos madrilhenhos, esmerando-se, por igual, na pronúncia, descobre Graça Aranha a dobrar uma rua. Aranha era sua vítima preferida de pilhérias por causa do mal francês que ele falava, ao passo que escrevia nesse idioma com toda correção, o que gerava um enigma na ponta da orelha ferinamente atenta de Delgado.
Em 1916 saía em Paris um livro titulado O Plano Germanista Desmascarado, com prefácio no tom e tinta de Vive la France!... de Graça Aranha e que já no ano seguinte chegava, em português, às livrarias brasileiras.
E estava o autor de Canaã parlateando numa roda de conhecidos da Europa a respeito da Liga da Paz, a intelectualidade brasileira a manifestar-se por esse diapasão, com algumas ressalvas como Capistrano de Abreu, que se inclinava pela Alemanha do Kaiser, e o que poderia vir depois. Viria a Liga das Nações, no umbigo da II Grande Guerra.
Despede-se, pois, Delgado dos conhecidos sem saber que, discretamente, Aranha o estivera escutando atrás de uma árvore ou de algum outro obstáculo. Até que Delgado dele se aproxima, abrindo os braços: “Graça Aranha! Como você está falando bem o francês!” O diplomata Graça Aranha encolhe-se em sua timidez: “Mas eu estava falando era em holandês...”
E pensar que, na véspera, em discurso que ele principiara pausadamente, o fechava com firmes e empunhadas palavras de ordem:
“Armistice? Non! Capitulation? Oui!!”
Os franceses vão ao delírio, numa ovação que se prolongou por quase uma hora.

domingo, 21 de junho de 2009

Do desembarque na Normandia ao mistério do "mar de lama"


Bico de pena de J. C. Heitor


parte II
Lá por 1930 é semeado em partes da Europa o nazismo, pretensiosamente apresentando-se sob a capa de nacional-socialismo no propósito, é de supor, de tornar a suástica algo atraente ou que fosse assimilável a um povo em que a religiosidade sempre fora um traço marcante em suas caminhadas na História. A ideologia nazis se alastra rapidamente, Adolf Hitler, já em cena, se alça ao poder na Alemanha. Tinha-se passado um decênio da celebração do Tratado de Versalhes, terminada a I Guerra Mundial. Por força do Tratado, a Alemanha, derrotada, entrega Alsácia Lorena à França mais outros antigos domínios a vários países, como à Bélgica. O Führer do Terceiro Reich acalenta a miragem de uma “nova ordem” sobre a Europa a fim de mostrar ao mundo, assim imaginava, a “superioridade” germânica.
Em 1º de setembro de 1939, a Alemanha invade a Polônia. A França e a Comunidade das Nações respondem com declarações de guerra. E o jogo principiava... A América a desempenhar o papel de espécie de árbitro de futebol, a salvo de contusões, com o livro-caixa em mãos e o revólver de John Wayne a fumegar no Velho Oeste – derrubando índios aos trotes para deleite de cinéfilos ocidentais.
Na América do Sul, no pampa gaúcho, um mestre das cavalgadas que, no mínimo de sua capacidade perceptiva, parecia saber muito mais além de nossa dimensão – ler, por exemplo, bolas de cristal – a estudantada nas ruas aos gritos de ‘guerra! guerra!” nas cercanias do Palácio do Catete, a exigir a presença do Brasil no front Aliado, bem provável que se perguntasse, afinal: “O que podemos ganhar indo a essa guerra senão algumas medalhas?”

Era o presidente Getúlio Dornelles Vargas, preocupado com a indigência do Brasil em indústria pesada, ao tempo em que, abrindo-se um livro escolar, se lia, invariavelmente, como sendo uma de suas principais atividades econômicas, na Velha Província, a do bicho da seda! Foi daí que os nazis, através de emissários devidamente agalardoados, se abalam até Vargas, oferecendo-se para construir sua siderúrgica, em troca de apoio estratégico à Alemanha.
Vargas discursa como em um palco na forma de um tabuleiro de jogo de xadrez, ele já um lendário cavaleiro dos pampas de Sudamérica. De sorte que não lhe foi difícil distrair os alemães com alegres noitadas em teatros da Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro, às quais não faltaram as mais recém-chegadas mademoiselles de Paris, enquanto os norte-americanos contavam e recontavam os dólares disponíveis para a implantação da siderurgia brasileira, sem que chegassem ao fim das contas...
Em Washington, sopram aos ouvidos de Eisenhower o tititicado “namoro” entre Vargas e Hitler, inclusive que a fábrica Krupp, alemã, já se preparava para erguer o que deveria ser a menina-dos-olhos de Vargas.
Num estalar de dedos, o governo americano desce em terras brasílicas com todo um aparato industrial-militar e firma o compromisso de erguer a usina de Volta Redonda. Os alemães se retiram, não sem terem deixado a suástica gravada em portas de milhares de casas localizadas em zonas rurais da Velha Província. Na região de Cantagalo, Centro-Norte do Estado do Rio, há muitos anos, veio às mãos do autor deste pequeno ensaio a foto de larga suástica estampada à testa de uma dessas casas, de colonos brasileiros, de uma fazenda nas proximidades da divisa com Minas Gerais. Se bem que a imigração germânica enraizara-se mais para o Sul.
E só nas condições ajustadas com o governo americano, cedendo a Base Aérea de Natal, Rio Grande do Norte, às Forças Aliadas, uma vez garantida a construção da siderúrgica, o Brasil declara, finalmente, guerra à Alemanha.
Em meio aos bombardeios distantes e às notícias contraditórias provindas do front europeu, estressados por vararem noites em claro ouvindo grilos e esmagando borrachudos a sopapo, os americanos desembarcados em Natal não encontram outro meio de espairecer senão acompanhar os passos do rala-bucho, à época uma dança campestre bem típica do Norte e Nordeste do país. Para eles, tornava-se muito mais fácil designar a dança por uma expressão extra-caserna: “for all”, quer dizer “para todos”. Mas “for all” acaba popularizando-se, em bom português, malgrado a corruptela de origem, como forró.
Dos alicerces à “corrida do aço” – parecendo-me acordes de O Guarani de Carlos Gomes -- a Companhia Siderúrgica Nacional, a entrar em operações em 1946 após 5 anos em obras, logo se constituiu em motivo de justo orgulho para o povo brasileiro, durante décadas, até ser lançada à roda de privatizações impulsada nos entreatos dos governos Fernando Collor de Melo e Itamar Franco, dentro do Programa Nacional de Desestatização. Um programa tisnado com o sangue de três baixas de operários siderúrgicos em confronto com guardas de serviço na usina entregue por doação – como se expressava Hélio Fernandes em sua Tribuna da Imprensa -- à iniciativa privada. Fernando Henrique Cardoso emergia ministro da Fazenda. Era o cérebro do desmantelamento das empresas nacionais; seu feito mais notável, ou repulsivo, neste particular foi a privatização da Companhia Vale do Rio Doce. Recorda-se que, ao se despedir do Senado a fim de assumir a presidência da República, Cardoso usou a tribuna para proclamar com a empáfia que lhe era peculiar “o fim da era Vargas”. Em seus delírios neronianos, chegou a maquinar a revogação sumária das Leis Trabalhistas, a pretexto de terem sido elas inspiradas em legislação de Benito Mussolini, aliado do Führer e do imperador Hiroíto. Ora! Seria o caso, então, de vetar-se aos quatro ventos toda a música legada por Wagner à sensibilidade de gregos e troianos...Sabendo-se que esse compositor alemão era o preferido de Adolf.
Ruminara também (!) a privatização do Banco do Brasil; seria por funcionar o clube do Bola Preta num sobrado em cima da agência central do banco, se bem que diferindo dela no expediente e com a entrada do lado?
Assim como procedera com os alemães e os estadunidenses, levando-os a um tabuleiro diplomático, para forjar o progresso nacional através de Volta Redonda, Getúlio Vargas negocia a derrogação de velhas concessões dadas, antes dele, à Inglaterra para exploração de ricos lençóis de minérios a se estenderem pelo vale do rio Doce. Derrogadas as concessões e, por consequência, restabelecido ao Brasil o direito natural de exploração de imensurável riqueza estratégica, até então em mãos estrangeiras, Vargas assina o decreto de criação da estatal Companhia Vale do Rio Doce, que muitos anos depois viria a sofrer o xeque-mate sobre as cinzas do mítico caudilho do pampa.
Os incidentes relacionados às vacilações de Vargas diante do problema das divisões territoriais já então projetadas para o pós-guerra, intuindo o presidente trabalhista que do conflito o Brasil pouco ou nenhum proveito teria, a não ser o cintilar do ardor patriótico, com todo o seu desvelo cívico e engajamento às forças das potências ocidentais que, pelo menos, se diziam democráticas, não o afastaram da convicção do cumprimento do dever de defender o Estado brasileiro e a democracia no mundo.
Criou-se a Força Expedicionária Brasileira (FEB) com o dístico “A cobra vai fumar”, vivo motivo de incentivo aos pracinhas. A “cobra’ salta às ruas numa marchinha carnavalesca cujo sabor era o dos morros cariocas: “Olha a cobra fumando, olha a cobra fumando... Olha a cobra, pessoal...!”
Vargas e seu inseparável havana no Catete e em sua fazenda no Rio Grande, em Itu, o chimarrão compartilhado numa roda de políticos e campeiros, e mais quem quisesse achegar-se, de cujos beiços, às vezes, deitavam histórias como a da mula-sem-cabeça, nas noites frias do “sur”. De um radinho de pilha escorria, entre uma e outra notícia da guerra, com Alvarenga & Ranchinho e seu violão: “Eu tenho uma mula preta... com sete palmos de altura”...
A glória das bombachas e do selim no auto-exílio de Itu, consolidada com o retorno triunfal ao governo da República através das eleições da década de 50, livres e democráticas. Subira ao palanque de campanha de Vargas, a seu lado, dando-lhe ardoroso e petriótico apoio, Luiz Carlos Prestes, por entender o “Cavaleiro da Esperança” que não havia outro candidato capaz de derrotar nas urnas as forças mais reacionárias e retrógadas em ebulição no país. Porém, o mais surpreendente, ou o inusitado, é que Getúlio Vargas, além de eleger-se presidente nessa ocasião, também se elegeu, dir-se-ia com o transbordo de votos, senador da República por várias unidades da Federação. O suficiente para credenciá-lo a levar avante o seu projeto de coroamento de uma luta que incluía todas as forças reconhecidas de esquerda, inclusive algumas de centro, ou de centro-esquerda, nacionalistas. Tratava-se do monopólio estatal do petróleo, em estudo, como base para a criação da Petrobras. Apesar da maioria acachapante de sufrágios obtida por Vargas nessas eleições, tendo derrotado o brigadeiro Eduardo Gomes, seu principal opositor no marco de toda a história eleitoral brasileira, forças externas começaram a pressioná-lo utilizando Carlos Lacerda, político de grande penetração popular, especialmente entre madames, as chamadas mal-amadas, afastado ainda moço dos quadros do Partido Comunista Brasileiro, para que o presidente recuasse de seus propósitos nacionalistas
A entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial data de agosto de 1942. Em fevereiro de 45, Vargas pede urgência nos prazos para eleições gerais no país. Em 18 de janeiro de 1951, vitorioso nas urnas pelos trâmites democráticos, é proclamado presidente da República. Juntamente com Café Filho na vice-presidência. Mal envia mensagem ao Congresso visando atender ao clamor popular de que “o petróleo é nosso”, tem início a sua via-crucis. Não bastara o empenho do governo anterior, o do presidente Eurico Gaspar Dutra, em abrir alas no parlamento a um Estatuto do Petróleo que, se aprovado, iria permitir a exploração de lençóis petrolíferos nacionais por um oligopólio, o das conhecidas nos círculos diplomáticos e da imprensa especializada como “sete irmãs”, todas, companhias estrangeiras, cinco delas norte-americanas. O projeto desse estatuto não prosperou, no entanto, sendo torpedeado de chapa no Congresso.
Ainda em meio à polêmica sobre o estatuto que Dutra quis impor à nação, tendo carreado para o parlamento, na cauda de sua curiosa eleição, a nata, e alguns antônimos, do entreguismo nacional, graças ao apoio dado pelas costas à sua candidatura por Vargas, que se recolhera em Itu a fim de costurar a pretendida volta por cima ao poder, apoio logo transferido a partidos da oposição, a UDN em primeiro plano, a União Nacional dos Estudantes, a UNE, empunha a bandeira da campanha “O Petróleo é nosso”.
Formava-se o cerco aos partidários da flexibilização da política do petróleo no Brasil.
As forças externas eram poderosíssimas; à frente, a Standard Oil. Mas Vargas não se intimida: submete ao Congresso Nacional projeto de lei instituindo o monopólio estatal da pesquisa, lavra e refino do petróleo extraído de jazidas brasileiras e criando uma companhia 100% nacional para administrá-lo. O texto do velho caudilho agora carregado pelo povo recebe uma chusma de emendas parlamentares, porém só um substitutivo, ironicamente apresentado por um respeitável e vigilante prócer do udenismo, Bilac Pinto, integrante de um grupo parlamentar que desfilava na imprensa como “banda de música da UDN”, é acolhido no Congresso. E de bom grado. Inclusive, ou principalmente, no Catete: O presidente via a contribuição de um udenista do porte de Bilac Pinto como essencial ao aprimoramento e fechamento da proposição, sem que deixasse uma só porta aberta à gula de qualquer das “sete irmãs”.

A campanha pela efetiva emancipação do país, orientada do Clube Militar, próximo ao Senado Federal e à Cinelândia, e da Associação Brasileira de Imprensa, ABI, na rua Araújo Porto Alegre, com a decidida participação da UNE, da antiga ABDE, Associação Brasileira de Escritores, e de outras instituições liberais, políticas e ideológicas, ganha as ruas, de pronto, com entusiamo e fervor patriótico.
Por essa época, em São Paulo, assediado por um repórter do “Diário da Manhã”, Getúlio Vargas vaticinava que não chegaria ao término do seu mandato. Muitos anos após a morte de Vargas, a sua sobrinha Yara Vargas, já como deputada pelo PDT à Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, lia da tribuna aquela entrevista, que deve estar constando nos Anais do Palácio Tiradentes.
Em 3 de outubro de 1945, ele sancionava a famosa Lei 2004. Criava, deste modo, a Petróleo Brasileiro S/A – Petrobrás (à época, levava acento), empresa de propriedade e controle inteiramente nacionais, com participação majoritária da União, para exploração de todas as etapas de nossa indústria petrolífera, exceto a distribuição. Ouve-se pelo rádio, em todos os quadrantes do país, a declaração pausada de Vargas: “Constituída com capital, técnica e trabalho exclusivamente brasileiros, a Petrobras resulta de uma firme política nacionalista no terreno econômico. (...) É, portanto, com satisfação e orgulho que hoje sanciono o texto que, aprovado pelo poder legislativo, constitui novo marco de nossa independência econômica”. O marco anterior expressara-se na criação da Companhia Siderúrgica Nacional, seguindo-se a da Companhia Vale do Rio Doce, garroteada no governo Cardoso.
A Standard Oil sentiu-se ferida no seu interesse em explorar o petróleo brasileiro, dando-nos, não raro, a impressão de estar ela e não Vargas à frente do governo. Ccntrapondo a sua política assentada na Constituição da República à exercida sorrateiramente pela Standard Oil, o presidente lança petardos sucessivos, em discursos inflamados, contra o rolo compressor movido pelos aproveitadores internos e externos. Na prática, ele se faz oposição dentro do próprio contexto em que fora eleito. Prega o trabalhismo em último grau. Declara-se socialista. Prepara um governo para os trabalhadores. Num de seus discursos da época, ante a virulência cada vez maior da reação, disse textualmente em tom convocatório, dirigindo-se às classes trabalhadoras: “Amanhã, sereis o governo!”.
Acontece Toneleros, rua de Copacabana onde um major da Aeronáutica é morto a tiro, supostamente, no lugar do jornalista Carlos Lacerda, que estava a seu lado; o major Vaz achava-se fora do expediente normal no quartel. Um caso da competência da polícia civil mas que os inimigos do presidente preferiram entregar à justiça militar. Vargas, apesar do cheiro de pólvora de uma cilada que tinham armado para ele e que impregnara o Catete, se diz, ao que lhe parecia, cercado de “um mar de lama”. Este seu desabafo acaba sendo considerado pelos inimigos como importante peça processual capaz de “pendurá-lo”, de deixá-lo (sic) “apodrecer”, como era do desejo declarado de Lacerda, na alcunhada “república do Galeão” Gregório Fortunato, chefe da guarda do Catete, o “anjo negro”, companheiro de infância de Vargas, que o trouxera do Rio Grande, foi logo acusado de mandante do crime de Toneleros. David Nasser, repórter famoso por décadas, sempre escrevendo na revista O Cruzeiro, dos Diários e Emissoras Associados, a principal do país, também autor de um livro titulado Só o Meu Sangue é Alemão, procurou insistentemente tomar o depoimento de Gregório, que, acreditava-se, morreria se abrisse a boca. Pensava-se em revelações que, defendendo-se Gregório e a Vargas, envolveriam gente muito ligada a Lacerda, inclusive da Embaixada Americana, e ele próprio, caricaturado O Corvo no jornal Ultima Hora, de Samuel Wayner. E o “anjo negro” cai morto na prisão, assassinado, sem que tivesse aberto a boca. Perdurando até hoje o mistério do “mar de lama”.

Vargas já havia redigido a sua Carta-Testamento, nas vésperas da reunião ministerial da madrugada de 24 de agosto de 1954, no Palácio do Catete, quando foi acordado em seus aposentos pelo irmão Benjamin para informá-lo de que estava deposto. O irmão se retira e o presidente, então, dá um tiro no peito.
Consumara-se o vaticínio?
Eu despertara com a notícia que me chegava através do rádio de um vizinho, transmitida por Heron Domingues, o Repórter Esso da Rádio Nacional, a puxar a voz embargada de emoção, pondo toda sua ênfase à leitura da Carta-Testamento, origem de um infarto fulminante que teria ele um pouco mais tarde, segundo amigos.
A morte de Vargas levantava a nação. Na rua do Passeio, defronte ao cinema Metro, eu sobraçava alguns jornais do dia quando passa pela minha cabeça um verso alexandrino da mitologia grega que, a meu ver, bem expressava o avanço devastador de Getúlio Vargas sobre a linha inimiga, de volta ao campo de batalha, com a lança de Aquiles e sua nova armadura – mandada fundir pela mãe Tétis, a deusa do mar: “...como um vento impetuoso que revolve as chamas”. Ele vencera a batalha, dir-se-ia em outro extremo da Vida.
Ouve-se o Hino Nacional. Entoado pelo caudal de estudantes, trabalhadores e profissionais liberais que, partindo da Candelária, toma toda a Avenida Rio Branco. Param na esquina com rua Santa Luzia. Alguém grita: “Onde fica a Embaixada Americana?!
“Lá!!” – apontam em direção de Santa Luzia, Calógeras e, finalmente, a Presidente Wilson. Marcham para lá. Em questão de minutos, o que se ouve da Cinelândia é uma azoada de balas disparadas de dentro da Embaixada dos Estados Unidos. Houve correria e não fiquei para trás. Estava sem a armadura de Aquiles. Nem dei conta de que os jornais que sobraçava haviam caído ao chão. Segui em frente pela rua do Passeio, sem destino, até deparar-me com um hotel a cerrar as portas, mas ainda a tempo de enfiar-me por baixo. Respirei. Um elevador se abriu, dele saindo, tranquila, serelepe, uma senhora com vistoso chapéu, alinhada nos padrões de refinada elegância... de Saint-Germain-de-Près ou de outra parte de Paris? – sabe-se lá de qual, com cantante sotaque francês.
Da recepção do hotel, advertem-na: “Não saia agora, madame! Estão dissolvendo a balas de metralhadora manifestação pelo presidente morto”. Ao que ela, dando de ombros, pede que lhe abrissem caminho porque já estava acostumada a revoluções.
Em casa, abro um dos jornais que comprei em substituição àqueles que despencaram dos braços na hora da correria, e estala-me a idéia de pôr em versos a Carta de Getúlio. Passo a noite queimando pestanas nesse trabalho, que concluo aos primeiros cantos de galos pelos lados do outeiro do Valonguinho, em Niterói. Faço-lhe cuidadosa revisão, o dactilografo, releio o texto já pronto para o linotipista compor – ele, invariavelmente, com o latão de leite por perto e que era seu escudo contra possível infecção pulmonar pelo antimônio. Pego uma barca da Cantareira, adormeço sentado em um de seus degraus, um sono reparador face àquele serão que havia feito. Acordo com o apito da chegada à Praça XV, àquele tempo, sem mergulhões. Caminho pela rua São José, corto a Rio Branco, antiga Avenida Central; mais alguns passos, vejo-me diante da fachada de O Radical, jornal trabalhista dirigido por Georges Galvão, quem eu não conhecia, então, pessoalmente. Respiro fundo e subo as escadas. O primeiro a aparecer à minha frente, logo na entrada, era justamente, e eu só viria a saber depois, o diretor do jornal. Ele indaga: “Deseja alguma coisa?”. Com umas laudas na mão, comecei a explicar-me meio sem jeito: “Fiz uma carta em versos..” Num ímpeto, arrebatou de minha mão, assim me pareceu, a tal carta, leu-a atentamente e em silêncio, agita-se: “Vai à 1ª página de O Radical!” Estremeço.
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O diretor pega em meu braço, leva-me até seu gabinete... “Sente-se”. Abre gavetas, apanha jornais e revistas, uma delas - edição especial da Revista do Globo, de Porto Alegre, com farto e rico material sobre a vida de Getúlio até o seu retiro em Itu, uma vez afastado temporariamente do governo, período que aproveita para o seu retorno ao Catete, que ele já dava como certo, em 1951. Eram memórias, parciais porém autênticas, ditadas a repórteres na fazenda de Itu com o auxílio de sua filha e secretária Alzirinha (Alzira Vargas), revisadas do próprio punho por Vargas. E Georges Galvão confiou-me todo esse material para que eu retratasse, em versos, a vida tumultuada, e gloriosa, daquele presidente. Sinto não ter podido me debruçar nos versos esperados pelo diretor de O Radical. Impediu-me de fazê-lo o lufa-lufa do jornalismo, trabalhando, às vezes, em vários órgãos da imprensa, inclusive em jornais falado e televisado, e por um tempo numa agência de notícias, além da revisão do Diário da Assembléia Legislativa, até alta hora, na Imprensa Oficial do Estado. Por pouco não batendo o incansável e competente Mário Curvello, mestre na titulação de matérias, entre outros méritos, o qual rompia ao alvorecer na redação do vespertino da Praça Mauá, para o fechamento de suas páginas, e, de lá, partindo para outros jornais, praticamente a virar a noite na vagarosa e romântica barca, a princípio da Cantareira, antes e depois do fogo ateado à Estação da Praça Araribóia por causa de aumentos de passagem, pelo que se sabia, com algum ingrediente político. O memorável e tradicional Restaurante Miramar, colado à estação e que nada tinha a ver com a história, foi também devorado pelas chamas.
Sempre que me encontrava com Curvello na barca da travessia Rio-Niterói, eu lhe perguntava pela casa que ele estava construindo no Saco de São Francisco – agora, somente São Francisco, sem o sinônimo de enseada, devido ao preconceito ou coisa similar de um vereador da Velha Província -- tijolo por tijolo, escoados os anos mais de torcida que da minha natural curiosidade. De volta de um fim de semana em minha terra, Boa Sorte, distrito de Cantagalo, dei com A Noite fechada a cadeado e meu coração pula; o que fazer? Contudo, em menos de um mês, pelas mãos do mineiro Clemente Luz, autor de Infância Humilde dos Grandes Homens, estava empregado no Diário da Noite, que me encaminhara ao Ministério do Trabalho para o devido registro de jornalista profissional, qualificando-me, inicialmente, nas funções de repórter.
E fiquei sem contacto com aquele companheiro de barca e de jornal, que espero tenha construído uma mansão... no Saco, posto que bem merecia. Em A Noite, que no meu tempo era dirigido por Carvalho Netto (sisudo e de boa sombra), órgão das Empresas Incorporadas ao Patrimônio da União, como a Rádio Nacional, recebíamos através de folhas assinadas, sem carteira de trabalho mas com aquela expedida pelo próprio vespertino, que já nos credenciava à militância normal.
Após certificar-me de que fora publicada na 1ª página de O Radical a Carta em versos, que também A Noite publicou, logo a seguir, com destaque, numa página interna, tendo-a reproduzido de O Radical, levo-a, redactilografada, à revistinha, de grande circulação, A Modinha Popular, do outro lado da Cinelândia, na direção dos Arcos da Lapa. A redação cabia numa mesa de escritório e as oficinas ocupavam todo o espaço nos fundos. Recebeu-me Joaquim Luchesi, proprietário e diretor da Modinha. Mal lê minha adaptação da Carta de Getúlio Vargas, vira-se para os fundos do pequeno prédio, grita: “Parem as máquinas! Tem aqui uma Carta melhor, vamos dar essa!”.
Parecia um galo italiano. E fez questão de acertar logo as contas, não me deixando falar. Abre uma gaveta, retira um maço de dinheiro, já não me lembro quanto – “trabalho assim” – e encerra a conversa: “Pago-lhe agora por 200 mil exemplares. Satisfeito?”



A Carta em versos


Mais uma vez, as forças contra o povo
e os interesses contra o povo, enfim,
coordenaram-se, ríspidos; de novo,
desencadeiam-se por sobre mim.

Não me acusam, me insultam com rudeza;
não me combatem, caluniam. Hora atroz!
Não me dão o direito de defesa,
precisam sufocar a minha voz.

Precisam impedir a minha ação
para que eu não defenda nunca mais
o povo, e não combata a espoliação
dos fortes grupos internacionais.

Sigo o destino que me é imposto.
Após decênios de dominação
dos mesmos grupos, levantei o rosto
e fiz-me chefe de Revolução.

Tenho lutado pela Liberdade
mês a mês, dia dia, hora a hora,
resistindo à pressão e â falsidade,
suportando-o em silêncio até agora.

Tudo esquecendo, renunciando a tudo,
a mim mesmo, em defesa do meu povo ingente,
que se queda nesta hora, sem escudo,
pois não querem que o povo seja independente.

Nada vos posso dar mais a não ser meu sangue.
Se as aves de rapina querem por bebida,
querem sugar ainda mais o povo exangue,
eu ofereço em holocausto a minha vida.

Eu escolho este meio de estar sempre vivo.
Quando vos humilharem,sentireis minhalma
convosco e sempre lutarei convosco, altivo,
quando a fome levar à vossa porta a palma.

Unidos vos trará meu sacrifício
e meu sangue será vossa bandeira,
a bandeira de luta - frontispício
da redenção da terra brasileira.

Era escravo do povo, humilde e bravo,
e agora me liberto para o Além,
mas este povo de quem fui escravo
não mais será escravo de ninguém!




E a Carta poética de Getúlio corta cidades e cidades, em trem de ferro, levada pelas mãos de jornaleiros, no Estado do Rio, revezando-se nas vendas o gordo Max e o magro José, e seguindo para outras regiões do país. Os jornaleiros se reabastecendo na Modinha Popular e... piuí... lá ia o trem: única coisa boa que os ingleses nos deixaram, dizia Vargas, certa vez, após haver discursado numa das paradas, em Cachoeiras de Macacu.
Meses decorridos, encontro o jornalista nordestino Armando Pacheco na redação de A Noite. Muito amigo do pintor marinhista cearense J. Carvalho, que construiu boa casa no bairro niteroiense de Santa Rosa valendo-se dos quadros que vendia sem molduras, levando as telas aos clientes, um desses clientes, Fernando Segismundo, debaixo do braço, Armando Pacheco a saudar-me:
“Sim senhor, hein! A sua adaptação poética da Carta de Getúlio está fazendo sucesso no Nordeste. Em Sobral, passava uma procissão entoando a Carta em versos na linha melódica do Queremos Deus...”
Mais algum tempo, sem um só exemplar da Carta em minha estante, volto à Modinha na esperança de conseguir algum. Lá encontro não Joaquim Luchesi mas o seu gráfico, e aperto-lhe a mão: “Está me reconhecendo?”. “O da Carta de Getúlio”, responde. Olha-me de frente, cofia o bigode, vai direto ao assunto: “Luchesi morreu. Ficou lhe devendo alguma coisa?”. “Não, ou parece que não”, voltei-me ao gráfico, pesaroso e aguardando o que de facto sucedera. E ele, a cofiar o bigode mais uma vez: “Luchesi caiu do alto do sobrado dos Tenentes”. Tenentes do Diabo, um dos clubes carnavalescos mais famosos do passado no Rio. Observa-se um instante de silêncio, ele limpa a garganta: “Mas a Carta... saiu toda! Luchesi chegou a tirar, além dos 200 mil, mais 100 mil exemplares!. Valeu”.
Com o fim da II Guerra Mundial, retornam dos campos da Itália os pracinhas brasileiros, cujo feito mais notável fora a tomada de Monte Castelo. Assisto da calçada oposta à do Diário Carioca, na Avenida Rio Branco, à passagem do cortejo dos esquifes com os despojos daqueles que tombaram em batalha. Olho para os lados e vejo homens, mulheres e até crianças com a mão sobre o peito. Sigo-os na reverência.
Corre o tempo; já no Diário da Noite sou escalado, juntamente com outro repórter, para a cobertura do desfile militar do 7 de Setembro na Avenida Presidente Vargas, quando um “cobra criada” do jornal chama-me a um canto e me dá a dica de como cobrir a parada sem fazer esforço. Segui as instruções dele. Eu alugava de uma inglesa um amplo quarto de frente para a rua Mariz e Barros, num agradável sobradinho, em Icaraí, a uma quadra da praia. A inglesa, dona Geniva, deliciava-se com a leitura de trechos de um romance que eu estava escrevendo sobre as noites nos dancings e cabarés do Rio. “Muito bom, senhor Fernando”, e procurando disfarçar os risinhos: “gostei...”.
A pouco do desfile, encontro tempo para pequena caminhada pela areia da praia e um mergulho. Volto para casa, uma chuveirada e eis-me trazendo bloco de papel e caneta diante de Oduvaldo Cozzi na tevê em preto e branco, Cozzi a moderar a voz em respeito à data cívica, tonitroante nas locuções esportivas.
Atravesso a baía de Guanabara, chego à rua Sacadura Cabral, entro na redação, dactilografo a matéria, surrando as teclas da máquina de escrever como quase sempre fazia – porque trocar as fitas era sempre sinal de chuva em qualquer jornal. E dou com o companheiro também escalado para cobrir o desfile já a meu lado, certificando-se do que eu escrevera, ali parado como um poste. “Mas não o vi no palanque!”, disse ele. “Mas é uma matéria a quatro mãos, assinada também por você, como vê lá no alto”, respondi. E ele, já que foi assim, a lamentar não ter aproveitado a manhã para uma esticada à praia...