domingo, 21 de junho de 2009

Do desembarque na Normandia ao mistério do "mar de lama"


Bico de pena de J. C. Heitor


parte II
Lá por 1930 é semeado em partes da Europa o nazismo, pretensiosamente apresentando-se sob a capa de nacional-socialismo no propósito, é de supor, de tornar a suástica algo atraente ou que fosse assimilável a um povo em que a religiosidade sempre fora um traço marcante em suas caminhadas na História. A ideologia nazis se alastra rapidamente, Adolf Hitler, já em cena, se alça ao poder na Alemanha. Tinha-se passado um decênio da celebração do Tratado de Versalhes, terminada a I Guerra Mundial. Por força do Tratado, a Alemanha, derrotada, entrega Alsácia Lorena à França mais outros antigos domínios a vários países, como à Bélgica. O Führer do Terceiro Reich acalenta a miragem de uma “nova ordem” sobre a Europa a fim de mostrar ao mundo, assim imaginava, a “superioridade” germânica.
Em 1º de setembro de 1939, a Alemanha invade a Polônia. A França e a Comunidade das Nações respondem com declarações de guerra. E o jogo principiava... A América a desempenhar o papel de espécie de árbitro de futebol, a salvo de contusões, com o livro-caixa em mãos e o revólver de John Wayne a fumegar no Velho Oeste – derrubando índios aos trotes para deleite de cinéfilos ocidentais.
Na América do Sul, no pampa gaúcho, um mestre das cavalgadas que, no mínimo de sua capacidade perceptiva, parecia saber muito mais além de nossa dimensão – ler, por exemplo, bolas de cristal – a estudantada nas ruas aos gritos de ‘guerra! guerra!” nas cercanias do Palácio do Catete, a exigir a presença do Brasil no front Aliado, bem provável que se perguntasse, afinal: “O que podemos ganhar indo a essa guerra senão algumas medalhas?”

Era o presidente Getúlio Dornelles Vargas, preocupado com a indigência do Brasil em indústria pesada, ao tempo em que, abrindo-se um livro escolar, se lia, invariavelmente, como sendo uma de suas principais atividades econômicas, na Velha Província, a do bicho da seda! Foi daí que os nazis, através de emissários devidamente agalardoados, se abalam até Vargas, oferecendo-se para construir sua siderúrgica, em troca de apoio estratégico à Alemanha.
Vargas discursa como em um palco na forma de um tabuleiro de jogo de xadrez, ele já um lendário cavaleiro dos pampas de Sudamérica. De sorte que não lhe foi difícil distrair os alemães com alegres noitadas em teatros da Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro, às quais não faltaram as mais recém-chegadas mademoiselles de Paris, enquanto os norte-americanos contavam e recontavam os dólares disponíveis para a implantação da siderurgia brasileira, sem que chegassem ao fim das contas...
Em Washington, sopram aos ouvidos de Eisenhower o tititicado “namoro” entre Vargas e Hitler, inclusive que a fábrica Krupp, alemã, já se preparava para erguer o que deveria ser a menina-dos-olhos de Vargas.
Num estalar de dedos, o governo americano desce em terras brasílicas com todo um aparato industrial-militar e firma o compromisso de erguer a usina de Volta Redonda. Os alemães se retiram, não sem terem deixado a suástica gravada em portas de milhares de casas localizadas em zonas rurais da Velha Província. Na região de Cantagalo, Centro-Norte do Estado do Rio, há muitos anos, veio às mãos do autor deste pequeno ensaio a foto de larga suástica estampada à testa de uma dessas casas, de colonos brasileiros, de uma fazenda nas proximidades da divisa com Minas Gerais. Se bem que a imigração germânica enraizara-se mais para o Sul.
E só nas condições ajustadas com o governo americano, cedendo a Base Aérea de Natal, Rio Grande do Norte, às Forças Aliadas, uma vez garantida a construção da siderúrgica, o Brasil declara, finalmente, guerra à Alemanha.
Em meio aos bombardeios distantes e às notícias contraditórias provindas do front europeu, estressados por vararem noites em claro ouvindo grilos e esmagando borrachudos a sopapo, os americanos desembarcados em Natal não encontram outro meio de espairecer senão acompanhar os passos do rala-bucho, à época uma dança campestre bem típica do Norte e Nordeste do país. Para eles, tornava-se muito mais fácil designar a dança por uma expressão extra-caserna: “for all”, quer dizer “para todos”. Mas “for all” acaba popularizando-se, em bom português, malgrado a corruptela de origem, como forró.
Dos alicerces à “corrida do aço” – parecendo-me acordes de O Guarani de Carlos Gomes -- a Companhia Siderúrgica Nacional, a entrar em operações em 1946 após 5 anos em obras, logo se constituiu em motivo de justo orgulho para o povo brasileiro, durante décadas, até ser lançada à roda de privatizações impulsada nos entreatos dos governos Fernando Collor de Melo e Itamar Franco, dentro do Programa Nacional de Desestatização. Um programa tisnado com o sangue de três baixas de operários siderúrgicos em confronto com guardas de serviço na usina entregue por doação – como se expressava Hélio Fernandes em sua Tribuna da Imprensa -- à iniciativa privada. Fernando Henrique Cardoso emergia ministro da Fazenda. Era o cérebro do desmantelamento das empresas nacionais; seu feito mais notável, ou repulsivo, neste particular foi a privatização da Companhia Vale do Rio Doce. Recorda-se que, ao se despedir do Senado a fim de assumir a presidência da República, Cardoso usou a tribuna para proclamar com a empáfia que lhe era peculiar “o fim da era Vargas”. Em seus delírios neronianos, chegou a maquinar a revogação sumária das Leis Trabalhistas, a pretexto de terem sido elas inspiradas em legislação de Benito Mussolini, aliado do Führer e do imperador Hiroíto. Ora! Seria o caso, então, de vetar-se aos quatro ventos toda a música legada por Wagner à sensibilidade de gregos e troianos...Sabendo-se que esse compositor alemão era o preferido de Adolf.
Ruminara também (!) a privatização do Banco do Brasil; seria por funcionar o clube do Bola Preta num sobrado em cima da agência central do banco, se bem que diferindo dela no expediente e com a entrada do lado?
Assim como procedera com os alemães e os estadunidenses, levando-os a um tabuleiro diplomático, para forjar o progresso nacional através de Volta Redonda, Getúlio Vargas negocia a derrogação de velhas concessões dadas, antes dele, à Inglaterra para exploração de ricos lençóis de minérios a se estenderem pelo vale do rio Doce. Derrogadas as concessões e, por consequência, restabelecido ao Brasil o direito natural de exploração de imensurável riqueza estratégica, até então em mãos estrangeiras, Vargas assina o decreto de criação da estatal Companhia Vale do Rio Doce, que muitos anos depois viria a sofrer o xeque-mate sobre as cinzas do mítico caudilho do pampa.
Os incidentes relacionados às vacilações de Vargas diante do problema das divisões territoriais já então projetadas para o pós-guerra, intuindo o presidente trabalhista que do conflito o Brasil pouco ou nenhum proveito teria, a não ser o cintilar do ardor patriótico, com todo o seu desvelo cívico e engajamento às forças das potências ocidentais que, pelo menos, se diziam democráticas, não o afastaram da convicção do cumprimento do dever de defender o Estado brasileiro e a democracia no mundo.
Criou-se a Força Expedicionária Brasileira (FEB) com o dístico “A cobra vai fumar”, vivo motivo de incentivo aos pracinhas. A “cobra’ salta às ruas numa marchinha carnavalesca cujo sabor era o dos morros cariocas: “Olha a cobra fumando, olha a cobra fumando... Olha a cobra, pessoal...!”
Vargas e seu inseparável havana no Catete e em sua fazenda no Rio Grande, em Itu, o chimarrão compartilhado numa roda de políticos e campeiros, e mais quem quisesse achegar-se, de cujos beiços, às vezes, deitavam histórias como a da mula-sem-cabeça, nas noites frias do “sur”. De um radinho de pilha escorria, entre uma e outra notícia da guerra, com Alvarenga & Ranchinho e seu violão: “Eu tenho uma mula preta... com sete palmos de altura”...
A glória das bombachas e do selim no auto-exílio de Itu, consolidada com o retorno triunfal ao governo da República através das eleições da década de 50, livres e democráticas. Subira ao palanque de campanha de Vargas, a seu lado, dando-lhe ardoroso e petriótico apoio, Luiz Carlos Prestes, por entender o “Cavaleiro da Esperança” que não havia outro candidato capaz de derrotar nas urnas as forças mais reacionárias e retrógadas em ebulição no país. Porém, o mais surpreendente, ou o inusitado, é que Getúlio Vargas, além de eleger-se presidente nessa ocasião, também se elegeu, dir-se-ia com o transbordo de votos, senador da República por várias unidades da Federação. O suficiente para credenciá-lo a levar avante o seu projeto de coroamento de uma luta que incluía todas as forças reconhecidas de esquerda, inclusive algumas de centro, ou de centro-esquerda, nacionalistas. Tratava-se do monopólio estatal do petróleo, em estudo, como base para a criação da Petrobras. Apesar da maioria acachapante de sufrágios obtida por Vargas nessas eleições, tendo derrotado o brigadeiro Eduardo Gomes, seu principal opositor no marco de toda a história eleitoral brasileira, forças externas começaram a pressioná-lo utilizando Carlos Lacerda, político de grande penetração popular, especialmente entre madames, as chamadas mal-amadas, afastado ainda moço dos quadros do Partido Comunista Brasileiro, para que o presidente recuasse de seus propósitos nacionalistas
A entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial data de agosto de 1942. Em fevereiro de 45, Vargas pede urgência nos prazos para eleições gerais no país. Em 18 de janeiro de 1951, vitorioso nas urnas pelos trâmites democráticos, é proclamado presidente da República. Juntamente com Café Filho na vice-presidência. Mal envia mensagem ao Congresso visando atender ao clamor popular de que “o petróleo é nosso”, tem início a sua via-crucis. Não bastara o empenho do governo anterior, o do presidente Eurico Gaspar Dutra, em abrir alas no parlamento a um Estatuto do Petróleo que, se aprovado, iria permitir a exploração de lençóis petrolíferos nacionais por um oligopólio, o das conhecidas nos círculos diplomáticos e da imprensa especializada como “sete irmãs”, todas, companhias estrangeiras, cinco delas norte-americanas. O projeto desse estatuto não prosperou, no entanto, sendo torpedeado de chapa no Congresso.
Ainda em meio à polêmica sobre o estatuto que Dutra quis impor à nação, tendo carreado para o parlamento, na cauda de sua curiosa eleição, a nata, e alguns antônimos, do entreguismo nacional, graças ao apoio dado pelas costas à sua candidatura por Vargas, que se recolhera em Itu a fim de costurar a pretendida volta por cima ao poder, apoio logo transferido a partidos da oposição, a UDN em primeiro plano, a União Nacional dos Estudantes, a UNE, empunha a bandeira da campanha “O Petróleo é nosso”.
Formava-se o cerco aos partidários da flexibilização da política do petróleo no Brasil.
As forças externas eram poderosíssimas; à frente, a Standard Oil. Mas Vargas não se intimida: submete ao Congresso Nacional projeto de lei instituindo o monopólio estatal da pesquisa, lavra e refino do petróleo extraído de jazidas brasileiras e criando uma companhia 100% nacional para administrá-lo. O texto do velho caudilho agora carregado pelo povo recebe uma chusma de emendas parlamentares, porém só um substitutivo, ironicamente apresentado por um respeitável e vigilante prócer do udenismo, Bilac Pinto, integrante de um grupo parlamentar que desfilava na imprensa como “banda de música da UDN”, é acolhido no Congresso. E de bom grado. Inclusive, ou principalmente, no Catete: O presidente via a contribuição de um udenista do porte de Bilac Pinto como essencial ao aprimoramento e fechamento da proposição, sem que deixasse uma só porta aberta à gula de qualquer das “sete irmãs”.

A campanha pela efetiva emancipação do país, orientada do Clube Militar, próximo ao Senado Federal e à Cinelândia, e da Associação Brasileira de Imprensa, ABI, na rua Araújo Porto Alegre, com a decidida participação da UNE, da antiga ABDE, Associação Brasileira de Escritores, e de outras instituições liberais, políticas e ideológicas, ganha as ruas, de pronto, com entusiamo e fervor patriótico.
Por essa época, em São Paulo, assediado por um repórter do “Diário da Manhã”, Getúlio Vargas vaticinava que não chegaria ao término do seu mandato. Muitos anos após a morte de Vargas, a sua sobrinha Yara Vargas, já como deputada pelo PDT à Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, lia da tribuna aquela entrevista, que deve estar constando nos Anais do Palácio Tiradentes.
Em 3 de outubro de 1945, ele sancionava a famosa Lei 2004. Criava, deste modo, a Petróleo Brasileiro S/A – Petrobrás (à época, levava acento), empresa de propriedade e controle inteiramente nacionais, com participação majoritária da União, para exploração de todas as etapas de nossa indústria petrolífera, exceto a distribuição. Ouve-se pelo rádio, em todos os quadrantes do país, a declaração pausada de Vargas: “Constituída com capital, técnica e trabalho exclusivamente brasileiros, a Petrobras resulta de uma firme política nacionalista no terreno econômico. (...) É, portanto, com satisfação e orgulho que hoje sanciono o texto que, aprovado pelo poder legislativo, constitui novo marco de nossa independência econômica”. O marco anterior expressara-se na criação da Companhia Siderúrgica Nacional, seguindo-se a da Companhia Vale do Rio Doce, garroteada no governo Cardoso.
A Standard Oil sentiu-se ferida no seu interesse em explorar o petróleo brasileiro, dando-nos, não raro, a impressão de estar ela e não Vargas à frente do governo. Ccntrapondo a sua política assentada na Constituição da República à exercida sorrateiramente pela Standard Oil, o presidente lança petardos sucessivos, em discursos inflamados, contra o rolo compressor movido pelos aproveitadores internos e externos. Na prática, ele se faz oposição dentro do próprio contexto em que fora eleito. Prega o trabalhismo em último grau. Declara-se socialista. Prepara um governo para os trabalhadores. Num de seus discursos da época, ante a virulência cada vez maior da reação, disse textualmente em tom convocatório, dirigindo-se às classes trabalhadoras: “Amanhã, sereis o governo!”.
Acontece Toneleros, rua de Copacabana onde um major da Aeronáutica é morto a tiro, supostamente, no lugar do jornalista Carlos Lacerda, que estava a seu lado; o major Vaz achava-se fora do expediente normal no quartel. Um caso da competência da polícia civil mas que os inimigos do presidente preferiram entregar à justiça militar. Vargas, apesar do cheiro de pólvora de uma cilada que tinham armado para ele e que impregnara o Catete, se diz, ao que lhe parecia, cercado de “um mar de lama”. Este seu desabafo acaba sendo considerado pelos inimigos como importante peça processual capaz de “pendurá-lo”, de deixá-lo (sic) “apodrecer”, como era do desejo declarado de Lacerda, na alcunhada “república do Galeão” Gregório Fortunato, chefe da guarda do Catete, o “anjo negro”, companheiro de infância de Vargas, que o trouxera do Rio Grande, foi logo acusado de mandante do crime de Toneleros. David Nasser, repórter famoso por décadas, sempre escrevendo na revista O Cruzeiro, dos Diários e Emissoras Associados, a principal do país, também autor de um livro titulado Só o Meu Sangue é Alemão, procurou insistentemente tomar o depoimento de Gregório, que, acreditava-se, morreria se abrisse a boca. Pensava-se em revelações que, defendendo-se Gregório e a Vargas, envolveriam gente muito ligada a Lacerda, inclusive da Embaixada Americana, e ele próprio, caricaturado O Corvo no jornal Ultima Hora, de Samuel Wayner. E o “anjo negro” cai morto na prisão, assassinado, sem que tivesse aberto a boca. Perdurando até hoje o mistério do “mar de lama”.

Vargas já havia redigido a sua Carta-Testamento, nas vésperas da reunião ministerial da madrugada de 24 de agosto de 1954, no Palácio do Catete, quando foi acordado em seus aposentos pelo irmão Benjamin para informá-lo de que estava deposto. O irmão se retira e o presidente, então, dá um tiro no peito.
Consumara-se o vaticínio?
Eu despertara com a notícia que me chegava através do rádio de um vizinho, transmitida por Heron Domingues, o Repórter Esso da Rádio Nacional, a puxar a voz embargada de emoção, pondo toda sua ênfase à leitura da Carta-Testamento, origem de um infarto fulminante que teria ele um pouco mais tarde, segundo amigos.
A morte de Vargas levantava a nação. Na rua do Passeio, defronte ao cinema Metro, eu sobraçava alguns jornais do dia quando passa pela minha cabeça um verso alexandrino da mitologia grega que, a meu ver, bem expressava o avanço devastador de Getúlio Vargas sobre a linha inimiga, de volta ao campo de batalha, com a lança de Aquiles e sua nova armadura – mandada fundir pela mãe Tétis, a deusa do mar: “...como um vento impetuoso que revolve as chamas”. Ele vencera a batalha, dir-se-ia em outro extremo da Vida.
Ouve-se o Hino Nacional. Entoado pelo caudal de estudantes, trabalhadores e profissionais liberais que, partindo da Candelária, toma toda a Avenida Rio Branco. Param na esquina com rua Santa Luzia. Alguém grita: “Onde fica a Embaixada Americana?!
“Lá!!” – apontam em direção de Santa Luzia, Calógeras e, finalmente, a Presidente Wilson. Marcham para lá. Em questão de minutos, o que se ouve da Cinelândia é uma azoada de balas disparadas de dentro da Embaixada dos Estados Unidos. Houve correria e não fiquei para trás. Estava sem a armadura de Aquiles. Nem dei conta de que os jornais que sobraçava haviam caído ao chão. Segui em frente pela rua do Passeio, sem destino, até deparar-me com um hotel a cerrar as portas, mas ainda a tempo de enfiar-me por baixo. Respirei. Um elevador se abriu, dele saindo, tranquila, serelepe, uma senhora com vistoso chapéu, alinhada nos padrões de refinada elegância... de Saint-Germain-de-Près ou de outra parte de Paris? – sabe-se lá de qual, com cantante sotaque francês.
Da recepção do hotel, advertem-na: “Não saia agora, madame! Estão dissolvendo a balas de metralhadora manifestação pelo presidente morto”. Ao que ela, dando de ombros, pede que lhe abrissem caminho porque já estava acostumada a revoluções.
Em casa, abro um dos jornais que comprei em substituição àqueles que despencaram dos braços na hora da correria, e estala-me a idéia de pôr em versos a Carta de Getúlio. Passo a noite queimando pestanas nesse trabalho, que concluo aos primeiros cantos de galos pelos lados do outeiro do Valonguinho, em Niterói. Faço-lhe cuidadosa revisão, o dactilografo, releio o texto já pronto para o linotipista compor – ele, invariavelmente, com o latão de leite por perto e que era seu escudo contra possível infecção pulmonar pelo antimônio. Pego uma barca da Cantareira, adormeço sentado em um de seus degraus, um sono reparador face àquele serão que havia feito. Acordo com o apito da chegada à Praça XV, àquele tempo, sem mergulhões. Caminho pela rua São José, corto a Rio Branco, antiga Avenida Central; mais alguns passos, vejo-me diante da fachada de O Radical, jornal trabalhista dirigido por Georges Galvão, quem eu não conhecia, então, pessoalmente. Respiro fundo e subo as escadas. O primeiro a aparecer à minha frente, logo na entrada, era justamente, e eu só viria a saber depois, o diretor do jornal. Ele indaga: “Deseja alguma coisa?”. Com umas laudas na mão, comecei a explicar-me meio sem jeito: “Fiz uma carta em versos..” Num ímpeto, arrebatou de minha mão, assim me pareceu, a tal carta, leu-a atentamente e em silêncio, agita-se: “Vai à 1ª página de O Radical!” Estremeço.
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O diretor pega em meu braço, leva-me até seu gabinete... “Sente-se”. Abre gavetas, apanha jornais e revistas, uma delas - edição especial da Revista do Globo, de Porto Alegre, com farto e rico material sobre a vida de Getúlio até o seu retiro em Itu, uma vez afastado temporariamente do governo, período que aproveita para o seu retorno ao Catete, que ele já dava como certo, em 1951. Eram memórias, parciais porém autênticas, ditadas a repórteres na fazenda de Itu com o auxílio de sua filha e secretária Alzirinha (Alzira Vargas), revisadas do próprio punho por Vargas. E Georges Galvão confiou-me todo esse material para que eu retratasse, em versos, a vida tumultuada, e gloriosa, daquele presidente. Sinto não ter podido me debruçar nos versos esperados pelo diretor de O Radical. Impediu-me de fazê-lo o lufa-lufa do jornalismo, trabalhando, às vezes, em vários órgãos da imprensa, inclusive em jornais falado e televisado, e por um tempo numa agência de notícias, além da revisão do Diário da Assembléia Legislativa, até alta hora, na Imprensa Oficial do Estado. Por pouco não batendo o incansável e competente Mário Curvello, mestre na titulação de matérias, entre outros méritos, o qual rompia ao alvorecer na redação do vespertino da Praça Mauá, para o fechamento de suas páginas, e, de lá, partindo para outros jornais, praticamente a virar a noite na vagarosa e romântica barca, a princípio da Cantareira, antes e depois do fogo ateado à Estação da Praça Araribóia por causa de aumentos de passagem, pelo que se sabia, com algum ingrediente político. O memorável e tradicional Restaurante Miramar, colado à estação e que nada tinha a ver com a história, foi também devorado pelas chamas.
Sempre que me encontrava com Curvello na barca da travessia Rio-Niterói, eu lhe perguntava pela casa que ele estava construindo no Saco de São Francisco – agora, somente São Francisco, sem o sinônimo de enseada, devido ao preconceito ou coisa similar de um vereador da Velha Província -- tijolo por tijolo, escoados os anos mais de torcida que da minha natural curiosidade. De volta de um fim de semana em minha terra, Boa Sorte, distrito de Cantagalo, dei com A Noite fechada a cadeado e meu coração pula; o que fazer? Contudo, em menos de um mês, pelas mãos do mineiro Clemente Luz, autor de Infância Humilde dos Grandes Homens, estava empregado no Diário da Noite, que me encaminhara ao Ministério do Trabalho para o devido registro de jornalista profissional, qualificando-me, inicialmente, nas funções de repórter.
E fiquei sem contacto com aquele companheiro de barca e de jornal, que espero tenha construído uma mansão... no Saco, posto que bem merecia. Em A Noite, que no meu tempo era dirigido por Carvalho Netto (sisudo e de boa sombra), órgão das Empresas Incorporadas ao Patrimônio da União, como a Rádio Nacional, recebíamos através de folhas assinadas, sem carteira de trabalho mas com aquela expedida pelo próprio vespertino, que já nos credenciava à militância normal.
Após certificar-me de que fora publicada na 1ª página de O Radical a Carta em versos, que também A Noite publicou, logo a seguir, com destaque, numa página interna, tendo-a reproduzido de O Radical, levo-a, redactilografada, à revistinha, de grande circulação, A Modinha Popular, do outro lado da Cinelândia, na direção dos Arcos da Lapa. A redação cabia numa mesa de escritório e as oficinas ocupavam todo o espaço nos fundos. Recebeu-me Joaquim Luchesi, proprietário e diretor da Modinha. Mal lê minha adaptação da Carta de Getúlio Vargas, vira-se para os fundos do pequeno prédio, grita: “Parem as máquinas! Tem aqui uma Carta melhor, vamos dar essa!”.
Parecia um galo italiano. E fez questão de acertar logo as contas, não me deixando falar. Abre uma gaveta, retira um maço de dinheiro, já não me lembro quanto – “trabalho assim” – e encerra a conversa: “Pago-lhe agora por 200 mil exemplares. Satisfeito?”



A Carta em versos


Mais uma vez, as forças contra o povo
e os interesses contra o povo, enfim,
coordenaram-se, ríspidos; de novo,
desencadeiam-se por sobre mim.

Não me acusam, me insultam com rudeza;
não me combatem, caluniam. Hora atroz!
Não me dão o direito de defesa,
precisam sufocar a minha voz.

Precisam impedir a minha ação
para que eu não defenda nunca mais
o povo, e não combata a espoliação
dos fortes grupos internacionais.

Sigo o destino que me é imposto.
Após decênios de dominação
dos mesmos grupos, levantei o rosto
e fiz-me chefe de Revolução.

Tenho lutado pela Liberdade
mês a mês, dia dia, hora a hora,
resistindo à pressão e â falsidade,
suportando-o em silêncio até agora.

Tudo esquecendo, renunciando a tudo,
a mim mesmo, em defesa do meu povo ingente,
que se queda nesta hora, sem escudo,
pois não querem que o povo seja independente.

Nada vos posso dar mais a não ser meu sangue.
Se as aves de rapina querem por bebida,
querem sugar ainda mais o povo exangue,
eu ofereço em holocausto a minha vida.

Eu escolho este meio de estar sempre vivo.
Quando vos humilharem,sentireis minhalma
convosco e sempre lutarei convosco, altivo,
quando a fome levar à vossa porta a palma.

Unidos vos trará meu sacrifício
e meu sangue será vossa bandeira,
a bandeira de luta - frontispício
da redenção da terra brasileira.

Era escravo do povo, humilde e bravo,
e agora me liberto para o Além,
mas este povo de quem fui escravo
não mais será escravo de ninguém!




E a Carta poética de Getúlio corta cidades e cidades, em trem de ferro, levada pelas mãos de jornaleiros, no Estado do Rio, revezando-se nas vendas o gordo Max e o magro José, e seguindo para outras regiões do país. Os jornaleiros se reabastecendo na Modinha Popular e... piuí... lá ia o trem: única coisa boa que os ingleses nos deixaram, dizia Vargas, certa vez, após haver discursado numa das paradas, em Cachoeiras de Macacu.
Meses decorridos, encontro o jornalista nordestino Armando Pacheco na redação de A Noite. Muito amigo do pintor marinhista cearense J. Carvalho, que construiu boa casa no bairro niteroiense de Santa Rosa valendo-se dos quadros que vendia sem molduras, levando as telas aos clientes, um desses clientes, Fernando Segismundo, debaixo do braço, Armando Pacheco a saudar-me:
“Sim senhor, hein! A sua adaptação poética da Carta de Getúlio está fazendo sucesso no Nordeste. Em Sobral, passava uma procissão entoando a Carta em versos na linha melódica do Queremos Deus...”
Mais algum tempo, sem um só exemplar da Carta em minha estante, volto à Modinha na esperança de conseguir algum. Lá encontro não Joaquim Luchesi mas o seu gráfico, e aperto-lhe a mão: “Está me reconhecendo?”. “O da Carta de Getúlio”, responde. Olha-me de frente, cofia o bigode, vai direto ao assunto: “Luchesi morreu. Ficou lhe devendo alguma coisa?”. “Não, ou parece que não”, voltei-me ao gráfico, pesaroso e aguardando o que de facto sucedera. E ele, a cofiar o bigode mais uma vez: “Luchesi caiu do alto do sobrado dos Tenentes”. Tenentes do Diabo, um dos clubes carnavalescos mais famosos do passado no Rio. Observa-se um instante de silêncio, ele limpa a garganta: “Mas a Carta... saiu toda! Luchesi chegou a tirar, além dos 200 mil, mais 100 mil exemplares!. Valeu”.
Com o fim da II Guerra Mundial, retornam dos campos da Itália os pracinhas brasileiros, cujo feito mais notável fora a tomada de Monte Castelo. Assisto da calçada oposta à do Diário Carioca, na Avenida Rio Branco, à passagem do cortejo dos esquifes com os despojos daqueles que tombaram em batalha. Olho para os lados e vejo homens, mulheres e até crianças com a mão sobre o peito. Sigo-os na reverência.
Corre o tempo; já no Diário da Noite sou escalado, juntamente com outro repórter, para a cobertura do desfile militar do 7 de Setembro na Avenida Presidente Vargas, quando um “cobra criada” do jornal chama-me a um canto e me dá a dica de como cobrir a parada sem fazer esforço. Segui as instruções dele. Eu alugava de uma inglesa um amplo quarto de frente para a rua Mariz e Barros, num agradável sobradinho, em Icaraí, a uma quadra da praia. A inglesa, dona Geniva, deliciava-se com a leitura de trechos de um romance que eu estava escrevendo sobre as noites nos dancings e cabarés do Rio. “Muito bom, senhor Fernando”, e procurando disfarçar os risinhos: “gostei...”.
A pouco do desfile, encontro tempo para pequena caminhada pela areia da praia e um mergulho. Volto para casa, uma chuveirada e eis-me trazendo bloco de papel e caneta diante de Oduvaldo Cozzi na tevê em preto e branco, Cozzi a moderar a voz em respeito à data cívica, tonitroante nas locuções esportivas.
Atravesso a baía de Guanabara, chego à rua Sacadura Cabral, entro na redação, dactilografo a matéria, surrando as teclas da máquina de escrever como quase sempre fazia – porque trocar as fitas era sempre sinal de chuva em qualquer jornal. E dou com o companheiro também escalado para cobrir o desfile já a meu lado, certificando-se do que eu escrevera, ali parado como um poste. “Mas não o vi no palanque!”, disse ele. “Mas é uma matéria a quatro mãos, assinada também por você, como vê lá no alto”, respondi. E ele, já que foi assim, a lamentar não ter aproveitado a manhã para uma esticada à praia...

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Fidel: OEA abre as portas do Cavalo de Troia




Fidel: A OEA abre as portas do Cavalo de Troia

O Império Americano fracassou de novo, repetindo-se o fiasco na 5ª edição da Cúpula das Américas – realizada em abril deste ano, 2009, em Trinidad e Tobago - na tentativa de dobrar a América Latina em favor de seus interesses. Em pauta, um documento já assinado por 33 países-membros da OEA, Organização dos Estados Americanos, pelo qual chegava-se a um consenso visando à derrogação do impedimento a Cuba de fazer parte da OEA. A ilha de Fidel se acha fora daquela organização desde 1962.
A OEA compõe-se de 34 cadeiras. Em uma delas, mal se sentou, a secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, que se esperava fosse acompanhar seus pares numa resolução consensual que reabriria as portas da organização à ilha caribenha, sem que o tivesse feito – sem maiores explicações – pegou o primeiro voo de regresso à Casa Branca.
Os ministros de Exterior que participam da XXXIX Assembléia Geral da OEA, à exceção do norte-americano, acordaram por consenso levantar a suspensão a Cuba, mas, para isso, as condições impostas pelos Estados Unidos levariam a Revolução Cubana para as mãos de um Fulgéncio Batista ressurrecto, na visão, principalmente, da Venezuela, Equador, Nicarágua, Bolívia e Brasil, além da própria república de Fidel,os quais têm sido os mais inflexíveis na preservação da soberania e dos valores de La Habana.
Ao lado de se irmão e sucessor Raúl Castro, o ex-presidente Fidel Castro disse que “Cuba tem demonstrado que se pode resistir ao bloqueio e avançar em todos os campos e, inclusive, cooperar com outros países. Citou observação feita pelo presidente equatoriano Rafael Correa ao desembarcar em Honduras: “Não é possível que os problemas da região sejam discutidos em Washington, construamos algo próprio, sem países distantes de nossa cultura, de nossos valores”.
E o ex-presidente Fidel Castro, agora praticamente na chefia vitalícia de Cuba, principal assessor e conselheiro de Raúl Castro, sublinhou que “a totalidade dos países da América Latina foi vítima, ao longo dos anos, de intervenções e agressões políticas e econômicas. Agora,“a OEA abre as portas do Cavalo de Troia”...