quinta-feira, 2 de julho de 2009

Do desembarque na Normandia ao mistério do "mar de lama"


in memoriam
Gilda Braga Linhares
Nelson Werneck Sodré
Tarcísio Tupinambá

parte I


Em junho de 2009, Estados Unidos, Inglaterra e Canadá comemoravam junto ao Monumento e Cemitério de Colleville-sur-Mer o 65º aniversário de um facto histórico levado ao ar e às impressoras do mundo ocidental, além das linhas de telégrafo, nas barras dos anos 40, como Dia D. Era o desembarque anglo-norte-americano e canadense na Normandia, que na visão de estrategistas do Leste Europeu fora precipitado. De todo modo, o Dia D entrou para a História militar do Ocidente como epicentro da Segunda Grande Guerra.

Ao discursar na cerimônia em memória dos mortos na Batalha da Normandia, ao Norte de Paris, o presidente Barack Obama demonstrou vivo reconhecimento pelo que esse conflito teria trazido para ambos os lados do Atlântico: o progresso ao longo do Século XX. Em verdade, o progresso para os países ricos, visto que os pobres, do lado Sul do Atlântico, consumando-se a predição ou intuição de Getúlio Vargas, então presidente do Estado Novo brasileiro, ficaram ao deus-dará na divisão dos espólios de guerra entre as potências vitoriosas.
O Brasil só deslanchou no pós-guerra à custa de arrastadas negociações, pouco éticas, por sinal, com os norte-americanos e os ingleses (ver parte II de Do desembarque na Normandia...), sem que lhe aparecesse outra alternativa, coerente com suas melhores tradições, para seguir em frente - fosse marcando passo - na retaguarda da civilização. Antes do Ciclo Vargas, o Brasil vivia ainda na Idade do Bicho da Seda.
E a versão que mais se aproxima da exatidão dos acontecimentos que se seguiram à ocupação de parte da França pelos nazis na década de 40 é a que sugere uma divisão de poderes em Paris entre a Alemanha, propriamente, e o regime de Vichy, a colaborar com os invasores. Estes, apoiados pela ultradireitista Accion Française de Charles Maurras, cujo lema era Família, Trabalho, Pátria. Numa projeção para o futuro, no Brasil seria, nos “anos de sufoco” da década de 60, a ultraconservadora TFP, sigla de Tradição, Família e Propriedade, a acobertar grandes latifundiários de pé contra trabalhadores rurais acusados de comunistas por reclamarem terras para plantarem. Ganharam os tefepistas, por isso, cadeiras no Congresso Nacional. Tendo avançado raízes a terras portenhas, a TFP se pôs do lado da Coroa britânica e seu apoio logístico – os Estados Unidos da América – na Guerra das Malvinas, publicando sucessivas matérias, pagas a peso de ouro, em periódicos argentinos, a classificar de comunistas os partidários da campanha “las Malvinas son argentinas”. Uma guerra patrocinada e abastecida pela OTAN, Organização do Tratado do Atlântico Norte, com a colaboração, nas sombras, do Chile de Pinochet, contra a soberania da República Argentina sobre as ilhas descobertas por marujos franceses. E muito antes de navegarem por lá os piratas de S.M. a Rainha dos Mares, ao contrário do que derrama a literatura anglo-estadunidense mundo em fora.
Em Colleville-sur-Mer, vem à tona a situação no Oriente Médio, tendo-se notado estreita afinidade de pensamentos entre Barack Obama e o presidente francês, Nicolas Sarkozy, em que “um Irã com armas nucleares é motivo de preocupação, não só para Israel e Estados Unidos, senão para toda a comunidade internacional”. Obama observou, porém, que sua administração queria “abordar esse problema mediante negociação com o regime de Teherã”. O presidente americano viu os frutos da II Grande Guerra em boa colheita, em sintonia com os anseios da Humanidade, sublinhando que o confronto de seis de junho de 1944 “por um pedaço de praia de só sete quilômetros de largura por três de extensão” fora determinante para que o mundo despertasse de um longo e extenuante pesadelo, o mais sombrio de todos os tempos. Verdade se diga, já quando as forças nazistas haviam deposto suas armas, rendendo-se aos soviéticos em Berlim.
A data de 6 de junho assinala, ademais, a chuva de jovens paraquedistas de um front ocidental improvisado, a cair sobre praias com seus botes, em águas gélidas da Normandia e na linha de fogo intermitente do inimigo, misturando-se às névoas desprendidas do espaço aéreo de uma Paris ocupada.
Acrescente-se que quando se deu o desembarque na Normandia as forças soviéticas reagiam estoicas, em seu próprio território, ao avanço dir-se-ia, contraditório em princípio, de feras acuadas, até as baterem, uma a uma, em sangrentos combates. Lê-se na Wikipédia, a Enciclopédia Livre, que a Batalha da Normandia “foi uma grande jogada política para manter a hegemonia ocidental na Europa, tendo em vista a iminente derrota alemã para o Exército Vermelho, que vinha derrotando os nazistas sucessivamente desde a famosa Batalha de Stalingrado”.
Portanto, bem à diferença do que a mídia norte-americana vem passando à opinião pública décadas a fio, a Batalha da Normandia pouco influiu na solução do conflito, servindo apenas como ponte referencial no episódio da libertação de Paris, inclusive pelo facto de o marechal Petain parecer mandar tanto ou mais que os titulares da ocupação de uma cidade praticamente dividida, ou repartida. E note-se que Hitler entrou em Paris como para emoldurar-se com o Arco do Triunfo.
O triunfo, entretanto, desenhava-se era nas neves russas que já se prenunciavam quando os generais do Fuhrer preparavam suas divisões para uma investida pretensamente conclusiva no verão. Quando as neves caíram como uma bênção e às avalanches sobre o front gigantesco que, margeando o rio Volga, as recebia quais reforços de tropas, soviéticas, muito bem treinadas e, sobretudo, acostumadas a duras intempéries.
Os alemães, enfiados em “simples uniformes de algodão”, conforme relatos apressados mas de todo confiáveis, extremamente dramáticos, feitos nos diários de guerra dos oficiais nazistas, entre eles von Friedrich Paulus (1890-1957), que comandou o 6º Exército do Terceiro Reich na Batalha de Stalingrado, a enfrentarem, centenas e centenas estirando-se congelados sobre neves glaciais, quedas de temperatura aproximadas dos 45 graus abaixo de zero!
Vem agora o presidente norte-americano declarar na celebração de Colleville-sur-Mer que “nenhum homem que tenha derramado seu sangue ou que tenha perdido um irmão pode dizer que a guerra é boa, porém todos sabemos que essa guerra foi essencial” (in El País, es.(6-6-2009). Refere-se, naturalmente, à guerra levada pelos Aliados do Ocidente até à metade do percurso mapeado a percevejos niquelados , até ao lançamento, pelos Estados Unidos, das bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, em resposta (!) ao ataque da aviação japonesa à base aérea estadunidense de Pearl Harbour.
Porque a chamada Grande Guerra Patriótica, a impulsada do Leste Europeu, culmina
com a rendição dos alemães aos soviéticos no coração de Berlim, seguida do hasteamento, no alto do imponente edifício do Reichtag, da bandeira a tremular com os símbolos da foice e do martelo. O sonho às avessas de Adolf Hitler, que sofria da miragem de lhe estenderem tapetes para sua entrada triunfal no Kremlin. Em linha doutrinária que, desatada de Washinton, à mira dos fortes Apache da logística do Pentágono, acaba afinando-se ao sonho americano de derrotar a URSS a socos de heróis de celulóide revelados pela Guerra Fria. Ou, expressamente, de infiltrações persistentes no sistema russo, a mesma tática adotada, em vários momentos da História, em países da América Latina e o Caribe. Sem falarmos nos horrendos crimes praticados no Vietnã, em outras insânias do imperialismo ocidental, na covarde destruição de Bagdá, um dos mais ricos acervos arquitetônicos e documentais da História da Humanidade, motivo de instigante e irretocável artigo de Mansour Challita publicado no Globo, do Rio de Janeiro, em 24 de fevereiro de 1991, tendo por título “Bagdá, a bela”.
Premiem-se, por instantes, com um passeio por este texto de Challita: (...)“Bagdá foi fundada em 762 nas duas margens do rio Tigre, a 450 quilômetros do Golfo Pérsico. Mas antes dela, a terra onde ela se situa já era palco de grandes civilizações, notadamente a Assíria e a Caldéia. A civilização assíria, talvez a mais antiga de todas (dizem as lendas que Assur, seu fundador, era neto de Noah) destacou-se pela força e a organização. E também pela cultura. A biblioteca particular do rei continha mais de 4.000 manuscritos, redigidos em caracteres cuneiformes.
A civilização caldéia distinguiu-se pelo seu culto à alegria de viver. Sua capital, Babilônia, é chamada a Paris do mundo antigo, porque, como Paris, era um centro de diletantismo e de divertimento. A mulher babilônica era a mais emancipada do Oriente. A rainha partilhava com o rei os encargos do governo. Vênus, adorada também lá, era representada sob a forma de uma mulher em pé sobre dois leões: a força submetida à beleza.
Quando Bagdá foi fundada pelo califa Al-Mansur herdava aquelas tradições. Sob o califa Harun Al-Rachid (768- 809) ela se tornou uma cidade única no mundo. Capital do império árabe e da cultura árabe, era ao mesmo tempo uma cidade rica, poderosa, culta, emancipada, alegre. Lá eram concentradas as mulheres mais lindas e os tesouros mais preciosos do mundo, e também os maiores poetas, escritores, músicos, arquitetos, matemáticos, médicos, astrônomos, tradutores.
Os califas eram protetores generosos das artes e das ciências. A primeira tradução de Aristóteles foi paga, seu peso, em diamantes. ‘As mil e uma noites’, cujo ambiente principal era a Bagdá de Harun Al-Rachid – refletiam nas suas histórias cheias de feiticeiros que descobrem em toda parte montes de ouro, prata, diamantes, pérolas - o luxo insuperável daquela metrópole” (...)

Descerrado todo um quadro de esplendor, num texto digno de figurar nas melhores antologias, sem omitir os períodos de invasões pelos bárbaros saqueadores a partir do Século XIII até chegar à Primeira Guerra Mundial, Mansour Challita passa às estrepolias do império da modernidade:
(...) “Desde então, e após uma época de colonização britânica (1917-1932) Bagdá tem tentado readquirir algo de seu antigo esplendor. Incentivou o artesanato de tapetes coloridos, que evocam a vida alegre de ‘As mil e uma noites’. Aproveitou suas riquezas petrolíferas para criar uma economia próspera. Edificou três universidades. Cuidou de seus museus onde as glórias do passado sonham com glórias futuras. Quis também ser uma potência militar e invadir seus vizinhos (esquecendo que isto não é permitido a todos).
Bagdá foi submetida dia e noite a uma chuva ininterrupta de bombas destrutivas que nem os mais macabros contos de terror anteciparam. Será dito um dia que o que os tártaros, mongóis e turcomanos não conseguiram destruir da bela Bagdá foi destruído pela maior democracia do Século XX em nome da justiça e da liberdade?”.

Em dezembro de 2006, Saddan Hussein é levado à forca no Iraque pelos Estados Unidos da América, que se mostravam dispostos a assenhorear-se até a última gota e a qualquer preço, como sempre foi do seu feitio agir, do petróleo no Oriente Médio. Uma execução estúpida, de uma covardia sem par, na qual o líder iraqueano dispensou a venda nos olhos, mirando de frente o carrasco. Ele reclamava julgamento, imparcial, num tribunal internacional, de que os Estados Unidos haviam logrado escapar, pelos crimes cometidos no Vietnã, os maiores de todos os tempos, apesar dos incansáveis esforços de Bertrand Russell para que ‘a maior democracia do Século XX’ fosse encaminhada ao banco de criminosos de guerra.
E, assim, se formou o Império Americano. Esquecendo-se apenas de pendurar o retrato de Adolf no Salão Oval da Casa Branca.
Não existindo mais União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, nem o Muro de Berlim, nem se tendo constituído uma nova potência, ou superpotência, mundial em condições de fazer face a um império emergido de um passado recente, a China a cumprir sua destinação enigmática, que diferença faria se descendentes ideológicos do Fuhrer se pusessem agora em marcha batida rumo a um sítio ideal? Talvez por isso a Rússia de Putin mantém os mísseis da antiga URSS não desativados mas, ao contrário, apontados para os nódulos nevrálgicos do Ocidente.
Estendam na parede do quartel-general o mapa do mundo, preguem alfinetes niquelados nas zonas de progressão castrense. Observem que em 1941 a Alemanha já havia tomado a Polônia e que suas presas subsequentes seriam a Tchecoslováquia, a Bélgica, a Holanda, a Dinamarca, a Noruega e a França, nesta ordem.
E, “apesar da derrota (para os russos, já em Berlim), os círculos militares da Alemanha não abdicaram dos seus sonhos doentios de conquista e domínio mundial (A Batalha de Stalingrado, Edições da Agência de Imprensa Novosti, Moscou). Os governos da Inglaterra, França e Estados Unidos acalentavam tais sonhos, pois consideravam o militarismo alemão como principal força de choque contra a União Soviética. Somente entre 1923 e 1929 a Alemanha recebeu cerca de 4 bilhões de dólares de empréstimos estrangeiros, dos quais mais da metade – 2,5 bilhões de dólares – foram obtidos nos Estados Unidos.(...) Estes elevados montantes permitiram aos militaristas alemães reerguer a sua indústria bélica e formar um vasto exército equipado segundo a última palavra da técnica”.

Isto significa que, caso os alemães tivessem chegado ao término da guerra com a força que lhes atribuía a Norteamerica, capaz de bater os russos, Washington e a Berlim do Terceiro Reich se teriam unido no combate, não ao terrorismo de após Guerra Fria - das brumas do Oriente Médio - mas ao comunismo, ou socialismo - tanto faz..

Os Estados Unidos mostraram, mais uma vez, as suas unhas fascistas no regime terrivelmente caricato do macarthismo, criado pelo senador republicano Joseph McCarthy e denominado pela grande e corajosa dramaturga judia Lillian Hellman de ‘a caça às bruxas’, título de um de um de seus livros, assim traduzido no Brasil do original Scoundrel Time, no qual ela relata, sem meias palavras, pífias acusações de agentes do comunismo internacional assacadas contra autores e artistas de Hollywood, a intelectuais de um modo geral da pátria de Lincoln. Lillian foi quem enfrentou cara a cara os inquisidores da Casa Branca. Não houve fogueira, mas cadeira elétrica na prisão de Sing-Sing para o casal Rosenberg, os judeus Julius e Ethel, acusados sem provas de passar segredos nucleares aos soviéticos.
E Lillian Hellman, cujas peças, várias premiadas, foram reunidas num volume por título The Collected Plays, escolhida por críticos de arte a Mulher do Ano em 1973, Medalha de Ouro para Drama, concedida pelo National Institute of Arts and Letters, entre muitas outras distinções, acaba camareira num hotel de Nova York.

"Armistice? ! Non!" "Capitulation?!" Oui !"



Graça Aranha em Paris


I n t e r m e z z o

“Armistice?! Non!” "Capitulation?! Oui!"


Ao término da I Guerra Mundial (1914-1918), Graça Aranha, autor de Canaã, membro da Academia Brasileira de Letras e que era, então, embaixador do Brasil na Holanda, encontra-se em Paris com Maurício de Medeiros (1885-1966), ensaísta, jornalista e psiquiatra, que entre outras obras deixou Idéias, Homens e Fatos, publicada em 1934, ano do falecimento do seu irmão, o refinado poeta pernambucano Medeiros e Albuquerque, e Inconsciente Diabólico. Maurício de Medeiros era carioca da gema. Foi ministro da Saúde em dois governos: de Nereu Ramos e de Juscelino Kubitschek.
Transpirava elegância, o testemunho de quantos com ele conviveram. Em seu discurso de posse na Academia, ocupando a cadeira nº 38, patronímica de Tobias Barreto, Maurício de Medeiros abre seu discurso rendendo sentida homenagem à memória de Medeiros e Albuquerque, irmão quase um pai, dizia. Maurício de Medeiros especializou-se em medicina psiquiátrica na França de 1906 a 1907.
Em Paris, outubro de 1918 desfolhava-se, a Prússia do Kaiser Guilherme II a descansar armas, e entre as forças aliadas corriam rumores de armistício em curto espaço de tempo. Os franceses, com os belgas, primando pela tradição de sempre perseguirem a vitória até o fim, forçam a retirada dos alemães de suas fronteiras.
Maurício de Medeiros, no ardor do discurso pronunciado na Casa de Machado de Assis, conta que, achando-se também Delgado de Carvalho, nessa ocasião, em Paris e por cultivar devotadamente a língua francesa para sair-se bem em sua cátedra e nas animadas e inteligentes papotages dos sofisticados cafés parisienses, a escrever em francês a la pata llana, como diriam os vizinhos madrilhenhos, esmerando-se, por igual, na pronúncia, descobre Graça Aranha a dobrar uma rua. Aranha era sua vítima preferida de pilhérias por causa do mal francês que ele falava, ao passo que escrevia nesse idioma com toda correção, o que gerava um enigma na ponta da orelha ferinamente atenta de Delgado.
Em 1916 saía em Paris um livro titulado O Plano Germanista Desmascarado, com prefácio no tom e tinta de Vive la France!... de Graça Aranha e que já no ano seguinte chegava, em português, às livrarias brasileiras.
E estava o autor de Canaã parlateando numa roda de conhecidos da Europa a respeito da Liga da Paz, a intelectualidade brasileira a manifestar-se por esse diapasão, com algumas ressalvas como Capistrano de Abreu, que se inclinava pela Alemanha do Kaiser, e o que poderia vir depois. Viria a Liga das Nações, no umbigo da II Grande Guerra.
Despede-se, pois, Delgado dos conhecidos sem saber que, discretamente, Aranha o estivera escutando atrás de uma árvore ou de algum outro obstáculo. Até que Delgado dele se aproxima, abrindo os braços: “Graça Aranha! Como você está falando bem o francês!” O diplomata Graça Aranha encolhe-se em sua timidez: “Mas eu estava falando era em holandês...”
E pensar que, na véspera, em discurso que ele principiara pausadamente, o fechava com firmes e empunhadas palavras de ordem:
“Armistice? Non! Capitulation? Oui!!”
Os franceses vão ao delírio, numa ovação que se prolongou por quase uma hora.