quarta-feira, 27 de outubro de 2010

O jogo das parecenças


Já na Guerra do Paraguai (1864-70) se falava em armas biológicas, e o assunto virou polêmica à época. Enfim, as guerras se sucedem, dos bacamartes aos mísseis que vimos ainda no século xx pela tevê – explodir impiedosos sobre Bagdá, sobre a História da Humanidade. Uma ‘noite de São Bartolomeu’ acionada em computadores... Antes, porém, o presidente George W. Bush sendo penteado por trás pelo câmera a fim de apresentar-se aos telespectadores com o cabelo em boa forma e com a presunção, diga-se pelo caminho, de assemelhar-se a Robert Taylor na co-produção EUA-URSS Canção da Rússia ainda que uma vez na vida. Mas ninguém poderia imaginar que aquele filme fosse tornar-se prenúncio de uma Guerra Fria tocada a manivela com fole pelo senador Joseph McCarthy e suas implicações em Sing-Sing, com a execução dos cientistas Julius e Ethel Rosenberg na cadeira elétrica, acusados de passar segredos nucleares a Moscou.
Joga-se damas na praça da Cruz Vermelha, xadrez, bombas inteligentes em círculos pelos céus do Oriente Próximo, o Sou Eu – mais apropriado a moças em noite de chuva no Engenho do Mato, o jôgo da velha, o do encouraçado, bisca, o jogo de malha em terreiro de antigas fazendas de café, e por aí vai. Esqueceram-se foi do jogo das parecenças.
E em que consiste este jogo? Muito simples: pega-se, para começar, duas figuras de combatentes, com ou sem estrelas nos ombros, ou mesmo duas peças de qualquer coisa que as representem, só não valendo caroços de feijão ou de milho, que podem
escorregar para debaixo da mesa.
Feito isso, inicia-se o jogo, dele participando de duas a seis pessoas – dependendo da capacidade da mesa. E o objetivo é avaliar os conhecimentos de cada uma delas em guerras mundiais. A partir da II Grande Guerra – a guerra de países aliados ocidentais contra a Alemanha nazis, a Itália de Mussoline, o Japão de Hiroíto, e o conflito baseado em Moscou, paralelo ao das tropas sob o comando de Eisenhower, ou seja, o nomeado por Stalin como a Grande Guerra Patriótica. Ironicamente, ou sem nenhuma ironia, a primeira a atingir solo do Reichstag, quando faz a troca da Suástica pela bandeira da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, nela pontificando a foice e o martelo – símbolo de um mundo em construção.
Querem um exemplo de como se joga o parecenças/ Vamos lá. Inicia-se, cada jogador, fazendo de conta estar formando cartas de um mesmo naipe, abertas para seu rosto, às escondidas, portanto, do adversário. As cartas irreais são figurinhas de combatentes de guerra, oficiais de cavalaria, marechais de campo, tropas de elite das SS etc, cotejados com militares de Norteamérica do século XXI cuja altivez se reflete em suas minúsculas lentes oculares, o toque de elegância de oficiais da Gestapo, De resto, será só comparar a figura de um Donald Rumsfeld, secretário da Defesa dos Estados Unidos na gestão do presidente George W. Bush a algum dos oficiais das SS. Bush cobriu de elogios a Rumsfeld, terminada a 2ª ou 3ª Guerra do Golfo (houve tantas guerras assim no Golfo Pérsico ou as inventaram? a ponto de aquele presidente dizer que
até pelos olhos ele, Rumsfeld, irradiava confiança e simpatia... De todo modo, um figuraço a cair como uma luva para o jogo das parecenças; não acham?



*plis plas
O Brasil guarda luto por três dias juntamente com os demais países da América Latina, irmanados no clima de consternação que baixou inesperadamene sobre nosso continente Sul pelo falecimento do ex- presidente da República Argentina, Néstor Kirshner, uma voz que se cala em defesa inflexível do projeto de integração latino-americana. E que se fará ouvir, em pensamento, sempre que dela necessitarem os povos irmãos ibero-americanos.

*O Instituto Latino-Americano de Cultura Ilac-Brasil, entidade civil sem fins lucrativos, com sede no Rio de Janeiro, fundado em 25 de outubro de 1985 sob a presidência de honra do general e historiador Nelson Werneck Sodré, tendo como patrono o poeta Pablo Neruda, associa-se às homenagens que estão sendo prestadas de todas as partes do mundo à memória de Néstor Kirshner.

O Ilac-Brasil vem, ainda, solicitar ao gabinete civil da Casa Rosada que faça chegar à Senhora Presidenta Cristina Fernández de Kirshner as mais sentidas manifestações de pesar pelo vazio que se abre no cenário político intercontinental.

Néstor Kirshner morre aos 60 anos. Advogado, abandonou a banca para dedicar-se à política, e o fez como se lhe tivesse o eleitorado conferido uma honraria. Pautava seus atos nos princípios do Direito. Por este diapasão, acolheram-no com as honras de um estadista voltado aos interesses de s eu povo e da agremiação política que escolhera e à qual manteve-se fiel em seus dias. Casado com Cristina Fernández, agora na chefia do governo da Argentina, a quem conheceu em um comício político dos peronistas, a partir daí estavam sempre juntos dentro e fora do palanque.





sábado, 16 de outubro de 2010

Presidenta, não tenha medo dos gurkas!


Em 20 de junho de 1820 morre em Buenos Aires o general Manuel Belgrano, herói nacional, quem criou a bandeira da República Argentina, a ‘celeste y blanca’, que viria tremular no arquipélago das Malvinas de 2 de abril a 13 de junho de l982. Em verdade, porém, a data de 2 de abril assinala, não propriamente o início da guerra e sim a reocupação militar platense – sem tiros ou troca de tiros, o que não configura, obviamente, um confronto de tropas - das ilhas descobertas pelo navegador italiano Américo Vespucio nada menos de l86 anos antes de o britânico John Strong, predador de faunas marinhas, ter anunciado sua passagem por lá. Foi Strong o autor da chancela de Falklands posta sobre aquelas ilhas - localizadas a uma distância praticamente imensurável de Londres, e não o avô do poeta Lord Byron, John Byron, a quem as Letras jurídicas impropriamente atribuem tal feito.
Assim, o conflito no Atlântico Sul iniciou-se dias após ter a primeira ministra Margaret Thatcher formalizado a declaração de guerra à Argentina ao subir à tribuna do parlamento já anunciando o envio de uma força-tarefa da Royal Navy, uma das unidades mais bem armadas da OTAN, Organização do Tratado do Atlântico Norte , ao arquipélago retomado pelos platenses sob o comando do tenente-general Leopoldo Galtieri, último militar a assumir o governo da Argentina logo após o golpe assestado nas instituições pelo tenente-general Jorge Rafael Videla, que apeara do poder Isabelita Perón.
A biografia de Isabel Martinez, que após casar-se com Juan Domingo Perón, além de acrescentar ao seu nome o dele, passou a chamar-se Isabelita nos círculos sociais e, de certo modo, também oficiais, teve uma vida bastante atribulada, fruto de sua inexperiência menos política do que de governabilidade. Como ex-atriz de teatro, não lhe foi difícil representar aos olhos, à percepção apressada de muitos até certo ponto, na vida real, a primeira mulher de Perón, Evita. Mas estava longe de parecer-se com ela. Esvaíra-se a época em que o peronismo, designativo emanado do Partido Justicialista, que foi fundado por Perón, havia conquistado as ruas, com Evita: uma nuvem a carregar uma estrela de brilho intenso, que passara.

Evita falava por ela mesma, influía nas decisões políticas e administrativas do presidente Perón. Por isso mesmo, era amada pelo povo, que a ela apunha toda sua confiança. Já Isabel, que concorrera às eleições de setembro de 1973 secundando a chapa encabeçada por Juan Domingo Perón, o qual morreria quase um ano depois, assumindo então o governo Isabelita, era como sombra do ministro do Bem Estar Social, José López Rega, que recebera o codinome ‘El Brujo’.
Em 1974, Maria Estela Martinez de Perón, sob a influência de ‘El Brujo’, nomeia o tenente general Jorge Rafael Videla comandante em chefe do Exército. Dava-lhe carta branca para fazer o que bem lhe aprouvesse. E Videla aplica o golpe de Estado dois anos depois. A partir daí, escurece o tempo na Argentina...
O país experimenta o mais sangrento terrorismo de Estado de que se teve notícia na América Latina e o Caribe, batendo o Brasil com sua longa ditadura da História recente em desaparecimentos políticos, sendo de mencionar “la noche de los lapices’, em que foram lançados de helicóptero ao mar estudantes secundaristas acusados de promover reuniões ‘subversivas’ na antiga Escola União, da cidade de La Plata, dos quais Pablo Diaz, único sobrevivente, testemunhou em juízo, mais tarde, o massacre.
Formavam a tríade do terror que empunhou ‘las riendas’ da Argentina naquele período o tenente general Videla, o almirante Emílio Massera e o brigadeiro Orlando Agosti. Sucedeu aos três, por assim dizer leões da neoarena romana o moderado, em relação àqueles, tenente general Leopoldo Galtieri, cujo ‘crime’ maior foi ter pretendido entrar para a História como quem houvesse resgatado a soberania da República Argentina sobre as ilhas originalmente chamadas Malouines, nome que lhes deram marinheiros franceses de Saint Malo, hoje uma das cidades turísticas mais visitadas da França e que no passado distante de ‘piratería’ britânica, expressão cunhada pela Real Academia de Espanha, foi a ‘pia batismal’ das ilhas Malvinas, que o reino de Elizabeth II teima agora em fazer, de novo, frente à Argentina na questão da soberania sobre o arquipélago austral.
Anglófilos do Brasil, seguindo a mesma linha de fascinação do argentino Martinez de Hoz, ministro da Economia na ‘guerra suja’ do pampa portenho, pela Grã-Bretanha, escreveram em colunas assinadas da imprensa louvores às ações da carcomida e bolorenta ‘rainha dos mares’ no Atlântico Sul. ‘Guisado’ de nações e etnias coloniais, a Grã-Bretanha não esqueceu de levar nesta sua vilegiatura bélica, como costumeiramente fazia em seu tempo de franca pirataria, uma guarnição de ‘gurkas’, africanos treinados especificamente para a degola de prisioneiros de guerra ou ‘inimigos’ nos confrontos corpo a corpo.
Assinando uma coluna semanal em Zero Hora, RS, o jurista, político, diplomata, membro da Academia Brasileira de Letras Afonso Arinos de Melo Franco defendeu durante a Guerra das Malvinas o direito ‘jus naturale’ inequívoco de ficarem aquelas ilhas sob bandeira platense. Ele se baseava, aprioristicamente, em factos e circunstâncias que cercavam as Malvinas desde sua origem – franco-espanhola. Lembrava, sobretudo, que a Grã-Bretanha remoia pretensões de domínio não apenas do petróleo existente nas Malvinas como também sobre a própria Antártida, situada a cavaleiro das ‘Isles Malouines’.
Isto posto, não há por que negar à Argentina retornar as vistas às ilhas que, de direito, lhe pertencem.
Cícero já dizia que os homens nasceram para a Justiça e que é na própria Natureza, não no arbítrio, que se funda o Direito.

Plis plas
· A presidenta Cristina Kirchner espera por uma resolução do Comitê das Nações Unidas de Descolonização sobre a velha questão das ilhas Malvinas, cujas raízes se aprofundam cada vez mais na Corte (histórica) de Paris. São mínimas as probabilidades de a ONU acolher o recurso platino, por ser este organismo internacional dominado pelo’guisado’ britânico cujo poder de veto é infalível.
· Da vez passada, supõe-se que até o martelo da Justiça – representada pela ONU - tenha desaparecido das mãos do magistrado. Por artes de berliques e berloques.
· Em 1764 a França inaugura uma base naval nas ‘Isles Malouines’, julgando estar garantindo seu domínio sobre elas. E não é que já no ano seguinte os piratas de SM a Rainha da Inglaterra vão lá e instalam a sua base?
· Presidenta, não tenha medo dos gurkas! Também eles precisam ser descolonizados...
· Os kelpers, quer dizer algas marinhas, como são chamados os habitantes das Malvinas, só deixaram de ser ‘cidadãos de segunda classe’ depois de terem os ingleses saído vitoriosos do conflito em nosso Atlântico.
· Somente desse modo puderam os kelpers subir um grau na hierarquia britânica. Foram a súditos da Rainha Elizabeth II.
· De Lord Byron: ‘O melhor profeta do mundo é o passado’.

sábado, 9 de outubro de 2010

Polícia, escola de ‘cobras criadas’

Já ouviram falar em Amado Ribeiro? Um dos maiores repórteres de polícia que conheci. Profissional dos mais competentes e arrojados, cria do vespertino A Noite - uma das empresas incorporadas ao patrimônio da União, ao lado do Jornal do Commercio. Do tempo em que novos jornalistas eram avaliados na reportagem de polícia, passando pelo crivo de veteranos, de ‘cobras criadas’ – na gíria da imprensa, aqueles mais experientes, calejados - e cujo desempenho e argúcia o secretário de redação ou o chefe de reportagem observavam atentamente a fim de opinarem em reunião com um dos diretores do jornal no final da semana.
A seleção, contudo, nem sempre se dava desta forma. Às vezes, o diretor Carvalho Netto, de A Noite, chamava o candidato a repórter cuja presença na redação já era habitual e lhe entregava a pauta invariavelmente com um assunto de polícia. Quem a rigor passava a Carvalho Netto os assuntos que deveriam constar na pauta era o ‘cobra’ Lincoln Massena, que à sua mesa, sem nada a fazer que não fosse cortar a gilete, do Jornal do Commercio, notícias e anúncios curiosos como sugestões de pauta, debruçava-se em aparas de papel trazidas das oficinas e sobre as quais se punha a desenhar figuras humanas e de bichos até o despertarem, quando desce os óculos à mesa e olha para cima.
Começava o ritual do iniciante. Um repórter fotográfico, dos mais antigos no jornal, acompanhava o foca até o carro da reportagem e de lá partiam para a apuração da notícia.
A caminho, ante um ajuntamento de curiosos misturados a embarcados em algum veículo acidentado, o motorista do jornal se antecede ao fotógrafo, faz uma parada para ir logo orientando o novo repórter nas anotações de praxe: as placas dos carros envolvidos no acidente e outras informações eventuais. Quando chega a viatura da polícia e, em pouco, se dissolve a aglomeração, os policiais ordenando que se afastassem... Ouve-se a sirene da ambulância, reagrupam-se curiosos, saem dois enfermeiros com uma maca, sobre a qual estendem o ferido... Nada grave, nada grave! Um policial aos berros, vão se afastando, vão se afastando... No geral, conhecia cada repórter de polícia. Assim, suas ordens eram dirigidas apenas aos curiosos. O policial, contanto que não o comprometessem, estava sempre à espera de fotos dele em ação publicadas.
Eu, que entrara para A Noite dias antes de Amado Ribeiro, por conta de uma reportagem que havia publicado em A Noite Ilustrada, semanário então dirigido por André Carrazone, e que nada tinha que ver com coisas da polícia, amassava o pão de cada dia na reportagem geral – denominação que na linguagem jornalística se dava, ou ainda se dá, às matérias sobre assuntos diversos. Neste caso, o repórter correspondia, de passagem, ao clínico geral, incluindo-se a apuração junto aos distritos policiais. Assim como a Medicina tem as suas especialidades, na Imprensa há quem se especialize em repórter esportivo, repórter político etc. Detalhe bastante curioso se refere ao repórter de polícia quando se faz criador, dentro de sua especialidade, de verdadeira escola de jornalismo. Algo parecido a escola recorrente de jornalismo.
Ao contrário de Amado Ribeiro, foram-me oferecidas poucas chances de mostrar alguma aptidão para cobertura de um facto policial ou de um desses mistérios envolventes, mais adequados a um ‘Sherlock Holmes’ ou ‘Hercule Poirot’.
Amado demonstrava ter essa aptidão. Do jornal de Samuel Wainer, Ultima Hora, onde Pinheiro Júnior já havia marcado sua carreira de repórter com uma série de audaciosas reportagens sobre ‘Juventude Transviada’, para isso infiltrando-se num grupo de lambretistas de ‘pegas’ nas pistas da Zona Sul do Rio, Amado Ribeiro salta para a fama da dramaturgia – não como autor, nem como ator, e sim na condição de personagem de uma telenovela escrita por Nelson Rodrigues, que por muitos anos manteve em UH o folhetim, de grande sucesso, A Vida Como Ela É. A novela tendo Amado Ribeiro como um dos personagens principais, levada ao cinema repetiu o êxito obtido no teatro.
De minha parte, foi através de uma entrevista com o poeta Jacy Pacheco (já falecido e que era primo de Noel Rosa, também o seu maior biógrafo) que entrei para A Noite. Jacy Pacheco, recebendo-me em sua casa, derrama sobre a mesa farto material iconográfico do ‘poeta da Vila’, fornece-me algumas fotos dele para a entrevista, que acaba saindo em A Noite Ilustrada após haver cumprido sua ‘via crucis’ por várias publicações, no Rio, todas deixando-a na gaveta por sete a quinze dias ‘para exame’, diziam. Uma delas, a Revista do Rádio, através do seu chefe de reportagem, decorrido o prazo que me fora dado para ‘exame’, justificou sua recusa dizendo que Noel já estava mumificado, podendo interessar agora àquela revista – exemplificou – seriam uns suspiros, que fossem, da Emilinha, Emilinha Borba, a quem eu viria a conhecer pessoalmente mais tarde, num dos estúdios da Rádio Nacional já como repórter de A Noite, passando a admirá-la por sua simpatia, pelo seu carisma.
Lavei a alma ao dar com a matéria de Noel pendurada ao meio de A Noite Ilustrada nas bancas da Avenida Rio Branco a partir da Praça Mauá. E fui, sentindo-me vitorioso, à caixa do jornal-revista semanal receber o que me era devido. Não demorou, admitiam-me no diário A Noite, de saudosa memória; relevem-me o lugar comum. Petronilha Pimentel, Arina de Carvalho... Vocês ainda estão neste planeta? Lembra-se, Arina, de quando você me levou ao ‘Clube da Avenca’, na Avenida Mem de Sá, para conhecer a Liu? E faz tempo que Ledo Ivo é Imortal, sabiam? Não creio, mas falam que ele teria adquirido na Academia Brasileira de Letras, com seus direitos autorais, passaporte para um planeta menos poluído... Quanto a você, Petronilha, bem que merecia o resgate de Rainha da Petrobras. Não é justo que a Petrobras fique sem a sua rainha.
Outro ‘cobra criada’, Manuel Abrantes, que com o fechamento de A Noite, a que se seguiu o do Dário da Noite, vim encontrá-lo n’O Dia na chefia da Reportagem daquele matutino de Chagas Freitas.
Abrantes reocupava, em outro jornal mas sentindo-se em casa, um posto conquistado em A Noite a duras penas – expressão aqui usada no sentido de que o cavara com muita garra, durante anos, tendo-se iniciado como contínuo. Os mais antigos diziam que ele fez, praticamente, o curso primário na Redação, aprendendo a ler e escrever, inclusive à máquina, com os plantonistas de Polícia após o ‘fechamento’de cada edição. Quando já sabia, pelo menos, ‘catar milho’ na máquina de escrever, o plantonista lhe passava a tarefa da ronda pelos distritos policiais, e Abrantes dela se desincumbia aos garranchos que entanto davam para ele entender o suficiente a fim de bater à máquina, com firmeza, a apuração, deixando-a depois, com um peso, sobre a mesa.
Mais um tempo, Abrantes ganha altura, física e mental, e ei-lo a dactilografar ligeiro as suas matérias, além de responder a memorandos de departamentos do jornal e de dar ordens a repórteres com um sorriso maroto de quem estava de bem com a vida.
Manuel Abrantes vai para O Dia e lá permanece por longo período. Recordo-me de que um dos contínuos teve atenção especial de Abrantes, que queria ajudá-lo a galgar melhor situação dentro ou fora da empresa. Mas ele parecia cabeça dura. Abrantes irritava-se: ‘Quer ser contínuo para o resto da vida?’ Faltou completar: ‘Como eu fui e aqui estou?’
Eu editava a página de Política da Ultima Hora, então funcionando atrás da Rodoviária Novo Rio, já em seu ocaso, quando nos chega a notícia do falecimento de Manuel Abrantes. Pensei, incontinenti: ‘Ele morreu amargurado’. Eu soube que, ultimamente, logo após sua demissão de ‘o novo’ O Dia pela ‘tropa de choque’, de oposição, vinda do Jornal do Brasil, destacada para varrer os quadros do ex-jornal de Chagas, Abrantes ficava horas, o dia inteiro na rua, debaixo da marquise d’O Dia, à espera de algum sobrevivente do vendaval que zunira por aqueles lados - a fim de conversarem.
E que teria sido feito do Pequeno Jornaleiro, que esculpido em bronze para a Praça Mauá, por ocasião da construção do Edifício A Noite, na década de 30, de lá desapareceu misteriosamente? Sobre a simpática estatueta escreveu Graciliano Ramos, autor de Vidas Secas, sua obra principal: ‘Não é somente o jornalista que explora vantajosamente os crimes – ele o garoto endiabrado também sabe tirar partido das mais insignificantes perturbações da ordem, revestindo todos os fatos de acessórios que lhes dão proporções extraordinárias. Parece que tem o dom de pôr um grande vidro de aumento em cima dos acontecimentos. Enfim, sob certos pontos de vista, o pequeno vendedor de jornais é uma espécie de jornalista em miniatura’...
Esvoaçam-se os anos, some o bronze do Pequeno Jornaleiro e, no primeiro dia de governo de Fernando Henrique Cardoso, extingue-se a Fundação Darcy Vargas, que mantinha a modelar LBA, a cobrir todo o país, escalpelada no governo anterior, de Fernando Collor de Mello.
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