Já ouviram falar em Amado Ribeiro? Um dos maiores repórteres de polícia que conheci. Profissional dos mais competentes e arrojados, cria do vespertino A Noite - uma das empresas incorporadas ao patrimônio da União, ao lado do Jornal do Commercio. Do tempo em que novos jornalistas eram avaliados na reportagem de polícia, passando pelo crivo de veteranos, de ‘cobras criadas’ – na gíria da imprensa, aqueles mais experientes, calejados - e cujo desempenho e argúcia o secretário de redação ou o chefe de reportagem observavam atentamente a fim de opinarem em reunião com um dos diretores do jornal no final da semana.
A seleção, contudo, nem sempre se dava desta forma. Às vezes, o diretor Carvalho Netto, de A Noite, chamava o candidato a repórter cuja presença na redação já era habitual e lhe entregava a pauta invariavelmente com um assunto de polícia. Quem a rigor passava a Carvalho Netto os assuntos que deveriam constar na pauta era o ‘cobra’ Lincoln Massena, que à sua mesa, sem nada a fazer que não fosse cortar a gilete, do Jornal do Commercio, notícias e anúncios curiosos como sugestões de pauta, debruçava-se em aparas de papel trazidas das oficinas e sobre as quais se punha a desenhar figuras humanas e de bichos até o despertarem, quando desce os óculos à mesa e olha para cima.
Começava o ritual do iniciante. Um repórter fotográfico, dos mais antigos no jornal, acompanhava o foca até o carro da reportagem e de lá partiam para a apuração da notícia.
A caminho, ante um ajuntamento de curiosos misturados a embarcados em algum veículo acidentado, o motorista do jornal se antecede ao fotógrafo, faz uma parada para ir logo orientando o novo repórter nas anotações de praxe: as placas dos carros envolvidos no acidente e outras informações eventuais. Quando chega a viatura da polícia e, em pouco, se dissolve a aglomeração, os policiais ordenando que se afastassem... Ouve-se a sirene da ambulância, reagrupam-se curiosos, saem dois enfermeiros com uma maca, sobre a qual estendem o ferido... Nada grave, nada grave! Um policial aos berros, vão se afastando, vão se afastando... No geral, conhecia cada repórter de polícia. Assim, suas ordens eram dirigidas apenas aos curiosos. O policial, contanto que não o comprometessem, estava sempre à espera de fotos dele em ação publicadas.
Eu, que entrara para A Noite dias antes de Amado Ribeiro, por conta de uma reportagem que havia publicado em A Noite Ilustrada, semanário então dirigido por André Carrazone, e que nada tinha que ver com coisas da polícia, amassava o pão de cada dia na reportagem geral – denominação que na linguagem jornalística se dava, ou ainda se dá, às matérias sobre assuntos diversos. Neste caso, o repórter correspondia, de passagem, ao clínico geral, incluindo-se a apuração junto aos distritos policiais. Assim como a Medicina tem as suas especialidades, na Imprensa há quem se especialize em repórter esportivo, repórter político etc. Detalhe bastante curioso se refere ao repórter de polícia quando se faz criador, dentro de sua especialidade, de verdadeira escola de jornalismo. Algo parecido a escola recorrente de jornalismo.
Ao contrário de Amado Ribeiro, foram-me oferecidas poucas chances de mostrar alguma aptidão para cobertura de um facto policial ou de um desses mistérios envolventes, mais adequados a um ‘Sherlock Holmes’ ou ‘Hercule Poirot’.
Amado demonstrava ter essa aptidão. Do jornal de Samuel Wainer, Ultima Hora, onde Pinheiro Júnior já havia marcado sua carreira de repórter com uma série de audaciosas reportagens sobre ‘Juventude Transviada’, para isso infiltrando-se num grupo de lambretistas de ‘pegas’ nas pistas da Zona Sul do Rio, Amado Ribeiro salta para a fama da dramaturgia – não como autor, nem como ator, e sim na condição de personagem de uma telenovela escrita por Nelson Rodrigues, que por muitos anos manteve em UH o folhetim, de grande sucesso, A Vida Como Ela É. A novela tendo Amado Ribeiro como um dos personagens principais, levada ao cinema repetiu o êxito obtido no teatro.
De minha parte, foi através de uma entrevista com o poeta Jacy Pacheco (já falecido e que era primo de Noel Rosa, também o seu maior biógrafo) que entrei para A Noite. Jacy Pacheco, recebendo-me em sua casa, derrama sobre a mesa farto material iconográfico do ‘poeta da Vila’, fornece-me algumas fotos dele para a entrevista, que acaba saindo em A Noite Ilustrada após haver cumprido sua ‘via crucis’ por várias publicações, no Rio, todas deixando-a na gaveta por sete a quinze dias ‘para exame’, diziam. Uma delas, a Revista do Rádio, através do seu chefe de reportagem, decorrido o prazo que me fora dado para ‘exame’, justificou sua recusa dizendo que Noel já estava mumificado, podendo interessar agora àquela revista – exemplificou – seriam uns suspiros, que fossem, da Emilinha, Emilinha Borba, a quem eu viria a conhecer pessoalmente mais tarde, num dos estúdios da Rádio Nacional já como repórter de A Noite, passando a admirá-la por sua simpatia, pelo seu carisma.
Lavei a alma ao dar com a matéria de Noel pendurada ao meio de A Noite Ilustrada nas bancas da Avenida Rio Branco a partir da Praça Mauá. E fui, sentindo-me vitorioso, à caixa do jornal-revista semanal receber o que me era devido. Não demorou, admitiam-me no diário A Noite, de saudosa memória; relevem-me o lugar comum. Petronilha Pimentel, Arina de Carvalho... Vocês ainda estão neste planeta? Lembra-se, Arina, de quando você me levou ao ‘Clube da Avenca’, na Avenida Mem de Sá, para conhecer a Liu? E faz tempo que Ledo Ivo é Imortal, sabiam? Não creio, mas falam que ele teria adquirido na Academia Brasileira de Letras, com seus direitos autorais, passaporte para um planeta menos poluído... Quanto a você, Petronilha, bem que merecia o resgate de Rainha da Petrobras. Não é justo que a Petrobras fique sem a sua rainha.
Outro ‘cobra criada’, Manuel Abrantes, que com o fechamento de A Noite, a que se seguiu o do Dário da Noite, vim encontrá-lo n’O Dia na chefia da Reportagem daquele matutino de Chagas Freitas.
Abrantes reocupava, em outro jornal mas sentindo-se em casa, um posto conquistado em A Noite a duras penas – expressão aqui usada no sentido de que o cavara com muita garra, durante anos, tendo-se iniciado como contínuo. Os mais antigos diziam que ele fez, praticamente, o curso primário na Redação, aprendendo a ler e escrever, inclusive à máquina, com os plantonistas de Polícia após o ‘fechamento’de cada edição. Quando já sabia, pelo menos, ‘catar milho’ na máquina de escrever, o plantonista lhe passava a tarefa da ronda pelos distritos policiais, e Abrantes dela se desincumbia aos garranchos que entanto davam para ele entender o suficiente a fim de bater à máquina, com firmeza, a apuração, deixando-a depois, com um peso, sobre a mesa.
Mais um tempo, Abrantes ganha altura, física e mental, e ei-lo a dactilografar ligeiro as suas matérias, além de responder a memorandos de departamentos do jornal e de dar ordens a repórteres com um sorriso maroto de quem estava de bem com a vida.
Manuel Abrantes vai para O Dia e lá permanece por longo período. Recordo-me de que um dos contínuos teve atenção especial de Abrantes, que queria ajudá-lo a galgar melhor situação dentro ou fora da empresa. Mas ele parecia cabeça dura. Abrantes irritava-se: ‘Quer ser contínuo para o resto da vida?’ Faltou completar: ‘Como eu fui e aqui estou?’
Eu editava a página de Política da Ultima Hora, então funcionando atrás da Rodoviária Novo Rio, já em seu ocaso, quando nos chega a notícia do falecimento de Manuel Abrantes. Pensei, incontinenti: ‘Ele morreu amargurado’. Eu soube que, ultimamente, logo após sua demissão de ‘o novo’ O Dia pela ‘tropa de choque’, de oposição, vinda do Jornal do Brasil, destacada para varrer os quadros do ex-jornal de Chagas, Abrantes ficava horas, o dia inteiro na rua, debaixo da marquise d’O Dia, à espera de algum sobrevivente do vendaval que zunira por aqueles lados - a fim de conversarem.
E que teria sido feito do Pequeno Jornaleiro, que esculpido em bronze para a Praça Mauá, por ocasião da construção do Edifício A Noite, na década de 30, de lá desapareceu misteriosamente? Sobre a simpática estatueta escreveu Graciliano Ramos, autor de Vidas Secas, sua obra principal: ‘Não é somente o jornalista que explora vantajosamente os crimes – ele o garoto endiabrado também sabe tirar partido das mais insignificantes perturbações da ordem, revestindo todos os fatos de acessórios que lhes dão proporções extraordinárias. Parece que tem o dom de pôr um grande vidro de aumento em cima dos acontecimentos. Enfim, sob certos pontos de vista, o pequeno vendedor de jornais é uma espécie de jornalista em miniatura’...
Esvoaçam-se os anos, some o bronze do Pequeno Jornaleiro e, no primeiro dia de governo de Fernando Henrique Cardoso, extingue-se a Fundação Darcy Vargas, que mantinha a modelar LBA, a cobrir todo o país, escalpelada no governo anterior, de Fernando Collor de Mello.
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