Nos sentimos David contra Golias
Um buraco negro parece ter-se aberto, com o entrechoque de argumentos a favor e contra a permanência de ciganos em território francês, ao som, diria, interminável e doce de um violino a vir de muito longe, quem sabe – das estrelas da România ou da Bulgária ou da Bósnia. A impressão que se tem é de que o Eliseu, se lhe fosse dado o poder de manifestar-se por si mesmo, cerraria portas e janelas pelo tempo que fosse necessário enquanto durassem as discussões tolas sobre uma crise étnica estranhamente singular, inconcebível; inacreditável, por assim dizer.
O imbróglio envolve França, Espanha, Luxemburgo, Itália, agora também a Grã-Bretanha e outras praças da Europa, só não alcançando, em outro meridiano, os Estados Unidos da América por se acharem estes fora de órbita por razões cambiais, que os obrigam a apertar o cinto; e, ainda, o Brasil, impropriamente considerado emergente pela ONU, por ser, talvez, um dos raríssimos países a ostentarem uma economia em franco crescimento, de causar inveja e espanto aos norte-americanos, por exemplo, que sofrem quedas preocupantes nos ativos financeiros, aumentando lá, a cada dia, o contingente de cidadãos na linha da pobreza.
O clima esquentou para todos os lados, sem que a Comissão Européia mova uma palha a fim de serenar os ânimos entre os contendores e encontrar uma solução pelo menos conciliatória para o fosso que se abriu à primeira vista irremediavelmente entre as nações querelantes.
O presidente da França, Nicholas Sardozy, se mostra inflexível em seus delírios persecutórios quando investe de forma claramente desalmada contra a comunidade cigana, extensivamente rumana. Contudo, sempre que isto ocorre, aparece alguém para rebater-lhe as idiossincrasias. O poeta português, ou universal, Fernando Pessoa já dizia: ...”Entre o sono e o sonho / entre mim e o que em mim / é que eu me suponho; corre um rio sem fim”.
Assim, Nikolas Sardozy, como a puxar do fraque uma eurodeputada de sua estima partidária, dá-lhe a palavra para dela ouvir e passar à frente que os ciganos rumanos “provocam os mesmos problemas na França e na Espanha”. Idiossincrasia pura e delituosa...
Nada, entretanto, que surpreenda. Sarkozy é de uma direita a mais extremada. Em Paris mesmo já há quem o compare aos nazi-fascistas da II Guerra Mundial. Ainda em termos comparativos, fala-se que as atuais deportações de ciganos da França têm sido feitas à imagem e semelhança daquelas de judeus da Alemanha no conflito com o III Reich. E das investidas nazis na batalha de Stalingrado (1942-43), ali encontrando a heróica resistência dos soviéticos, cujas baixas nas fileiras da Grande Guerra Patriótica, que correu paralela à das forças aliadas, comandadas de automóvel conversível por Eisenhower, e que resultou na vitória inegável, contundente, de Moscou sobre Berlim, superaram de duas a três vezes mais as vítimas do Holocausto. Os combates nas trincheiras soviético-alemães, enquanto o povo americano se divertia em seu próprio território inteiramente a salvo de bombardeios e outros ‘pesadelos’, a não ser os mostrados nas telas cinematográficas, ceifaram pelo longo e doloroso caminho trilhado até Berlim, em números oficiais, durante 1418 dias e noites, numa frente de 3000 a 6200 quilômetros, uma média de nove a dez vidas soviéticas por minuto, ou seja, cerca de 600 por hora – um total superior a 20 milhões, isto é, 2/5 de todos os mortos em
combate na II Guerra Mundial. Além disso, a URSS teve um prejuízo material estimado de 485 trilhões de dólares, ao preço dos anos 40. Em razão do praticamente imensurável número de baixas nas frentes russas, milhares de soldados e oficiais tiveram de ser substituídos por mulheres nos tratores e outras máquinas em Moscou e cidades do interior onde mais requeria sua presença. Foi quando criaram no Ocidente a imagem torpe da russa masculinizada. A mulher dirigindo um trator, no imaginário de tio Sam, já pelos começos da ‘guerra fria’ dava lugar a uma outra invencionice e muito pior: os americanos fotografaram em Moscou umas crianças brincando com a neve, abriram uma legenda informando que elas disputavam alimentos caídos ao chão, tiraram um sem-número de cópias da foto, distribuindo-as entre as agências de notícias ocidentais, do então chamado “mundo livre”. Era o tempo do macartismo nos Estados Unidos, do ‘pega para capar”, da cadeira elétrica para o casal Rosenberg, em nome da democracia...
Também em nome da democracia, agora na França, a França da resistência à invasão nazi na década de 40, acampamentos de rumanos são varridos por Sardozy e seus cupinchas, pelo ‘crime’ de serem ciganos?
Na Espanha existem em torno de 30 mil a 50 mil ciganos, a grande maioria rumanos,
seguindo-se os búlgaros e, de resto, os bósnios. Vivem em assentamentos, salvo alguns grupos ingleses e franceses.
O presidente da Comissão Européia, José Manuel Durão Barroso, frisando não ser do seu feitio meter-se em querelas de etnia, mas que se tratava de assunto de sua alçada, declarou que é demais comparar as atuais deportações às da II Grande Guerra. O primeiro ministro italiano, Sílvio Berloscono, fala em “panos quentes” enquanto aqueles que falam pelo povo cigano detectam claras “conotações nazis” em todo este processo de deportações. Dizem que o povo cigano europeu assiste indignado a esta política e perplexo ante as “trifucas verbais” ouvidas nos salões oficiais. Estão, agora, decididos a atuar de forma enérgica, indo ao foro competente, que é o Tribunal de Estrasburgo, ante as iniciativas do presidente francês, Nikolas Sardozy. A União Rumana espanhola já preparou toda a documentação necessária à demanda junto àquela Corte, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, contra a intolerância do Eliseu. O presidente da União România foi enfático ao tratar do assunto: “Nos sentimos David contra Golias. Não queremos ficar de braços cruzados enquanto membros de nossa comunidade são expulsos cruel e maciçamente”.
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