quarta-feira, 15 de setembro de 2010

O mundo tauromáquico


A revolta do touro


No mesmo dia em que o parlamento francês anunciava seu veto ao burka – o transpirável e tênue véu que encobre, ou encobria pelas ruas de Paris, o rosto de imigrantes muçulmanas – como a preservar a tradição de capital da elegância, ou do bem vestir, no mundo, cai à ponta de lanças arremessadas por um jovem de 26 anos, Marcos Rodriguez, em Tordesilhas, Espanha. “El Toro de la Vega”, famoso por ter feito carreira ‘gloriosa’ ao ser desafiado durante bom tempo por alguns dos maiores toureadores do país.
Foi pela manhã da última quinta feira (l3 de setembro de 2010), quando ao último suspiro de “El Toro de la Vega” – as banderilhas o ferindo profundamente – desabavam aplausos junto ao cercado da arena, a tocarem o coração dos ambientalistas, que não deixavam de protestar contra “semelhante barbárie” num país conhecido fora da Europa como dos mais religiosos e civilizados de nosso planeta.
Entre os ambientalistas, não faltaram as lágrimas dos mais indignados com a “cena brutal, macabra” a que haviam assistido. Pelos arredores da praça de touros em Tordesilhas se viam cartazes de protesto contra a imolação de “El Toro de la Vega”. Um deles dizia: “Transcende ao mundo imaginado por Orson Welles e seu inspirador, H.G. Wells”. Wells, autor de A Máquina do Tempo e de Guerra dos Mundos, livro no qual o novelista de rádio Orson Welles se baseou para levar ao ar nos Estados Unidos, como se fora um longo, instigante e tenso noticiário a cobrir praticamente todos os horários de programas do dia, somente interrompidos alternadamente em questão de minutos com momentos de baile ironicamente relaxantes, rodados nos discos pelos operadores dos estúdios da rádio. Isso, no corpo de um programa de noticiário de ficção apresentado por Orson Welles, a transpirar seriedade, com sua voz grave, às vezes trêmula, para fins de convencimento dos ouvintes, a cada hora em que dizia aproximar-se estranha criatura que, para ele, só podia ser extraterrrestre, “claro que sim! –exclama, justificando: “a nave espacial já reduz... mais, mais! a distância de nós”.
E o radionovelista não deixava por menos: passara a se comunicar diretamente com a Casa Branca. Falava ao telefone com o Presidente, o qual lhe passava instruções e uma mensagem para que fosse levada ao ar, dirigida aos concidadãos, a recomendar-lhes calma “porque podem ser de índole pacífica, sem outro intuito que não seja colaborar conosco”.
Alguém liga para a emissora indagando sobre o partido da simpatia desses visitantes, o Republicano ou o Democrata?A pergunta, felizmente, não chegou ao éter, logo cortada pelos operadores, que desconfiaram a tempo de evitar que o ouvinte ‘engraçadinho’ empurrasse as vacas para o brejo...
E o programa foi em frente com um pelotão de extraterrestres armados de espécie de lança-chamas, sem que os tirasse das cintas, o que deixou um pouco tranqüilos aqueles que a tudo acompanhavam pelo rádio e que cheirava a pólvora interplanetária, pela sensibilidade não só das massas, também dos políticos e empresários norte-americanos, que procuravam olhar pelas frestas dos edifícios de onde vinha toda aquela movimentação transmitida pelo rádio. Estabelecera-se verdadeiro pandemônio, principalmente em Nova Yorque, além de Washington, o Presidente pedindo que ninguém saísse de suas casas ou do trabalho, exceto as guarnições do Exército e da Marinha, dos quartéis e que, pelo noticiário radiofônico, se dividiram estrategicamente por vários rincões do país, instruídas a entrarem em ação somente no caso de virem a ser atacadas. “e isso esperamos que não venha acontecer; temos um pastor ao nosso lado orando por todos nós”. E os operadores emendam à mensagem presidencial números de jazz afrolatino com Xavier Cugat e sua orquestra. Repentinamente, cessa todo o deslocamento de tropas, de carros de combate e de passeio, estes, poucos; silenciam as sirenes, reabrem-se as janelas, Cugat retoma o programa normal de baile e multidões se abraçam nas ruas, aliviadas. “Ainda não viram nada...”, dizia e repetia um pau d’água à porta da emissora. Não pensem que era o radionovelista. Orson Welles saíra pela porta dos fundos. O Presidente, ainda que ele próprio tenha caído no conto da guerra interestelar, aproveitou a ocasião para criar uma versão do que havia acontecido, qual seja que fora realizada e com sucesso uma simulação de ataque extraterrestre.
Na praça de touros de Tordesilhas não houve simulação quanto ao trágico destino que tinham reservado para “El Toro de la Vega”, algo como “celebração da vida e da morte”, a um tempo, contrapondo-se aos aficionados de rituais da tauromaquia aqueles que se batem em defesa dos direitos animais tanto quanto dos direitos humanos.
Num mundo tauromáquico como esse, o ex-presidente espanhol Felipe Gonzalez já expressa seu pessimismo diante do futuro da Europa.



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