sábado, 20 de dezembro de 2008


Honra ao Conselheiro

Pela primeira vez se rende algum tributo à memória de Antônio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro, natural do Ceará, arquiteto de Canudos, Bahia – e isto acontece amanhã, no 92 aniversário de sua morte.
Quem já atravessou o caudal de Os Sertões, de Euclides da Cunha, e repetiu a travessia – com a mesma atenção e interesse dos estudiosos dos textos bíblicos, com o mesmo afã como artistas de tendências diversas vão buscar na Bíblia Sagrada elemento para suas produções – terá conhecido essa figura impressionante, acidentalmente gnóstica, que foi Antônio Conselheiro.
Os Sertões de Euclides compõem a Bíblia da nacionalidade brasileira, que o Conselheiro pervaga menos na condição de mais um messiânico posto no mundo do que na de revolucionário nos limites e moldes de Canudos: a Favela de Monte Santo, por ele transformada, a um tempo, em espécie de casa de correção e oficina de justiça social.
Apóstolo, beato ou bruxo, qualquer outro qualificativo que se lhe possa atribuir, certo é que ele realizou, praticamente, da noite para o dia, pelo fascínio que exercia sobre os párias do Norte e do Nordeste do Brasil, aquilo que o Direito Penal de uma “civilização de empréstimo” (expressão usada por Euclides para retratar as classes dominantes da época) jamais conseguiria: a reabilitação em massa de criminosos comuns ou seu direcionamento a uma causa internamente justa: a incorporação deles num sistema assemelhado ao dos primeiros cristãos – o comunitarismo, em linguagem eclesial.
E pensar que o Conselheiro deve ter-se inspirado nas abelhas para conceber aquele seu pequeno mundo de irmãos, como fez Karl Marx em escala científica. O personagem quase irreal da obra extraordinária de Euclides da Cunha pregava, conforme se lê em Os Sertões e as cevadas elites culturais de hoje encobrem o quanto podem, a “comunidade absoluta da terra, das pastagens e dos rebanhos”.
(A tais elites , por sinal, pertence o escritor e político Vargas Llosa, ex-guru – ou ainda o é? – da esquerda distraída sob um céu de anil e que, após tentar reduzir a uma guerra de fim de mundo a resistência de Canudos, abalou-se em campanha pela internacionalização da Amazônia. Esbarrando, entretanto, na prancheta de Oscar Niemeyer, que se recusou, indignado, a assinar uma carta de penas serviçais do latifúndio transnacionalista).
Gente afeita a desfiar rosários de coco, outro tipo a talhar seus crimes de morte no clavinote, no mosquetão, no trabuco; criaturas pacatas e facínoras até o último grau, cangaceiros e jagunços, brancos, negros, mulatos, amarelos, todos irmanados em defesa do Arraial do Bom Jesus (assim tratavam o Conselheiro) e suas conquistas sociais - das balas da artilharia pesada, dos vômitos dos canhões Krupp, de uma república “de empréstimo”
E se tornaram competentes, audaciosos guerrilheiros. Em face do desvario de um exército que, acompanhando-se a avaliação dos acontecimentos feita pelo tenente Euclides da Cunha (tinha ele os cursos de Estado-Maior e de Engenharia Militar, da Escola Superior de Guerra), descera ao nível de grande parte dos habitantes de Canudos – antes da regeneração
O Conselheiro e seus homens morreram de pé..




Ultima Hora, 21 de setembro de 1989, Opinião, Fenando Henriques Gonçalves

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