sábado, 13 de dezembro de 2008


A Resistência *
Canudos (1896-97)




A República de Floriano, não mais que “meia ração de glória”

Entre os novos críticos de Euclides da Cunha e sua obra documental, Os Sertões, nota-se vez e outra uma sôfrega preocupação de lançar dúvidas à veracidade de registros feitos por aquele autor na cobertura jornalística do episódio de Canudos, além de reinterpretá-lo ao sabor da conveniência dos dias atuais. Há como que uma ação orquestrada no sentido de deseuclidizar o sertão de Antônio Conselheiro e sua antítese, o latifúndio, quando o próprio Euclides, ao compor a tríade sarmientiana “o Homem, a Terra, a Luta”, procurou e conseguiu, até onde lhe foi permitido avançar, impessoalizar-se na medida e nos momentos em que o puro e cru desenrolar dos fatos o exigia, embora chocando-se ao primeiro toque, às vezes, já transpostos ao papel, com o testemunho que ele daria no remate do livro.
Logo, as personagens deste romance vivo e epopéico de certo período da História brasileira que são Os Sertões têm luz própria. Umas, bruxuleante, outras, de uma luminosidade copada. As oscilações vão à custa da estrutura feudal de uma época visceralmente ainda bem próxima da que se vive agora no Brasil e, de roldão, por outros países de uma América pobre porque saqueada nos moldes da diplomacia, inclusive de canhoneiras, ao correr dos dados narco e/ou anarcocapitalistas.
Atiradores do sertão e de caserna, rosários de coco e pentes de chumbo, o clavinote à bandoleira.talhado a canivete (cada talho, uma, vida fechada) e o canhão Withworth 32, que viera adrede para lhe derrubar os muros, da igreja nova de Canudos, sem no entanto a atingir, visto que “as balas passavam-lhe, silvando, sobre a cumeeira”, tudo isto a entrelaçar-se numa engenharia singular, instigadora, derivada da visão ..quase a um tempo impulsiva e serena de Euclides acerca dos acontecimentos que deram à República mal começada, de 1896 a 97, não mais que “meia ração de glória”.
Hoje, discute-se não a campanha de Canudos, pelo lado das sucessivas expedições batidas em confronto com a “guerrilha sertaneja”, culminando com o tresloucado assalto a uma “Jerusalém de taipa”, mas a resistência de Canudos, que tombou sem render-se. E o Conselheiro, guia dos rebelados sem eira nem beira contra algo, para eles, com o peso de cangalha tributária jogada aos seus lombos pelo novo regime, estava morto, após dias de sofrimento, atingido que fora por estilhaços de granada.
Em solo rebelde, presunçosamente tomado pelas forças legais, ferira-se um diálogo laminar entre Antônio Beato, o altareiro do arraial conflagrado, e um general de brigada. O fiel seguidor do já então finado Conselheiro nos ofícios de acolitá-lo nas avemarias e de acionar o bacamarte, escudeiro descrito por Euclides da Cunha como um mulato claro e alto, sobranceiro, vestindo camisa de azulão e a corrupiar pelos dedos um gorro azul, de linho, esperou que o general principiasse.
“Quem é você?”, perguntou-lhe enfim, e o provavelmente ardiloso emissário do que sobrara da resistência, uns poucos guerrilheiros, porém dispostos ao combate até o último homem, tirante o ajuntamento de inválidos e crianças a aguardar recolhimento – tinha pronta a resposta:
“Saiba o seu doutor general que sou Antônio Beato, e eu mesmo vim por meu pé me entregar porque a gente não tem mais opinião”...
Queria dizer: munição. E convenhamos: opinião deste calibre é o que jamais faltou aos opressores, do passado e do presente. Para determo-nos no século XX e no raio latino-americano: a partir de 1903, contra o Panamá; de 1908, Nicarágua, de 1914, México e Haiti, de 1916, República Dominicana; em 1954, Guatemala; em 1961, Cuba; em 1973, Chile, e em 1983 com a invasão da pequenina ilha de Granada. O agressor: Estados Unidos da América do Norte, que a par dessa listagem de agressões armadas e além das intervenções camufladas no Paraguai e no Brasil, em 1954, outra vez no Brasil, em 1964, no Uruguai, em 1973, e na Argentina em 1976, para implantação da ditadura do capital , não negaram apoio logístico à guerra da OTAN, Organização do Tratado do Atlântico Norte, via Londres, no Atlântico Sul, em 1982. Contra a República Argentina, a fim de garantir pelo último argumento dos reis, que é a força bruta, a pretensa e impudente soberania britânica sobre as ilhas nomeadas Malouines, em 1620, por marinheiros franceses, de Saint-Malo, soberania conquistada a botas de vândalos, em 3 de janeiro de 1833, primeiro estágio do mais ambicioso sonho do imperialismo que é exercer pleno e total controle sobre a Antártida.
Todavia, Canudos também teve opinião e, com todo o efeito naquele seu espaço, soube usá-la. Ou descarregá-la pelas mãos de gente que dominava coisas nativas, segredos marciais de raiz. Invejados e, sobretudo, odiados nas fileiras regulares, não tanto pelo fato de se terem revelado hábeis estrategistas, mas por sua simples, positiva, astuta condição de matutos. Tinham a seu favor as incríveis ciladas naturais, que a natureza, rude, à volta armava e contrapunha aos passos que lhe fossem estranhos.
Entrecruzavam-se, assim, o homem da caatinga e o próprio meio hostil ao homem da civilização, qual seja, naquela circunstância, o dos quartéis – oficiais e praças de unidades do Exército nacional baseadas na Bahia, Pernambuco, Amazonas, Pará, Sergipe, Alagoas, São Paulo, em todos os quadrantes do país, mobilizados para defenderem a República de fantasmas da Monarquia encarnados pelo Conselheiro e seus homens e para as reverências de estilo à lápide de Floriano Peixoto, cognominado o Marechal de Ferro.
O tenente Euclides da Cunha (com os cursos de Estado- Maior e de Engenharia Militar, da Escola Superior de Guerra), a cuja formação militar – apesar do gesto, na época, de indisciplina, quando cadete republicano no ocaso da Monarquia, de atirar o sabre aos pés do ministro da Guerra, Tomás Coelho -, pode ser atribuída, em grande parte, a disciplina na construção de Os Sertões, viu nas caatingas “um aliado incorruptível do sertanejo em revolta.” E não perdeu um só detalhe: “Entram também (as caatingas) de certo modo na luta. Armam-se para o combate, agridem. Trançam-se, impenetráveis, ante o forasteiro, mas abrem se em trilhas multívias, para o matuto que ali nasceu e cresceu. E o jagunço faz-se o guerrilheiro-thug, intangível.
Envolvente a “guerra das caatingas” tal como a apresenta Euclides:
- “E os soldados, devassando com as vistas o matagal sem folhas, nem pensam no inimigo. (...) E lá se vão,marchando, tranqüilamente, heróicos... De repente, pelos seus flancos, estoura, perto, um tiro... A bala passa, rechinante, ou estende, morto, em terra, um homem. Sucedem-se, pausadas, outras, passando sobre as tropas, em sibilos longos. Cem, duzentos olhos, mil olhos perscrutadores, volvem-se, impacientes, em roda. Nada vêem. (...) As seções (da expedição) precipitam-se para os pontos onde estalam os estampidos e estacam ante uma barreira flexível, mas impenetrável, de juremas. Enredam-se no cipoal que as aguilhoa, que lhes arrebata das mãos as armas, e não vingam transpô-lo. Contornam-no. Volvem aos lados. Vê-se um como rastilho de queimada: uma linha de baionetas enfiando pelos gravetos secos. Lampeja por momentos entre o raios do sol joeirados pelas árvores sem folhas, e parte-se, falseando, adiante, dispersa, batendo contra espessos renques de xiquexiques, unidos como quadrados cheios, de falanges, intransponíveis, fervilhando espinhos...
“Circulam-nos, estonteadamente, os soldados. Espalham-se, correm, à-toa, num labirinto de galhos. Caem, presos pelos laços corredios dos quipés reptantes; ou estacam, pernas imobilizadas por fortíssimos tentáculos. Debatem-se desesperadamente até deixarem em pedaços as fardas entre as garras felinas de acúleos recurvos das macambiras...
“Impotentes estadeiam, imprecando, o desapontamento e a raiva, agitando-se furiosos e inúteis. Por fim a ordem dispersa do combate: faz-se a dispersão do tumulto. Atiram a esmo, sem pontaria, numa indisciplina de fogo que vitima os próprios companheiros. Seguem reforços. Os mesmos transes reproduzem-se maiores, acrescidas a confusão e a desordem – enquanto em torno, circulando-os, rítmicos, fulminantes, seguros, terríveis, bem apontados, caem inflexivelmente os projéteis do adversário.
De repente, cessam. Desaparece o inimigo que ninguém viu.” (...)
São passagens como esta que irritam os catadores de sutilezas nas aparas do livro maior de Euclides, empenhados que estão em falsear a verdade de Canudos, em cobrir com o manto linearmente messiânico o conceito de guerrilha enristado nas páginas de Os Sertões por um engenheiro militar; o escritor e político Mario Vargas Llosa tentou consagrar a escamoteação com o seu romance A Guerra do Fim do Mundo. Quando não, em proceder à maneira do historiador baiano José Calasans, para quem Canudos foi o “último quilombo do Brasil” (O Estado de S. Paulo, 1987, pág. 16). Nos achados do professor Calasans sobreleva a revelação- resultado de 36 anos de laudáveis buscas em documentos oficiais mas nem sempre acreditados – de que a população de Belo-Monte, nome original de Canudos, se constituía basicamente de ex-escravos. A documentos produzidos em cartórios do latifúndio, o bom-senso recomenda inclinarmo-nos pelo que registrou esse grande repórter que foi Euclides da Cunha, testemunha ocular de acontecimentos que abalaram a nação por fins do século XIX, e O Estado de S.Paulo deve ter-se arrependido mil vezes de havê-lo designado seu enviado especial ao front sertanejo. O Estado não fugiu à regra ventral da imprensa brasileira que imputara à colméia humana de Canudos o estigma de massa de manobra monarquista para derruir uma República mal saída do cueiro. Uma República que, a bem da verdade, manejava as mesmas armas da Monarquia, que a gerara. E os remanescentes do cativeiro, comprovados à lâmina em função de uma cultura religiosa peculiaríssima, sem nenhuma afinidade com o catolicismo estampado na “ bandeira do Divino” se predominavam no reino de Antônio Conselheiro, nascido Antônio Vicente Mendes Maciel, como quer o esforçado historiador baiano, teriam então desempenhado papéis secundaríssimos sob o fogo da campanha republicana e o comando da resistência, este entregue ao pulso firme e decidido de todo um produto de milagrosa convergência: cangaceiros e jagunços. Alguns, quem sabe, a se penitenciarem até de terem servido ao escravagismo pegando na chibata contra cada amarrado ao tronco ou acertando a tiros fujões estropiados para os afazeres do eito.
De qualquer forma, sob a “bandeira do Divino” transformam-se todos, “mestiços de toda a sorte, variando, díspares, na índole e na cor, em audazes guerrilheiros: o qualificativo preciso que se há de conferir a uma turba, paradoxalmente, disciplinada que revida com flama e destreza, com bravura, a fuzilaria e as bombas expedidas em nome e honra da lei e da ordem estabelecidas. A lei e a ordem, contudo, que o governo da República suava para impor na comarca de Monte-Santo. Uma ordem econômica com a qual não concordava Antônio Conselheiro. Este pregava, segundo Euclides, “a comunidade absoluta da terra, das pastagens e dos rebanhos”... Certo, ia ao paroxismo no distanciamento de valores normais da vida em sociedade, ou civilizada, ao tolerar a “promiscuidade de um hetairismo infrene” sob o argumento de que todas as donzelas pastavam, inexoravelmente, “por baixo da árvore do bem e do mal”, sendo-lhes admitido fazer a opção.
E nem podia ser diferente, pois o Conselheiro era o gnóstico bronco fora do sertão e, enquanto não passasse à imortalidade, só lá dentro, um revolucionário autêntico.
Os paralelos, entretanto, não o deixariam a salvo da rotulagem, de agente de Moscou se a explosão de Canudos, com o mesmo elenco, acontecesse mais à frente, após a Revolução (russa) de 1917. Governo e imprensa logo cairiam em cima de Antônio Conselheiro com acusações como a de pretender semear pelo Nordeste do Brasil a ditadura... do campesinato.
Quimera que transporta despertados.

· Correio do Ilac, órgão do Instituto Latino-Americano de Cultura, Rio, Ano III, nº 15; por Fernando Henriques Gonçalves

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