domingo, 30 de novembro de 2008

- I - A UDN ressurrecta

A violenta invasão da Câmara dos Deputados por centenas de manifestantes de uma dissidência do Movimento dos Sem Terra (MST), no meio do ano de 2006, é ao que parece um desses filmes que já vimos antes. Produzidos com um só objetivo, ainda bem que nem sempre alcançado: alterar a qualquer preço a vontade popular na condução de um processo político e/ou institucional.
Estaria por trás uma oposição encapuzada? Com a cauda de fora, talvez. Precedentes não faltam na teia mundial. No Brasil, temos 1964. Quando o governo norte-americano compra a briga de Carlos Lacerda com João Goulart, herdeiro político de Getúlio Vargas, ao derramar dólares nos meios de comunicação, inclusive individualmente, entre jornalistas, e financiar a peso de ouro entidades destinadas a atropelar as Reformas de Base de uma República Trabalhista que, mal ou bem, então se esboçava, tais como o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) e o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes). Contrapunham-se ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb)¹, criado em 14 de julho de 1955 como órgão do Ministério da Educação e Cultura, passado quase um ano da morte trágica de Vargas.
1. Na opinião do historiador e general reformado Nelson Werneck Sodré, já falecido, entrevistado em maio de 1988 pelo professor universitário Dênis de Moraes, “o golpe de 64 não foi um golpe militar”, mas sim um “golpe político, vitorioso na área política. Isolado o governo, deu-se a operação militar de ocupação”. Ressaltou que o Iseb, por suas posições nacionalistas, “caiu no índex das forças reacionárias”, que lhe moveram uma campanha sem trégua, tendo propagado “com muita arte e engenhosidade” ser o Instituto Superior de Estudos Brasileiros “uma coisa espantosamente poderosa, capaz de influir no governo, controlá-lo, traçar rumos para o país”. Segundo Sodré, “uma balela” que visava à esquerdização e ao conseqüente esvaziamento do Iseb, isolando as forças progressistas até reduzi-las “à impotência”. E que, com efeito, na montagem do golpe de 1964, “ o Iseb se tornou um dos alvos prediletos da reação. Tanto assim que foi depredado na manhã do dia 1º de abril, por elementos ligados ao então governador da Guanabara”, Carlos Lacerda. (Nota do autor)
João Goulart, Jango, chegara à metade do poder (à metade, por terem substituído o regime presidencialista pelo parlamentarista -- posto abaixo, afinal, em 6 de janeiro de 1963, através de plebiscito) graças à Campanha Nacional pela Legalidade, desfechada do Rio Grande do Sul por Leonel Brizola ao impacto da renúncia do presidente Jânio Quadros e da posse ameaçada de Jango, vice-presidente eleito pelo PTB. Em 13 de março de 1964, com o Comício Pró-Reformas de Base, o comício da Central do Brasil, o governo Goulart iniciava um processo revolucionário que os Estados Unidos não deixaram ir adiante², golpeando-o com o terçado de uma contra-revolução a que os golpistas nacionais deram o epíteto de Redentora.
2. Dias ou semanas atrás do apeamento de Goulart do poder, houve desembarque não de tropas do Pentágono no Brasil mas de observadores da situação no Nordeste de Miguel Arraes e as Ligas Camponesas, para execução, se necessário fosse, da Operação Brother Sam a partir de S. Paulo. Seria o estalar de uma guerra civil, com a cobertura militar dos EUA a incursões das forças conservadoras internas, uma possibilidade já admitida pelo presidente Goulart, cuja política de oscilações, mantida até pouco antes de subir o palanque das Reformas, quando lançaria seu único dardo, vinha sendo criticada entre quatro paredes pelo governador do Rio Grande, Leonel Brizola, sem dúvida o braço forte de uma resistência que pudesse ser exercida. Responsável pela posse de Jango na vaga aberta pela renúncia de Jânio, Brizola, sem o qual Jango talvez voltasse da China, aonde fora em missão oficial, como cidadão comum, oferecera-lhe o Palácio Piratini para sede provisória do governo da República. Confiante no então poderoso III Exército e, quem sabe, numa guerrilha sertaneja que Euclides da Cunha mostrara ser possível acontecer num cenário bem diferente e maior que o de Canudos.


- II - A UDN ressurrecta

EM 14 de junho de 1982, assinada a rendição das tropas argentinas às inglesas, o general Leopoldo Galtieri, que experimentara dias de glória com a retomada das ilhas Malvinas e o desempenho notável de sua força aérea, era alvo de apupos orquestrados por agentes da CIA que se tinham infiltrado numa manifestação pública em Buenos Aires não propriamente contra o ditador-presidente (apoiado maciçamente pelas esquerdas e outras correntes políticas do país durante a guerra) mas de justa indignação com a derrota frente ao Reino Unido; extensivamente, à OTAN. Galtieri tornara-se persona non grata nos EUA a partir do momento em que ameaçou cortar relações diplomáticas com eles (as comerciais já haviam sido praticamente cortadas, e pelos norte-americanos) após mudar o rumo das exportações do trigo argentino, de Washington, que as suspendera como é de seu feitio proceder em tais circunstâncias, para Moscou.
E o que dizer da infiltração da CIA na marcha da oposição a Hugo Chávez, na Venezuela, em 2002, que lhe custou o afastamento da presidência por 48 horas e a detenção num quartel distante da capital, sucedendo-o o empresário Pedro Carmona sem que tenha tido tempo de sentir o gosto do poder? O governo norte-americano, que planejara o golpe, dera com os burros n’água.
A CIA e tampouco o Departamento de Defesa dos EUA nada têm a ver, direta ou indiretamente, com o recente quebra-quebra em Brasília. Aos EUA -- macaco velho -- interessa tirar proveito de uma situação como essa sem meterem a mão na cumbuca, por haver entre nós quem faça isso por eles e a baixo custo. A ser assim, quem estaria por trás da arruaça supostamente planejada, ou apoiada, por opositores, não do Partido dos Trabalhadores nem de Lula da Silva, este a liderar com ampla margem de votos sucessivas pesquisas de opinião, de várias agências, praticamente às vésperas das eleições presidenciais -- mas do processo de independência econômica, política e social em curso na América Latina?
Tal a importância da República Federativa do Brasil como chave-mestra do Hemisfério Sul que os EUA não deitam suas vistas com maior interesse do que têm pela imensa e rica fatia brasileira sobre qualquer outro país da região. Luiz Inácio Lula da Silva, apesar de suas relações pessoais com George W. Bush serem consideradas bastante razoáveis, ultrapassando a raia da mera cordialidade, Bush sabe que a reeleição de Lula comprometeria o projeto da Alca ou mesmo o do Nafta devido ao fato de o presidente brasileiro estar ligado ao processo de formação de uma “comunidade latino-americana de nações”, como consta em nossa Constituição de 88.

- III - A UDN ressurrecta

A quem poderia interessar a desestabilização do atual governo através de ações como a dos autoproclamados sem-terra na Câmara dos Deputados, alguns até já assentados? Não seria a uma UDN ressurrecta?! Como a do passado, a de hoje, com outro nome, pode estar acendendo velas em janelas do Flamengo... (Dir-se-ia mandinga do Clube da Lanterna). Daquelas velas acesas por respeitáveis senhoras lacerdistas durante o Comício monstro da Central, que tanto irritou as classes dominantes de dentro e fora do país que se apressaram na militarização total do movimento de ruptura de um processo histórico iniciado no Estado Novo e no curto período de governo democrático de Getúlio Vargas, quando institui-se, em 1953, o monopólio estatal do petróleo e surge, assim, a Petrobrás.
Em 1964, Jango no palanque das Reformas de Base falando a uma multidão calculada em 130 mil pessoas. Pouco antes, no Palácio das Laranjeiras, dera o primeiro passo para a reforma agrária ao assinar o decreto da Supra, Superintendência de Reforma Agrária, seguido de um outro, por indicação de Leonel Brizola, encampando refinarias particulares de petróleo. Era o começo de uma revolução trabalhista, que já tinha em mira um plebiscito para a reforma da Constituição e a eleição de um novo Congresso, com ampla e autêntica representatividade popular.
“Nenhuma força será capaz de impedir que o governo continue a assegurar absoluta liberdade ao povo brasileiro. E para isso podemos declarar, com orgulho, que contamos com a compreensão e o patriotismo das bravas e gloriosas Forças Armadas”, enfatizou o presidente João Goulart no Comício da Central.
A um tempo, o presidente contava com a lealdade de expressivos contingentes das Forças Armadas e esforçava-se por esconder sua preocupação menos com o movimento nos quartéis do que com a tropa de choque udenolacerdista ancorada na Embaixada americana. Ou seja: com os artífices da traição à pátria. Civis, praticamente todos.
E pensar no arrependimento tardio de Carlos Lacerda³. Ao sentir-se logrado justamente pela Redentora, visto que já tinha como favas contadas a chance de candidatar-se à presidência da República e, uma vez vitorioso, conforme esperava, de suceder ao marechal Castelo Branco. Conduzido ao poder nos ombros dos militares mais conservadores para os quais as elites civis que conspiravam contra Jango e as fileiras nacionalistas das Forças Armadas haviam deixado o caminho livre. Saindo de cena.
A Lacerda, faltavam as divisas. 3. Em 25 de setembro de 1967, Carlos Lacerda e João Goulart firmavam em Montevidéu documento pelo qual se comprometiam à formação de uma Frente Ampla em busca de “soluções pacíficas para a crise brasileira, sem cultivar ressentimentos pessoais, nem propósitos revanchistas”. O documento seria levado a JK para que também ele o assinasse. Quanto a Brizola, que Lacerda nem procurou no Uruguai, sabendo que perderia seu tempo, não embarca na tal Frente: uma canoa furada, deve ter pensado. Brizola tinha razão, sempre -- dizia-se. (N. do autor).


A UDN ressurrecta
- IV-


Ao homologar a candidatura de Geraldo Alckmin ao Planalto, dias após o quebra-quebra de dissidentes do MST no Congresso, a convenção nacional do PSDB foi pródiga em ataques ao presidente da República e ao PT. O próprio Alckmin vociferou: “Que tempos são esses, no Brasil, em que a cada vez que ouvem uma notícia sobre a quadrilha dos 40, os brasileiros pensam automaticamente, em silêncio: e o chefe? Onde está o chefe, o líder dos 40 ladrões!”. E o mais grave: “O aparelho de Estado foi tomado de assalto por quem deveria geri-lo”. No mesmo tom, outras vozes udenopessedebistas a arrancar aplausos de uma assistência, ou militância, delirante; uma delas, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso a acusar Luiz Inácio Lula da Silva de ter virado “a casaca”, de ter virado “o homem dos banqueiros”. Como se não tivesse sido Cardoso o homem que elevou os bancos ao patamar de um poder da República, para o que e a fim de impulsar a neoliberália, em obediência às determinações do Consenso de Washington, precisou de dois mandatos sucessivos, conseguindo-o finalmente através da compra de votos no Congresso Nacional.
Desce o pano da era Cardoso com o Brasil tendo perdido cerca de 80% do seu patrimônio. O governo batera o martelo sobre as estatais em fila no corredor da morte -- “com transparência e dentro dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade”, dizia o Programa Nacional de Privatizações depois de dar a seguinte explicação: “A venda das estatais desonera a administração pública e gera recursos para a saúde, educação, segurança, previdência e outras áreas sociais”. Só que até hoje ninguém se debruçou sobre o que teria sido apurado com a venda da Companhia Vale do Rio Doce¹, das telecomunicações e de outras jóias da coroa, sem incluir a quebra do monopólio estatal do petróleo e seus desdobramentos no setor, e muito menos em quais “áreas sociais” foi empregado o dinheiro.
1. Antes de estourar a II Guerra Mundial, a britânica Itabira Iron Ore Company explorava riquezas do subsolo brasileiro que se estendiam pelo Vale do Rio Doce, em Minas Gerais, mediante concessão. Convicto de que ao Brasil não interessava meter-se naquela guerra, a não ser que dela tirasse algum proveito antecipado, inicialmente, Getúlio Vargas, após receber da indústria alemã Krupp a proposta de construir a primeira siderúrgica brasileira -- que Washington vinha cozinhando em banho-maria -- e só desse modo obter dos EUA o sinal verde para as obras, o presidente, em 1942, baixa decreto-lei criando a Companhia Vale do Rio Doce e, aí sim, declara guerra à Alemanha e outros países do Eixo. Não sem a Inglaterra ter-lhe devolvido os direitos de exploração das jazidas. Corre o tempo e entra-se na década de 90. O Exército norte-americano revela, abrindo documento reservado, plano de invasão do território brasileiro se Vargas não houvesse entrado na guerra de cachorro grande.
Só o fato de saber-se da cobertura das privatizações por parte do BNDES, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, mediante o financiamento da compra de bens patrimoniais da nação brasileira por grupos transnacionais ou testas de ferro da gringolândia, caracteriza o crime de lesa-pátria.
Neste caso, onde estariam os “40 ladrões”? Então o chefe não se chamaria Luiz Inácio Lula da Silva!


A UDN ressurrecta
-V-

Ainda soa aos ouvidos da nação o arrebatamento da diretora de Desestatização do BNDES nos primórdios do governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1995, Elena Landau: “Eu estou vendendo o Brasil!”
Um colunista social, Fred Suter, do jornal O Dia (16 de agosto de 1995), chegou a comentar: “A declaração repercutiu muito mal nos círculos militares”.
E a Folha de S.Paulo, na edição de 14 de abril de 1996, abria espaço para a economista Elena Landau ver em sua bola de cristal o Brasil quando já tivesse vendido todas as estatais:
“O processo de estabilização estará consolidado, e o custo da dívida pública será ‘carregável’ e alongado. O Brasil é um país solvente. O programa de privatização aumenta a credibilidade do país e permite que nossa dívida seja alongada cada vez mais”.
Na mesma edição, a Folha de S.Paulo abria a seguinte manchete:
Venda de estatais não atinge objetivo
Explosão da dívida anula os efeitos da privatização Reportagem a quatro mãos, de Fernando Godinho, coordenador de Economia, e Reinaldo Azevedo, coordenador de Política, da Sucursal de Brasília, da Folha, mostrava que de outubro de 1991 até abril de 1996 “as privatizações renderam R$ 13 bilhões”. E que, “no período, a dívida saltou de US$ 11,4 bilhões para US$ 125, 531 bilhões (ou R$ 127, 353 bilhões, pela conversão do dólar médio de março)”.
Nesse caso, calculava a Folha, “a evolução bruta da dívida pública federal desde 1991 é aproximadamente 777, 93% maior que todo o resultado do programa de privatização”. E observava que, dos R$ 13 bilhões gerados pelo programa, R$ 10, 4 bilhões eram constituídos de moedas podres.
Ainda a Folha: “Ou seja, de 1991 -- início das privatizações -- até hoje (abril de 1996), entraram no caixa do governo, em dinheiro vivo, apenas R$ 2,6 bilhões”. Quarenta e quatro empresas estatais foram privatizadas nesse período, além da venda de participações minoritárias da União em outras empresas, segundo o BNDES.
Os autores da reportagem trocaram em miúdos todo esse imbróglio do neoliberalismo para emergentes: “A rigor, receber moedas podres em troca de estatais ajuda no abate da dívida pública federal. Ocorre que essa dívida galopa por razões não associadas à privatização. Resumo: em termos de política econômica global, o governo se desfaz do patrimônio público e fica devendo cada vez mais”.
O que dizer agora que lá se foram, também, a Vale (leiloada em 7 de maio de 1997), as teles²... pelas mãos do governo Cardoso?
2. O processo de privatização das telecomunicações iniciou-se em 1997.


A UDN ressurrecta
VI-


O Partido dos Trabalhadores homologa a candidatura da chapa Lula-Alencar a mais quatro anos -- aliás, dois mandatos sucessivos: invenção do presidente anterior por artes de berliques e berloques --, o atual presidente afirma ter realizado mais em 42 meses que o tucanato em oito anos, e Fernando Henrique Cardoso, o sociólogo mágico, perde a pose. Como se depreende da manchete de 26 de junho de 2006 de O Estado de S.Paulo:
FHC: Lula é bom de garganta e apenas ganha em corrupção
O ex-presidente não admitiu uma disputa sobre quem seria mais corrupto?
Argemiro Ferreira, em sua coluna na Tribuna da Imprensa (20 de junho de 2006), publicou carta de Arthur Poerner dirigida a Carlos Lupi, presidente do PDT, bastante esclarecedora dos descaminhos e não propriamente da desunião, como quer Roberto Freire, da esquerda no Brasil. Poerner, como um dos signatários da Carta de Lisboa, que marcou a reabilitação do trabalhismo brasileiro embora sob nova legenda, que viria a ser PDT, visto que a histórica, PTB³, fora escamoteada em “sórdida manobra governamental” -- palavras de Leonel Brizola na ocasião -- acatada pela Justiça Eleitoral, afirma não poder concordar com “os rumos trilhados, ultimamente, pelo partido”.
3. A 17 de junho de 1979, em presença de Mário Soares, que representava a Internacional Socialista, se reuniam em Portugal, preparando-se para o retorno ao Brasil depois de anos de desterro, agora anistiados, Leonel Brizola, Darcy Ribeiro, Doutel de Andrade e outros trabalhistas históricos, além de novos ou simpatizantes do trabalhismo criado por Vargas e seguido por Jango. Firmaram a Carta de Lisboa, na qual se comprometiam a recriar o Partido Trabalhista Brasileiro. Em solo pátrio, tiveram negado no Superior Tribunal Eleitoral o pedido de registro do PTB, perdendo a sigla que já por tradição lhes pertencia para uma sobrinha em 2° grau de Getúlio Vargas: Cândida Ivete Vargas Tatsch, à frente de um grupo ligado a Golbery do Couto e Silva, estrategista político da Redentora. Um ato de traição a Getúlio, Jango e Brizola; aos trabalhadores. Foi a 12 de maio de 1980 que o PTB era entregue a Ivete e seu grupo. Dias 17 e 18 de maio, no Palácio Tiradentes, realizava-se o Encontro Nacional dos Trabalhistas, quando se anunciou a nova sigla do trabalhismo: PDT. Em 25 de maio, na ABI, eram aprovados, em assembléia geral, os estatutos e o programa do novo partido. (Nota do autor)
Em sua carta a Lupi, Arthur Poerner afasta-se do PDT, “partido que foi parte da minha vida ao longo dos últimos 27 anos”. Diz que não pode “referendar o encaminhamento que vem sendo dado à participação pedetista na próxima eleição presidencial”. Observa que “o governo Lula, apesar dos defeitos, falhas e omissões que se lhe possam atribuir, não é o nosso inimigo; ele é, sim, o avanço nacional possível nas atuais conjunturas interna e externa. Não reelegê-lo significa, na prática, devolver o poder às elites que impedem a participação do nosso povo desde os tempos do escravagismo, agora travestidas de neoliberais, com suas privatizações e alienações das riquezas nacionais, suas políticas de concentração de renda, sua aversão aos pobres, sua submissão aos EUA e, daí, seu sistemático boicote às tentativas de integração latino-americana”.
Poerner se recusa a contribuir “para que a primeira experiência de um homem do povo na presidência do meu país seja afogada pelas marolas alvoroçadas, hipocritamente, por falsos moralistas udeno-tucanos”.
Ninguém mexe


O primeiro a depor no inquérito sobre a denúncia de compra de votos parlamentares, em 1997, para a reeleição do presidente Fernando Henrique Cardoso será o deputado Ronivon Santiago (PP-AC), informa a Agência Câmara de Notícias, acrescentando que ele o fará provavelmente semana que vem. Essa agência promoveu há dias uma sabatina, on line, de internautas com o deputado Paulo Baltazar, vice-presidente da CPI que investiga dinheiro de caixa 2 no governo do PT. E veio à tona, entre outros deslizes do governo do PSDB, o caso do senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG), que teria recebido do empresário Marcos Valério, em 1998, dinheiro de caixa 2 para sua campanha ao governo mineiro. Faltaram perguntas de fundo de baú, relacionadas, por exemplo, ao fato de FHC ter vetado a criação de uma CPI com a finalidade de averiguar favorecimentos apontados na condução do projeto do Sivam, o de instalação de radares na Amazônia, e à privatização da Companhia Vale do Rio Doce, criada por Getúlio Vargas, mais a quebra do monopólio estatal do petróleo e a entrega de empresas nacionais ao capital transnacional. Na direção de algo ditado do Consenso de Washington com o nome de “Estado mínimo”. O presidente Cardoso, na ânsia de não deixar pedra sobre pedra do rico legado de Vargas, fez, ainda, várias tentativas para acabar com as Leis Trabalhistas. E a respeito de tudo o que fez não vacilou em considerá-lo coisas do passado, significando que tudo aquilo – compra de votos, mensalão e afins de sua era - já pertencia à História. Ninguém mexe.

sábado, 29 de novembro de 2008

Os fantasmas de lençol (1)



A primeira operação de guerra psicológica dos Estados Unidos na América Latina e o Caribe, se não das primeiras operações, foi desfechada contra Cuba, entre fins do século XIX e começo do século XX. Explicada em 1906 pelo então presidente Franklin Delano Roosevelt, na III Conferência Pan-Americana, que se realizou no Rio de Janeiro, deste modo:
“Não temos outra saída que não seja a intervenção. Isso convencerá os idiotas suspeitos na América do Sul de que, quando desejarmos, poderemos intervir, e que nós estamos sedentos de terras”.
A Revolução Russa não havia acontecido ainda. Portanto, aquele tipo de guerra que crescera na estufa da Doutrina Monroe, doutrina concebida em 1823 pelo presidente James Monroe(2), era por assim dizer meramente pragmática, sem o húmus ideológico, ou contra-ideológico -- quando se tratasse de ideologia comunizante --, que alimentaria mais tarde o jardim-suspenso da política do big stick; esta política tornou-se o livro de cabeceira da CIA.
Mas é somente a partir dos anos 50, no início da década, que os Estados Unidos pegam na tesoura, fazem os olhos no lençol, vestem-no e saem às ruas da noite latino-americana encenando a grande ameaça ao nosso continente: o comunismo. O fantasma de lençol transitou primeiro na Guatemala, por causa do nacionalismo (traduzido como marxismo) do governo Jacobo Arbens, que tivera o topete de substituir, no poder local, a United Fruit Company. A guerra psicológica já incorporando, a um tempo, ideologia e o big stick. Assim, a dar-se crédito ao que publicou a revista Stern, editada na Alemanha Ocidental, para o assalto à Guatemala de Arbens e seus compatriotas a CIA estabelecera “campos secretos” de treinamento de mercenários em Honduras e na Nicarágua.
Isso, obviamente, muitos anos depois do assalto ao México, que teve como pano de fundo a famosa campanha Hearst, empreendida através de uma cadeia de jornais de propriedade daquele capitão de imprensa, em especial contra Pancho Villa.
Na passarela da boa vizinhança já desfilaram semblantes vários de dominação (periférica) para autopreservação da comunidade de interesses do filho gigante da Inglaterra, alguns bem charmosos, como a Aliança para o Progresso. Arrancaram aplausos e/ou aleluias a Doutrina Johnson, a Doutrina Nixon -- a do nixonicídio segundo o Prêmio Nobel chileno Pablo Neruda -- a Doutrina Ford etc. No primeiro quartel do século XX o então presidente Wilson, com mandato até 1921, chegara a dizer que “o maior nacionalista é aquele que quer ver sua pátria (a dele, naturalmente) encabeçando todos os Estados do mundo”.
Brasil, Bolívia, Uruguai, Chile... No livro Os Estados Unidos e o Chile: o imperialismo e a derrubada do governo Allende, escrito a quatro mãos, seus autores, o norte-americano J. Petras e o australiano M. Morley, observaram:
“Washington realizou com sangue frio uma política de bloqueio, sabotagem e outras formas de luta dirigidas para a derrubada do governo legalmente eleito. (Informações baseadas em depoimentos de dirigentes da CIA e de outras organizações prestados à Subcomissão para Assuntos Interamericanos do Congresso dos EUA são encontradas em já extensa bibliografia, por exemplo na obra de K. A. Katchaturov, editada pela Ciivilização Brasileira, A Expansão Ideológica dos EUA na América Latina).
E pensar que a chamada guerra psicológica -- hoje acionada por Washington na América Latina, paralelamente, quando não à diplomacia do dólar (que consiste na substituição de projéteis por capital), à diplomacia militarista (que se rege pela política do big stick) -- teve origem na Inglaterra, um reino que em guerra contra a República Argentina, e não contra uma junta militar, pela ótica bastante estranha de pequena parcela, ainda bem, da imprensa brasileira, abriga um regime civilizado. Foi de lá que em princípios do século XIX partia mais uma expedição de “anjos da paz”, como os ingleses se intitulavam, rumo ao Atlântico Sul, propondo-se a “libertar” os nativos da região -- eles aportaram em Montevidéu -- da “escravidão” de Espanha, “essa nação arrogante e vendida”, conforme escreveram num jornal bilíngue, em inglês e espanhol, o Southern Star, que se apressaram a lançar após o desembarque. “Os ingleses chegam não como conquistadores, mas como defensores” -- publicaram. Estava declarada a guerra psicológica.
Talvez este episódio baste ou sirva para explicar a virtual solidariedade da Espanha com a Argentina, no momento atual, tendo o chanceler espanhol Jaime de Pinies nas Nações Unidas considerado a posição britânica no conflito pelas Malvinas um “grave erro histórico”. Para a embaixadora dos Estados Unidos Jeane J. Kirkpatrick(3) no Conselho de Segurança da ONU, “nós temos uma velha aliança, e mais que isso, as mais estreitas relações de amizade com a Grã-Bretanha, país de que derivam nossas instituições políticas, legislativas e lingüísticas”. E para o embaixador do Panamá Jorge Illueca, o sacrifício de soldados argentinos, os tombados em batalha, “não será em vão, porque desta crise emergirá uma nova América Latina”.
Aí é que o carro pega, e começa a grande guerra ideológica, à sombra de uma “velha aliança”, dentro da história do bom filho à casa torna: a casa da mãe Inglaterra. Para essa guerra, tão ou mais suja que a das Malvinas, os povos latino-americanos têm de estar alertas.Os fantasmas de lençol não dormem.

(1) O Fluminense, caderno Encontro, Autor e Livro, 30 e 31 de maio de 1982
(2) Cumpriu dois mandatos presidenciais, de 1817 a 1825; aparece na galeria de presidentes, na Casa Branca, como democrata-republicano.
(3) Representou os EUA na ONU de 1981 a 1985, no 1º governo de Ronald Reagan.

A poesia acampou no Século de Drummond



A poesia acampou no
Século de Drummond*



Com uma musa que acabou numa feira livre de Espanha



À sua hora, Goethe notava que todo poema era de circunstância, e já no rescaldo da II Grande Guerra, tendo rebentado a Revolução Industrial, o poeta da Resistência francesa, Paul Eluard, a reconhecer, a cultivar, a desenvolver no circunstancial algo que se transporta “do particular ao geral.” Para Eluard, que adotara Liberté por musa maior, escrevendo-lhe o nome sur l’horizon, não a liberdade de circismo romano e sim a presidida em essência pelo direito inalienável do Homem ao pão e ao trabalho, a circunstância exterior deve ajustar-se à interior, como se o poeta por si mesmo a tivesse produzido; de l’horizon d’un homme à l’horizon de tous.
Não parece ser outro o núcleo de raciocínio de que Carlos Drummond de Andrade, agora aos 80 anos bem completados, se nutre desde as primeiras publicações em livro: Alguma Poesia (1930), Brejo das Almas (1934), Sentimento do Mundo (1940), A Rosa do Povo (1945).
Todo povo tem sua rosa, e a interpretação e/ou projeção drummondiana deste componente da flora política reflete uma consciência por igual política, conquanto, e necessariamente sim, adaptada ao (anti) metro peculiar da arte, sem o “ismo” dos montes Parnaso – motivo para reavaliações estéticas que sejam, baseado no fato de que por lá pastavam cavalos com asas, um deles o Pégaso, fruto do sangue jorrado da cabeça de Medusa: decepada por Peseo, que empunhara o escudo de Minerva. Se pastavam, existiam; e por que duvidar então da ubiquidade das musas! Umas, líricas; outras, heróicas.
Assim também são os bois do fazendeiro do ar.

Deus já andava triste, a se perguntar por que fizera o mundo, os anjos não disfarçando aquele olhar embora um tanto maroto de reprovação – as plumas caindo: “A graça, a eternidade, o amor” – quando Drummond encontrou-se pela primeira vez com José. Não o de versículo, este ainda que unibíblico e seriamente envolvido no caso da vinda do Messias feito cada boi do continente itabirano, um continente suspenso – circum-ambiente, no entanto inviscerado na realidade social. Mas o José “sozinho no escuro”, anônimo e múltiplo, desses de linha de produção econômica, com passado e presente de chão batido e um futuro que mais tarde se saberia ser paradisíaco. Literalmente, a Nova casa de José, o azul das paredes desbotado, ao menos na chegada.
O poeta de Itabira tinha armado coisas além de uma equação formal. Não se fizera boxeador da lingüística. E nem podia ter agido de outra maneira, porque o José “sem nome”, ou com uma profusão de nomes – portanto de difícil qualificação, desencantara-se com os adjetivos de uma retórica tão do paladar de classes dominantes.
Logo, Drummond não desertou. Não esqueceu que “o espião janta conosco”. O boi e o anjo, de mãos dadas na sua poesia. Ele sabe, e teve o tutano de proclamar que o boi é anterior ao tráfego. O boi José inclusive, ou principalmente este. E que a sua Itabira do epicentro das injustiças sociais poderá um dia levantar-se e, tendo-se invertido as posições, cuspir todas as suas inquietações, todas as suas perplexidades.
O boi, o anjo: estrelas de primeira grandeza na simbologia drummondiana. Estanques apenas a olho nu, e até mesmo neste plano, o do pisca-pisca, como se o poeta estivesse alertando para certas verdades escamoteadas em caminho de terra firme; no meio, a pedra que chegou a provocar menos tropeços do que palavrão. Em termos precisos os dois símbolos-mores da obra de Drummond, entre os quais pode-se admitir que fique a pedra como referencial de vida, ou de um ceticismo singular – que incute esperanças, são projeções de comportamento e mobilidade humanos, de tudo em movimento. Daí esta síntese de A Rosa do Povo:

No beco, / apenas um muro,/ sobre ele a polícia./ No céu da Propaganda / aves anunciam / a glória./ No quarto, / irrisão e três colarinhos sujos.

Do céu devastado de Eluard ao céu desfeito, porém logo refeito, de Drummond. Não o céu da propaganda, naturalmente, com o qual o poeta nada tem que ver.
E certo é que a poesia acampou no Século de Drummond. Com Lorca, Neruda, Alberti, Vinícius, João Cabral incelençando Vida e Morte Severina. Também nascido em 1902, como Carlos Drummond de Andrade, e que recentemente, na Espanha, ocupou a presidência de honra do VI Congresso Mundial de Poetas, evento, aliás, praticamente ignorado no Brasil (será por causa do vernáculo? ou, ipso facto, de alguma dúvida mesmo a respeito de nossa localização geográfica?),
Rafael Alberti a panfletar na virada dos anos 50:

Pueblos del mundo, pueblos! El poeta / hoy ya no canta, grita enfurecido.

Pablo Neruda não faria por menos em louvor da Revolução chilena, na sua Incitação ao Nixonicídio, num livro que saiu pela Francisco Alves em tradução de Olga Savary.
Do maranhense Ferreira Gullar tivemos o Poema Sujo; de Affonso Romano de Sant’Anna, Que país é este? Reeditam-se antologias de Manuel Bandeira, Cecília Meirelles com o seu Romanceiro da Inconfidência, Vinícius de Moraes com a sua Arca de Noé em separado e já em 11ª edição pela José Olympio, antologiados também Mauro Motta, Mário da Silva Brito e o próprio aniversariante, CDA, entre muitas outras vozes. Não faltam os recados de um Thiago de Melo, de Geir Campos – este capixaba que depois de uma Tarefa encontrou tempo para um Cantar de Amigo ao Outro Homem da Mulher Amada -, de Ledo Ivo, alagoano de Maceió, que aprendeu “a ler a terra” (ver A Noite Misteriosa, ed. Record) e que, por isto mesmo, não discrimina entre o cavalo e o seu ferrador. Os cachorros perseguem os ratos do mato / e promulgam a lei do mundo. Os perus em busca do sol no terreiro. Como os demagogos nos comícios e os agonizantes nos hospitais / eles falam uma linguagem espalhafatosa, limitada pela morte. Demonstrações de exercício poético sem compromissos escolásticos, assegurada portanto a integridade estilística. A evidência, a constatação de uma autodefesa contra modismos, estes, no geral, de natureza cíclica. E o modista alimenta uma única pretensão, que é a de inovar – na superfície do texto. No entanto, nada de novo sobre a terra, exceto boas semeaduras, que puxam as boas colheitas, o que, aliás, já é tudo.
De qualquer forma, não se despreze nunca o testemunho de um poeta, contanto que o poeta em referência tenha verdadeiramente algo a dizer e em linguagem adequada. Boa poesia, dessas que rasgam superfícies como em lúcidos vôos indicadores de caminhos ou denunciadores de desníveis para correção nos foros competentes do mundo, não costuma sair aos borbotões; exige, para se revelar, certa disciplina, ou certo jeito, mas sem que tais imposições da própria arte derivem, em primeira água, de discutíveis preceitos de lavor acadêmico.
Poetas de sentinela até na Amazônia, por toda parte. E a Bahia transporta-se até a Nigéria pela voz de Antonio Vieira da Silva em Song’s of África: Cava Zé / esta terra dura./ Cava Chico / tua sepultura./ Anda Joana / vê que desventura./ Remove sempre,/ esta terra é tua.
Há quem ande “em busca de raios e girândolas”, como Roberto Pontes em Memória Corporal (Antares). Jorge de Souza Araújo, ao traçar Os Becos do Homem, descobriu que “ao homem só resta reencontrar-se / nas retinas do mundo.” Na Dança das Descobertas, pela Imprensa Oficial de Belo Horizonte, Elias José vê no “espelho-olho do ditador” a lâmina, o punhal, o gelo, a compra e a venda, mas também o pesadelo. Em Corpo de Delito & Prosipoemas, de Ayrton Pereira da Silva, a “musa de plantão”: De que valem estas flores / se fanadas ficarão /no olvido dos desamores?
Sérgio Ricardo, em Elo: Ela (ed. Civilização Brasileira), rabisca uma careta no papel e vê “tudo atrasado – prestação... liberdade... E o que dizer da eterna transferência da decisão?.”
Estão, ainda, acampando, com lançamentos recentes: Nair Baptista Schoueri, que em Estrela Variável (ed. Fontana) vê o Homem “criança perene – sempre a brincar e encontrando / cobras entre roseirais / e beija-flores morrendo.” Sônia Sá em O Outro Lado de Mim (Argus) à procura de identidade: “Vou recolhendo idéias /no emaranhado de seres / e de coisas./ Disseco em aço / mil fraquezas e poderes,/ em torvelinho de agruras,/ devaneios e conjecturas.” O Cárcere de Maria José Braga Cavalcanti de Albuquerque em Diga um verso bem bonito: “Do fundo deste limbo / esperança nenhuma descortino,/ não há penumbra repousante / nem asa noturna que se abrande / ou se descobre em sono./ Fixo, tortura-me o olho redondo / da crua lâmpada cruel.” Marina Rangel, em Pedras d’Água, ouve o conselho das estrelas: “Não leve a vida chorando / que ela dura um momento.” No Vidro da Aurora de Marta Gonçalves – “o céu azul e o canto suave de paz correndo no corpo.”
Enquanto isso, como a situação não está sopa, por causa das contradições de uma reciprocidade de dependência entre países ricos e países pobres, nem as musas escapam dos tentáculos da “máquina do mundo.” Numa feira-livre de Espanha, bem perto do Cemitério de Alicante, onde repousam os despojos de Miguel Hernández, a musa física deste poeta que lutou na Guerra Civil e que deixou, entre outros livros de alta expressão das letras hispânicas, Vientos de Pueblo, pode ser encontrada atrás de uma banca de verduras e legumes. A musa-feirante, que se chama Josefina Manresa, luta desta maneira por sua própria sobrevivência.
Coisa destes fins do Século de Drummond. Ainda bem que existem o boi e o anjo. Formam um bom par: sem c a n g a.


*O Fluminense, capa do caderno dominical Encontro, 1° de novembro de 1982
“Naquela noite o clarim
não pediria silêncio” -
contou João Cândido ( * )


"Seria toda Revolução uma aurora?"
Oswald de Andrade

À leitura de mais um livro-documento de Edmar Morel -- A Revolta da Chibata, em 3ª edição pela Graal --, salta das entrelinhas um raro e edificante detalhe, em face do invólucro dos dias presentes. É o reconhecimento da figura clássica do boêmio como espectador acidental porém consciente, sobretudo humano, de fatos e/ou particularidades às vezes basilares aos próprios fatos. Da história de uma vida, de um grupamento social, de uma nação.
Pois aconteceu terem sido dois boêmios desse porte que puderam captar, a espaço de anos e numa associação perfeita, em suas andaduras pela noite, um a ousadia e o outro a humildade do marinheiro que, de passagem, galgara o almirantado na chefia da revolta de 22 de novembro de 1910 na Baía de Guanabara contra o regime escravo que persistia na Armada.
Oswald de Andrade, a 12 anos de seu édito antropofágico, ainda cheirando à atriz de teatro com quem se trançara numa pensão do centro do Rio, experimentava agora numa enseada da Glória, ao se ver a poucas braçadas de três vasos de guerra dirigindo-se para a saída do porto, um frêmito diferente: a sensação de que estava diante de uma revolução. E como que se inclinasse para o espelho do mar perguntou-se: “Seria toda revolução uma aurora?”.
Amanhecia.
O outro boêmio -- assim referido por Morel -- era o repórter Aôr Ribeiro, que quarenta e três anos depois da histórica revolta, “numa madrugada de março de 1953”, no cais do Mercado, surpreendia um velho marujo despedindo-se, com um beijo no casco, do encouraçado Minas Gerais, que acabara reduzido à “condição de um montão de ferro velho”, para venda como sucata, mas que nem por isso deixava de ser “um pedaço de sua vida”.
Esse marinheiro, dir-se-ia também um boêmio muito acima do copo, chamava-se João Cândido, em quem o tenente Felipe Moreira Lima viu “um Nélson dos morros... que não arrasara a Capital** por humanidade. E um jornal argentino reivindicava para Corrientes a glória de ter sido a terra de nascimento do herói”. Gaúcho da Vila da Encruzilhada do Rio Pardo, praça desde 10 de dezembro de 1895, da 40ª Companhia do Corpo de Marinheiros Nacionais, João Cândido, o Almirante Negro -- como ficou conhecido na época da insurreição naval contra a chibata e que muitos anos depois a Censura deixou passar à história da Música Popular Brasileira como o Navegante Negro vetando o Almirante porque ele não precisava mais de cartaz...-- assim relatou para Edmar Morel a deflagração do movimento:
“O sinal seria a chamada da corneta das 22 horas. O Minas Gerais, por ser muito grande, tinha todos os toques de comando repetidos na proa e popa. Naquela noite o clarim não pediria silêncio e sim combate. Cada um assumiu o seu posto e os oficiais de há muito já estavam presos em seus camarotes. Não houve afobação. Cada canhão ficou guarnecido por cinco marujos, com ordem de atirar para matar contra todo aquele que tentasse impedir o levante.
“Às 22h50min, quando cessou a luta do convés, mandei disparar um tiro de canhão, sinal combinado para chamar à fala os navios comprometidos. Quem primeiro respondeu foi o São Paulo, seguido do Bahia. O Deodoro, a princípio, ficou mudo. Ordenei que todos os holofotes iluminassem o Arsenal de Marinha, as praias e as fortalezas. Expedi um rádio para o Catete, informando que a esquadra estava levantada para acabar com os castigos corporais(...)”.
A noite de 22 de novembro de 1910 -- conta Morel em seu livro -- foi marcada por deslumbrante recepção ao novo presidente da República, marechal Hermes da Fonseca, no Clube da Tijuca, enquanto João Laje, um dos maiorais de O Paiz, em sua residência, no bairro de Botafogo, oferecia um jantar aos oficiais do Adamastor. O marechal, ao lado de todo o seu Ministério, ouvia a ópera Taunhàuser, de Wagner, quando um tiro de canhão sacudiu a cidade. Cinco minutos depois um outro ecoou pelo Rio. Vidraças, agora, eram quebradas em Copacabana e no Centro.
Chegaram a atribuir a chefia do levante ao almirante Alexandrino de Alencar, ministro da Marinha no governo anterior, de Nilo Peçanha, que recebeu em audiência, no Catete, o marinheiro (de 1ª classe) que assistira na Inglaterra, com alguns companheiros, à fase final da construção do Minas Gerais, nos estaleiros de New Castle, inteirando-se de todo o seu funcionamento. E João Cândido pedira ao então presidente que abolisse o açoite na Armada, o que já havia sido feito no papel, ainda que pela metade, no segundo dia da República, pelo decreto nº 3, de 16 de novembro de 1889, previsto, aliás, na própria Constituição Imperial.
Contudo, as penas cruéis continuavam em prática em todos os navios de guerra e no Batalhão Naval. Isto, que Morel não chega a dizer, nem insinuar, até mesmo porque escreveu A Revolta da Chibata baseado única e exclusivamente em documentos e testemunhos autênticos, com toda a imparcialidade que dignifica o repórter-historiador, embora esta sua postura lhe tenha custado a cassação dos direitos políticos e conseqüente desemprego, leva inclusive a pensar em espécie de insubordinação contra o texto de uma lei.
O almirante Alexandrino de Alencar estava a bordo do Principessa Mafalda, transatlântico italiano, a caminho da Europa. Portanto, logo concluiu o estado-maior de Hermes da Fonseca na noite de Wagner e Edmar Morel explicaria em seu livro: “A sublevação, na verdade, fora arquitetada nos estaleiros da Armstrong, onde a João Cândido e outros cabeças do motim foram dadas hábeis e proveitosas lições de navegação”.
Transcreve a mensagem dos rebeldes: “Não queremos a volta da chibata. Isso pedimos ao presidente da República, ao ministro da Marinha. Queremos resposta já e já. Caso não tenhamos, bombardearemos a cidade e navios que não se revoltarem. Guarnições Minas, São Paulo e Bahia”.
Apesar de longa espera pela abolição da chibata e das tentativas de resistência do Governo através do cruzador Barroso e do caça-torpedeiro Tymbira, João Cândido e seus homens não passaram do ultimato. E tinham a cidade aberta a uma fragata invencível em águas da Guanabara, da terceira maior potência naval do mundo. Quando se aperceberam disto, os homens do Governo cuidaram de acenar com anistia para os amotinados, no que eles acreditaram.
João Cândido estava mesmo do lado do Brasil, como atesta o seu último rádio, transmitido ao marechal Hermes da Fonseca: “Confiamos na vossa justiça; esperamos, com o coração transbordando de alegria, a vossa resolução, pois os culpados da nossa rebelião são os maus oficiais da Marinha, que nos fazem escravizados deles e não da bandeira que temos. Estaremos ao vosso lado, pois não se trata de política e sim dos direitos dos miseráveis marinheiros”.
E uma vez em terra, após os interrrogatórios de praxe, embora anistiados, “foram metidos em masmorras medievais na Ilha das Cobras, onde vários morreram asfixiados (16 marinheiros) com cal virgem (após terem clamado por água). O chefe, aquele que acabou com a chibata na Marinha, foi parar no Hospital dos Alienados” -- consta no texto de Morel. Por outro lado, que “Rui Barbosa aparecia como inspirador e redator oficial dos principais decretos de Deodoro”, entre eles o que instituiu a Companhia Correcional (referendado pelo próprio jurisconsulto e grande orador, sempre na defesa -- da tribuna -- dos fracos e oprimidos) limitando, no último artigo, em 25 o número de chibatadas como punição por “faltas graves”.
Rui Barbosa a bradar: “Extinguimos a escravidão sobre a raça negra; mantemos, porém, a escravidão (sic) da raça branca entre os servidores da Pátria”.
Mas não deve ter sido bem assim. A julgar pelo que escreveu um brazilianist daquele tempo, James Bryce, testemunha ocular do motim, ao contrário de Rui. Num trabalho que publicou sob o título South América Observations and Impressions (Observações e Impressões da América do Sul), Bryce afirma que “as tripulações eram quase inteiramente de negros”, e acrescenta: “Somente alguns homens brancos foram deixados a bordo. Eram engenheiros ingleses, detidos forçadamente com ordem de trabalhar nas máquinas. Os navios de guerra estavam liderados por um negro, chamado João Cândido, um homem de energia e resolução, que se tinha apoderado da situação, ordenando pôr na água todas as bebidas do Minas Gerais”.
Não estava muito acima do copo?!

( * ) O Fluminense, caderno Encontro, Autor e Livro, 20/21 de janeiro de 1980
Tal pai, tal filho*
*UOL EM 8 de março de 2009: EUA ficam mais pobres 16,5 trilhões de dólares e países emergentes terão falta de 700 bilhões de dólares, afirma o Banco Mundial

Eleito em dezembro de 2000 para ocupar a Casa Branca, George W.Bush passou a receber cumprimentos planetários, o que era natural. O governo brasileiro respirou aliviado, na convicção de que, com a derrota do democrata Al Gore, bons ventos haveriam de soprar para o hemisfério Sul favorecendo acordos comerciais com Washington em igualdade de condições. O então presidente Fernando Henrique Cardoso apostava no republicano, a ele se dirigindo em mensagem de congratulações, nestes termos: “Ao colocar as relações hemisféricas como uma das prioridades de sua agenda de política externa, vossa excelência dá-nos a certeza de que, todos juntos, poderemos efetivamente fazer deste o Século das Américas”. Acrescentando: “As condições para isso estão postas, e é com justificável expectativa que nos dispomos a trabalhar para transformar em realidade essa generosa perspectiva”. O presidente Cardoso destacou o aprofundamento do diálogo Norte-Sul como sendo a chave para a “redução das desigualdades” e a “promoção da prosperidade compartilhada nas Américas”. Por estas palavras de Cardoso, teve-se a impressão de que o Brasil caminhava para a construção da Alca, Área de Livre Comércio das Américas. Seis anos antes da eleição de Bush, filho, em 1994, o México firmava o Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos e Canadá, o Nafta. Passam-se mais de dez anos de livre comércio com os EUA e se lê agora no La Nación, de Buenos Aires: “Observadores constatam que milhões de mexicanos ainda não saíram da pobreza”. E foi justamente em 1994, com o ingresso do México no Nafta – uma ponte para chegar-se à Alca pelos planos de Washington, que um grupo de nações estabeleceu como meta estrutural do novo bloco o ano de 2005. Até dar-se o naufrágio na IV Cúpula das Américas, há dias realizada em Mar del Plata. Lá estava o dedo de Hugo Chávez, Washington não tinha a menor dúvida. Assim, a patrocinar o simples apeamento de Chávez do governo da Venezuela, certamente pensaram à saída do Salão Oval, seria melhor se o tivéssemos feito desaparecer de cena de uma vez por todas. Talvez como Omar Torrijos (1929-81) no Panamá, desaparecido em acidente aéreo até hoje discutível. Ou como Manuel Antonio Noriega, que por ter trabalhado para a CIA sob a direção de George Bush, pai, e decidido, mais tarde, servir ao seu Panamá contrariando interesses norte-americanos, já quando Bush alçara-se à presidência dos EUA, passou a sofrer implacável perseguição a ponto de agentes secretos o envolverem com o narcotráfico transformando o seu bunker em depósito de drogas para a imprensa documentar. Os EUA desembarcam tropas na Cidade do Panamá, matam covardemente centenas de civis que ocupavam o bairro El Chorrillo e só dão como missão cumprida quando põem as mãos no general Noriega, levando-o preso para julgamento, e condenação, na Flórida. E Bush, pai, não fizera segredo de sua gana de “eliminar Noriega do quadro político da América Latina”. Bush, filho, não fica atrás do pai em se tratando de Hugo Chávez com a proposta da Alba, Alternativa Bolivariana para as Américas, a um passo, entretanto, de entrar para o Mercosul. A Alba seria, pois, a mola propulsora de um projeto da Venezuela de alianças em torno do seu petróleo com países da região. Mas sabe-se que Chávez é o maior obstáculo encontrado no caminho da Alca. Isto explica o perigo a que estaria se expondo, sobretudo por sua atuação na Cúpula de Mar del Plata, inclusive na chamada Contracúpula. A propósito do golpe de Estado frustrado de 2002 na Venezuela, documentário exibido na televisão brasileira mostrou a clara participação de Washington em manifestações de rua em Caracas, nas quais os golpistas não conseguiram esconder dos cinegrafistas bandeiras norte-americanas..

Sangue de Castela

Sangue de Castela

Exaltar “respeitável tradição diplomática”, como a gestada pelo barão do Rio Branco, apenas para atacar avanços recentes de uma esquerda latino-americana que passou a tirar o sono do Império Americano, e de seus porta-vozes midiáticos, traduz-se por demonstração inequívoca de desespero.

Sobre a questão das reservas de gás natural e petróleo nacionalizadas pelo governo da Bolívia nesse 1º de maio de 2006, em cumprimento à vontade popular expressa em referéndum vinculante, de 18 de julho de 2004, O Globo (7/5/06), em editorial, fala que a diplomacia que atualmente “dá as cartas” é a do “berro, das propostas megalômanas envolvidas em legendas “bolivarianas” (aspas do editorialista) -- e, já agora, da truculência pura e simples”. Acrescenta que, “não por acaso, figuras como o presidente Morales gravitam para a órbita do coronel Chávez, e não para a linha brasileira”.
E qual seria a linha brasileira? Na mesma edição do Globo, Tereza Cruvinel, em Panorama Político, diz ter ouvido do chanceler Celso Amorim que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva “não pensa em fazer nenhuma revolução bolivarista ou socialista, mas governar um país capitalista dentro de regras capitalistas”.
No editorial por título Herança perdida, O Globo sugere (¡Atención, presidente José Luis Rodríguez Zapatero!) derivarem do “sangue castelhano” as “retóricas estridentes” de figuras como o presidente Hugo Chávez, da Venezuela -- o mais fustigado de quantos galgaram d e m o c r a t i c a m e n t e o poder na América Espanhola determinados a varrer de seu solo os velhos e contumazes exploradores externos de seus recursos naturais.
Se os Estados Unidos absorveram da Inglaterra valores ainda que pouco éticos (... “estamos sedentos de terras”, justificava o presidente Franklin Delano Roosevelt a doutrina intervencionista de seu país, em 1906, na III Conferência Pan-Americana, realizada no Rio), mas que os impulsaram a assumir a posição de superpotência, por que negar agora à América sangüínea o direito de integração politicamente correta?
Há uma diferença muito grande em política externa entre os Estados Unidos, seja de que partido for o seu presidente: republicano ou democrata, e a Venezuela que Chávez elevou a República Bolivariana ou a Bolívia que Morales, o primeiro indígena da História da América Latina eleito chefe de Estado, começou a emancipar para seu povo e sem avançar um palmo além de suas fronteiras. Ao contrário do que fizeram, e ainda fazem, os Estados Unidos no lombo de sua História.
Estigmatizam toda e qualquer iniciativa de Hugo Chávez, como a de Petrocaribe, do fornecimento de petróleo aos caribenhos a preços preferenciais: primeiro passo para a criação da Petroamérica, sem que faltem vontade política e fundos suficientes para sustentar a “aliança energética” que se pretende consolidar na América Latina e o Caribe, segundo o governo da Venezuela.
E não param de criticá-lo. Por ter Chávez anunciado como pilares desse projeto o petróleo venezuelano e a medicina cubana, reconhecidamente uma das mais avançadas, e generosas, do mundo.
Por ter ele ousado comprar bônus públicos argentinos por mais de US$ 950 milhões como lance inicial para a criação do Banco del Sur.
É nessas horas que George W. Bush... (Bush, não; não ficaria bem), que Condoleezza Rice, princesa guerreira, para os íntimos, deve sentir as dores do parto.

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

O cérebro: a cavaleiro do coração

o fundamento de uma
sólida felicidade
humana segundo Pavlov



O cérebro: a cavaleiro do coração (**)



O predomínio da dor sobre o prazer, dentro da velha conceituação teológica de dor como sendo o caminho que invariavelmente levaria o Homem a realizar-se, é de supor que remonta ao advento das guerras, já que historiadores imaginam terem sido os árias primitivos uma comunidade feliz, do primeiro ao último ano de vida.Aflorou a civilização, mas temperada no sangue das lutas fratricidas. Descartes disse:”Para alcançar a verdade é preciso, uma vez na vida, desfazermo-nos de todas as opiniões que recebemos e reconstruir, de novo e desde os fundamentos, todos os sistemas de nossos conhecimentos.” Foi o que de certo modo fez Ivan Petrovitch Pavlov, Prêmio Nobel de Medicina – 1904.Ao assentar a base dos conhecimentos exatos sobre a função nervosa superior, no princípio deste século**, dissecando o mecanismo fisiológico e não puramente psíquico dos reflexos (aqueles que nascem conosco e os que adquirimos durante a vida) em face dos estímulos do meio-ambiente (positivos e negativos), Pavlov apresentou o cérebro humano como bem parecido a uma fábrica. Senão vejamos o que ele diz em um dos estudos reunidos sob o título geral Os reflexos condicionados aplicados à Psicopatologia e à Psiquiatria (Ediciones Pueblos Unidos, Montevidéu, 1906):“Se todo o sistema nervoso central se divide em duas partes – aferente e eferente -, o córtice dos hemisférios representa a seção aferente isolada. Nela se realizam exclusivamente a análise e a síntese superiores dos estímulos recebidos, e, dali, as combinações já concluídas se dirigem à seção eferente. Dito de outra forma, a seção aferente é ativa, por assim dizer criadora, e a eferente é passiva, executiva.”Assim como uma fábrica é movimentada por projetistas e examinadores ou selecionadores da matéria-prima e pelo pessoal encarregado de executar o plano de obras, o nosso cérebro está freqüentemente criando reflexos em função dos estímulos que recebe do meio que o circunda e que, uma vez analisados, são entregues às suas células operárias. Se o empregado braçal é o último a responder pelo fracasso de um empreendimento, pelo que são diretamente responsabilizados os organizadores, o cérebro funciona regularmente até o ponto em que se mantêm em certo equilíbrio os processos de excitação e inibição: os pratos da balança geral do organismo. Isto, porque o cérebro comanda todos os demais órgãos, vinculando-os ao infinito mundo circundante, da mesma forma que à fábrica é atribuído o papel de instrumento propulsor do bem-estar social.Para Pavlov, a quem já cognominaram o Príncipe dos Fisiologistas, o cérebro, a rigor, observado de todos os ângulos, está a cavaleiro do coração, porque a função nervosa superior é a que “distingue o Homem, de forma categórica, dos animais,colocando-o infinitamente acima de todo o reino animal.” (Aplicação ao Homem de dados experimentais obtidos nos animais).Ante a proclamação pavloviana de que eram fundamentalmente fisiológicas e não psíquicas as relações humanas, começaram a evaporar-se os castelos de pensadores cujas especulações bem poderíamos medir por estes versos de Rucker em versão de Antero de Quental:O coração tem dois quartos./ Neles moram, sem se ver,/ Num a Dor, noutro o Prazer./ Quando o Prazer, em seu quarto,/ acorda cheio de ardor,/ no seu adormece a Dor./ Cuidado, Prazer! Cautela!... / Fala e ri mais devagar... / Não vás a Dor acordar...Originariamente, a dor e o prazer moram lá em cima, no cérebro, e nem sempre em quartos separados, travando uma batalha multissecular. O que não pensará o Homem de tantas civilizações alicerçadas no sofrimento, daqui a não se sabe quanto tempo, depois que houver abdicado inteiramente da condição animal? Já de agora, o alto pensamento científico repele, em tese, toda uma escala de idéias encerradas na expressão poética de que “quem passou pela vida e não sofreu foi espectro de homem (...)”O catecismo dos idealistas dominou gerações a fio inculcando-lhes, nos grandes hemisférios cerebrais, o sofrimento como sendo o princípio de todas as coisas e o único meio para a consecução de um fim com dignidade. Mas essa voragem de reflexos criados e recriados na mente humana por estímulos fantasmagóricos serviu, pelo menos, para demonstrar que o cérebro é capaz de tudo, até de inverter os papéis mais caros da humanidade: fazer a dor sobrepor-se ao prazer.Foi perante o Congresso Médico Internacional de abril de 1903, instalado em Madri, que o soviético Ivan Pavlov expôs pela primeira vez ao mundo científico o seu trabalho sobre Psicologia e Psicopatologia experimental nos animais.“Esta será, antes de tudo – assim dirigiu-se ele ao plenário – a história de um fisiólogo que passou dos temas puramente fisiológicos ao domínio dos fenômenos chamados comumente psíquicos.”Sem entregar-se a evoluções verbais, desde logo afirmou que localizara “condições de caráter psíquico” entre as glândulas digestivas, tendo-se ocupado, durante muitos anos, da atividade normal desta função. Referiu-se, então, em particular, às glândulas salivares como sendo um órgão aparentemente de importância muito relativa mas que, estava convencido, se converteria no “objeto clássico das investigações do novo gênero.” Da premissa de que, “se se dá ao animal tipos de alimentos duros, secos, ele segrega muita saliva, e, se os alimentos são ricos em água, a secreção é bem menor”, Pavlov partiu para o estudo da extraordinária capacidade de adaptação da atividade das glândulas salivares, tomando o cão por objeto das suas experiências, para concluir que nele se manifestam reflexos constantes e exatos, “reflexos que parecem revelar inteligência, porém o mecanismo dessa inteligência está exposto com toda a clareza como a palma da mão.” Assim é que explicou tratar-se o fenômeno da adaptação ou adequação de “uma excitação exterior especial, que produz uma reação especial na substância viva.” Nada viu, contudo, de particular no fator de adaptação, “salvo a reunião precisa dos elementos de um sistema complexo entre si e desse complexo com o meio exterior”, tal como acontece a qualquer corpo inanimado – que só e x i s t e “graças ao equilíbrio de átomos isolados e de grupos de átomos entre si e de todo o seu conjunto com o meio exterior.”O princípio fundamental do organismo, seu equilíbrio interior e exterior, descoberto por Pavlov, em 1901, com base teórica nos estudos de I. Sèchenov sobre a atividade reflexa do cérebro humano, foi mais tarde consagrado como Princípio da Conexão Temporal (PCT).Não tardou que os dados colhidos das experiências pavlovianas fossem aplicados em todos os campos de atividade analítica, substituindo-se os métodos subjetivos pelos objetivos. Um pedagogo, K. Ushinski, chegara a observar que, enquanto a Medicina se apoiava “no estudo positivo do organismo humano e nos objetos da Natureza que influem nele”, a Pedagogia conformava-se “com as teorias confusas, contraditórias e fantásticas dos psicólogos sobre as quais (sic) não é possível construir nada sólido.”Em 1907 a revista Russikivrach publicava um ensaio do pediatra N. Krasnogorski sobre a fisiologia e fisiopatologia do cérebro infantil, já quando um grupo de ginecologistas, destacando-se Velvoski, Platonov e Nikolaiev, investigava as origens das dores do parto, preparando-se para proclamar que elas não passavam de reflexo condicionado nas noivas e nas mães de quase todos os tempos, através da palavra ou sugestão. Isso, porque “a palavra – quem o diz é Pavlov – é para o homem um estímulo condicionado tão real como todos os restantes comuns a ele e aos animais e de maior alcance que qualquer outro, superando qualitativa e quantitativamente a todo estímulo condicionado nos animais.”A julgar pela tradução feita do Hebraico para o Latim e do Latim para a Língua Portuguesa, do 1º Livro de Moisés chamado Gênesis, no capítulo Tentação de Eva e queda do Homem lê-se que Deus disse à Mulher:“Multiplicarei grandemente a tua dor e a tua conceição; com dor terás filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará.”O Papa Pio XII, por ocasião de um congresso de ginecologistas realizado no Palácio Apostólico do Vaticano, aduziu que, “punindo Eva, Deus não quis proibir, como não proibiu, às mães, que utilizassem os meios que tornam o parto mais fácil e menos doloroso”, e que “a Ciência e a Técnica podem, pois, utilizar as conclusões da Psicologia Experimental, da Fisiologia e da Ginecologia – como no novo método psicoprofilático – a fim de eliminar as fontes de erros e os reflexos condicionados dolorosos e de tornar o parto tão indolor quanto possível.”Foi em 1930 que o método psicoprofilático da parturição começou a ser largamente adotado nas repúblicas soviéticas, em substituição ao universal e ao hipnossugestivo. Ante a repercussão do seu êxito no Ocidente, não demorou que o francês Fernand Lamaze fosse estagiar em Leningrado, na clínica do dr. Nikolaiev, e já de volta a Paris declarou-se entusiasmado dizendo que, em 30 anos de prática obstétrica, jamais vira coisa igual.No Brasil ele foi lançado também com bons resultados, pelo dr. Hirsch Schoor, há 13 anos, em São Paulo, e em agosto de 1955 o dr. Fernando Pedrosa Filho orientava um dos primeiros partos realizados por esse processo no Rio de Janeiro. No ano seguinte, viajava para a França, a fim de aperfeiçoar-se na clínica do dr. Lamaze.O fato é que os obstetras da escola pavloviana encaram como muito natural uma mulher dar à luz com um sorriso – se bem que depois de muito esforço – uma criança que, no caso, geralmente nasce mais sadia do que as nascidas em meio às contrações irregulares, em função do reflexo paradisíaco (medo de sofrer), porquanto a nova parturiente, entrando em atividade no trabalho de seu parto, e não caindo em passividade, está alimentando de oxigênio a seu filho.A tese de que o parto, em suas origens, teria sido indolor é robustecida pelos depoimentos de sertanistas segundo os quais as índias inteiramente afastadas da civilização não padecem no ato da maternidade. O médico Ataliba Bellizi, que há tempos percorreu várias tribos do Norte e do Brasil Central pelo Serviço Nacional do Câncer, deu-me o seu testemunho disso e de que nas mais atrasadas a jovem, tão logo comunica a seus pais que vai casar, submete-se, sem o saber, a intenso tratamento para a parturição, ao caminhar léguas e léguas e até remar contra a correnteza, diariamente, para suprir a taba.Um fato curioso que o médico-sertanista presenciou numa tribo do Sul do Pará, a Uchikring: Enquanto a mulher trabalha, o seu companheiro limita-se a flanar de um lado para outro com o arco e a flecha, a pretexto de velar pela integridade da nação. Imediatamente após o nascimento de seu filho, ela volta ao trabalho e ele se recolhe à taba, entregando-se a uma dieta que consiste em comer apenas manjuara, torrada, espécie de formiga que valeria o gosto do ácido fórmico. O índio uchikring acredita que se não observar esse regime à risca ficará estéril, depois de o acometer terrível dor de cabeça.O cérebro do gentio tem dessa coisa, que enfim não é de admirar tanto – confrontada com muita que se vê no mundo civilizado.Já dizia Pavlov que somente “o completo e exato conhecimento de nosso órgão superior, o cérebro, será nosso legítimo bem e o fundamento de uma sólida felicidade humana”.



( * ) O Fluminense, pág. 4, Prosa & Verso, suplemento literário sob a direção de Marcos Almir Madeira e Sávio Soares de Sousa, 22 de outubro de 1966 Original de FERNANDO HENRIQUES GONÇALVES então editado como Reportagem Pavloviana ( ** )(Séc.XX)

He resucitado muchas veces

Vitoriosa a revolução, Castro entra em Havana




"He resucitado muchas veces"


Notícias como a de que os Estados Unidos conceberam mais um plano de “democratização de Cuba” -- leia-se: invasão de Cuba -- dessa vez com a intenção de pô-lo em prática após a morte de Fidel Castro já não são mais novidade, tantas foram as tentativas, em várias ocasiões, de eliminá-lo; que o diga a CIA. E pelos cálculos de Washington, Castro, que fará 80 anos no próximo 13 de agosto, não deverá durar mais muito tempo. Não há , é voz corrente, quem fique para semente.
Tem-se, no entanto, a impressão de que Cuba desmente o axioma, posto que já décadas atrás se tinha conhecimento da existência de pelo menos cinco pessoas devidamente preparadas, cinco sementes deixadas em vida, para suceder a Castro através de escolha provavelmente pelo sistema de colégio eleitoral.
Mas o presidente cubano, ao discursar como convidado especial na XXX Cúpula do Mercosul, na cidade argentina de Córdoba, quando Néstor KIrchner transmitiu a presidência temporária do bloco regional ao seu colega brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, respondeu mais uma vez aos rumores que vez e outra correm o mundo de que estaria às portas da morte ou até mesmo de que já teria batido as botas, com poucas e boas palavras:
“Yo me muero casi todos los días, pero eso me divierte mucho, realmente, y me hace sentir más saludable; he resucitado muchas veces”.
Por sua vez, o presidente Kirchner inaugurou a XXX Cúpula do Mercosul enfatizando que a integração latino-americana deve ter “a solidariedade como bandeira”. E Castro, em seu pronunciamento de 40 minutos, destacou o apelo do presidente argentino aos sentimentos de solidariedade de cada nação do Continente Sul das Américas. Para que os países-membros do Mercosul em melhores condições econômicas que os demais não deixem de ajudá-los.
Castro deu de ombros ao plano dos Estados Unidos de infiltrarem-se em Cuba para derrubar a Revolução de 1959.
O anúncio da “democratização de Cuba” foi feito há dias, 10 de julho, por Condoleezza Rice, a secretária de Estado do presidente George W. Bush, cognominada princesa guerreira. Acredita-se que o plano, com um investimento inicial previsto de US$ 80 milhões, tenha saltado da cabeça da secretária, que depois de submetê-lo ao presidente e de tramitar por outras pastas e o serviço de inteligência, o passou à mídia com a denominação de Contrato com o povo de Cuba.
Lê-se na edição de 11 de julho do Globo que ”a maior parte dos recursos para acelerar o processo de democratização da ilha vai para a produção de projetos educativos, noticiários, programas de TV e de rádio, e de tecnologia para a difusão das informações em território cubano”. E mais: “Washington já divulgou anteriormente (!) que estuda sobrevoar a ilha com aviões militares adaptados, que teriam como objetivo transmitir sinais de rádio e TV”.

República ao longe

Como se falou anteriormente em república de empréstimo, numa paráfrase à expressão, usada por Euclides da Cunha em Os Sertões, “civilização de empréstimo”, vale transcrever em Notas Bolivarianas artigo publicado no jornal Última Hora, do Rio de Janeiro, a 16 de novembro de 1989.




República ao longe

- I -

Por Fernando Henriques Gonçalves



Ninguém derrubou o Império do Brasil. Ele caiu por si só, e não de todo. Diz-se que por ter procrastinado aos estertores a emancipação dos escravos. Mas não é este o ponto em discussão. Proclamou-se a República para quê? Um acidente histórico?! Que espécie de república é a nossa? Esdruxulamente, imperial?! Sabe-se apenas, por definição, que é presidencialista, como já foi parlamentarista, e que poderá vir a sê-lo outra vez.
O mais provável é que os vícios da Monarquia tenham acompanhado a República e que estaria faltando a esta uma bandeira social. A persistência do feudo na contextura nacional seria uma prova de que se vive num regime republicano de raízes monárquicas. A República herdou do Império o sistema de castas, da distribuição de privilégios, do mandonismo interno e da subserviência externa a países conhecidos hoje como credores de um endividamento crônico.
Curioso é que a transição do regime monárquico para o republicano teria começado pouco mais de 15 meses após a declaração da Independência, por força da Constituição brasileira de 11 de dezembro de 1823. Por essa época houve quem, de certo modo, desenvolvesse este raciocínio ao comentar o artigo, talvez, mais polêmico da Carta promulgada para Dom Pedro I imperar a seu jeito. O de nº 65, o qual estatui que “todas as vezes que as duas legislaturas, que se seguirem àquela que tiver aprovado o projeto, tornem sucessivamente a apresentá-lo nos mesmos
termos, entender-se-á que o imperador tem dado a sanção”.


República ao longe

- II -


Acerca da suspensibilidade do veto imperial tratada no capítulo IV -- Da proposição, discussão, sanção e promulgação das leis --, um autor que não pudemos identificar, porém certamente um constitucionalista, no livro por título Observações sobre a Carta Constitucional do Reino de Portugal e a Constituição do Brasil (edição de 1831 tirada na Officina Typographica de Casimir, Paris), assim se expressou:
“Os redatores da Constituição do Brasil deixaram-se iludir pelo pânico terror dos publicistas que impugnam o veto absoluto. Nem uns, nem outros advertiram que o veto suspensivo é tão incompatível com o governo monárquico, como a falta absoluta de veto. Tanto em um, como no outro caso, o monarca de chefe perpétuo que se dizia ser, do poder executivo, passa à qualidade de sê-lo meramente temporário, e por conseguinte o governo, em vez de monárquico, passa a ser uma república. E tal é, em virtude deste artigo, o império do Brasil”.
Então, Dom Pedro I passara, constitucionalmente, à chefia temporária de um governo; neste caso, republicano. Ou de um império em processo de metamorfose para república. Daí, em face das indefinições que a marcaram nestes 100 anos* oficiais de existência, deu-se um fenômeno inversamente bicéfalo: a República imperial.
A República brasileira ainda anda à procura da sua verdadeira identidade, ou de complementaridade, se é que efetivamente assim proceda. A fim de que possa consolidar-se será preciso, primeiro, se integralizar na forma de governo convencionada pela maioria das nações desenvolvidas do mundo contemporâneo, ficando o sistema de governo, que é outra coisa, para escolha à parte.



* Este artigo foi publicado na UH no ano do centenário da República. Agora, no próximo 15 de novembro, já serão 117 anos de vida republicana. (Nota do autor)

Canudos não fica em S. Paulo

Canudos não fica em S. Paulo


O governador de São Paulo, com toda impropriedade, associou a onda de violência desencadeada pela facção criminosa conhecida como Partido do Comando da Capital (PCC) à Guerra de Canudos. O governador Cláudio Lembo, se leu, não deve ter entendido a obra maior de Euclides da Cunha, Os Sertões, ou então a misturou, espertamente, com a Guerra do Fim do Mundo, de Vargas Llosa, cujas posições político-ideológicas estão centradas no neoliberalismo. E a Guerra de Llosa segue essa linha, fechando-se a trama novelesca no puro messianismo, distanciando-se o autor peruano o mais que pôde do foco real de acontecimentos por si só já tão insólitos.Em entrevista à Folha de S. Paulo (16 de julho de 2006) o mandatário paulista sustenta, a princípio, em outras palavras que, assim como ontem, quando Antônio Conselheiro e sua gente ficaram à margem da lei com a substituição do regime monárquico pelo republicano, “a batalha (sic) deles hoje é utilizar desprovidos economicamente para agredir o Estado nacional de Direito”.Quer dizer: eles, ontem, povoaram o arraial de Monte Santo, transformando-o em pouco tempo, pelas tintas de Euclides, na “Tróia de taipa dos jagunços” do Norte e Nordeste do país que atendiam ao “toque de chamada” -- a correr nos sertões -- para a luta desigual, na visão do escritor, contra uma “civilização de empréstimo”: não se deve ler também república?Falava-se nos jornais da época em “monarquismo revolucionário”. Sob a bandeira do Divino e o comando de um “gnóstico bronco” que a todos de seu séqüito, a cada dia mais caudaloso, dominava “sem o querer”? O diagnóstico sobre o Conselheiro é de Euclides, que entanto reconhecia nele o crepitar de certa virtude, estranha à civilização mas própria da Natureza com todas as suas imperfeições: desarmar os jagunços para o crime civilizado e rearmá-los para a santa missão de defender a “pau e tiro”, e a “parnaíba inseparável” pendendo da cinta, a comunidade de Canudos. A levantar santos e armas, brancas e de fogo, mais o pendão do Divino -- para garantia de um cantinho no Céu.Atesta Euclides da Cunha em Os Sertões que a Antônio Conselheiro, cujo nome batismal era Antônio Vicente Mendes Maciel , natural do Ceará, obedeciam incondicionalmente, e resume: “Naquela dispersão de ofícios, múltiplos e variáveis, onde ombreavam o tabaréu crendeiro e o fascínora despejado, estabelecera-se raro entrelaçamento de esforços; e a mais perfeita conformidade de vistas volvidas para um objetivo único: reagir à invasão iminente”.O que fez Canudos? Reagir à “marcha invasora” de cada expedição de uma república que mal rebentara e carregando nos impostos. À resistência -- conta Euclides -- ...”não faltavam lutadores famanazes, cujas aventuras de pasmar corriam pelo sertão inteiro”. E o profeta a pregar a “comunidade absoluta da terra, das pastagens e dos rebanhos” -- o comunitarismo dos primeiros cristãos.

Canudos não fica em São Paulo.

Vargas vive




Vargas vive - I -

Vargas rompe silêncio de mais de cinco décadas:




“A alta finança está governando o país”




por Fernando Henriques Gonçalves





Uma entrevista historiografada
com Getúlio Dornelles Vargas,
cujo pensamento a respeito da questão
social, econômica, política no Brasil
passa à atualidade, fielmente
aqui reproduzido. Vêmo-lo indignar-se
com a magia de cifras a que lança mão
o poder econômico-financeiro
para iludir o povo. Sobretudo, para
submeter as classes trabalhadoras
a uma escravidão monetária,
fazendo-as renunciar às “conquistas
sociais”: leis trabalhistas, previdenciárias,
o próprio d i r e i t o ao trabalho.
E ele abre fogo contra a “velha democracia
liberal”: altos juros, baixos salários.


Vargas vive - II -

“A alta finança estendeu seus tentáculos sobre o Brasil e está sugando tudo. E o governo toma as medidas em defesa dos interesses dessa política, que não pode ser uma política de Estado, porque é nociva, é contraproducente e agressiva às forças do trabalho e benéfica somente às forças da especulação”.
Assim reagiu o ex-presidente Getúlio Vargas à abertura, desvairada a seu ver, do país ao capital estrangeiro, dando-me ele a impressão de oscilar entre os anos 90, ainda na era Cardoso, e um novo século, já no governo Lula. De todo modo, numa clara alusão à política antiinflacionária adotada de forma a movimentar os dados do jogo não raro traiçoeiro da economia na direção da meta conceitual do Estado mínimo, disse que “o que se pretende é criar o monopólio do dinheiro, destruir todas as iniciativas produtivas, sufocar o nosso povo e obrigar os operários a mendigar trabalho”.
Como a relembrar o “malabarismo de cifras” do governo Dutra, no último quatriênio da década de 40, a supervalorização do capital estrangeiro aplicado no Brasil, Vargas estaria agora repetindo, já nestes tão conturbados começos do século XXI, observações que fizera, naquela época, ao discursar em maio de 1947 da tribuna do Senado. Foi enfático: “Não tínhamos, no Brasil (antes do governo Dutra, ou antes da era Cardoso?), o problema dos desempregados.(...) Os operários sofrerão as conseqüências da crise com o desemprego. Haverá mais oferta de braços do que procura. E os trabalhadores irão, pela fome, pela necessidade imediata e premente, renunciando às conquistas sociais e voltando à condição de escravos dos que possuem dinheiro”.
Pelo entendimento de Getúlio Vargas, “a criação do monopólio do dinheiro que se está efetuando no Brasil representa uma das mais impressionantes ofensivas do poder financeiro contra a produção e contra os valores de trabalho e de iniciativa”. Vargas enfatiza que “a alta finança (sic) está governando o país”.
Diz que “as forças da produção estão sendo subjugadas e aniquiladas”, acrescentando: “Não se pensa mais em produção; só se está cuidando no Brasil em fazer o jogo dos grupos financeiros que, possuidores de dinheiro, desejam valorizá-lo a todo custo com o sacrifício dos que não o possuem e dele precisam para desenvolver sua atividade”.
A seguir, observa que, “no choque entre as forças das finanças e da indústria, quem sofre é o trabalhador, condenado brutalmente, por essa luta, a conhecer misérias e angústias maiores do que as que já tinha de suportar. Nega-se ao trabalhador uma parcela de dinheiro para reajustamento de seus salários, alegando-se que isso afetará o custo da produção. Mas aumenta-se a parcela de juros do dinheiro”.
A seguir:
Dutra não socorre Vargas em 1938
e retoma o Estado Novo já em 1946.


Vargas vive - III -


Vargas em Porto Alegre (29 de novembro de 1946) diante de um carrossel de “partidos que, com nomes diferentes, significam a mesma coisa”. Estaria ele se lembrando de quando (7 de janeiro de 1938) comparava a “bronzes partidos”, que haviam perdido a sua sonoridade, as agremiações políticas dissolvidas no advento do Estado Novo? Esse regime, fruto de uma tramóia da Ação Integralista Brasileira, que à sombra do seu (apócrifo) Plano Cohen, o plano de uma espécie de Revolução Russa no Brasil, atribuído, portanto, aos comunistas, iniciara a sua marcha rumo ao poder, e lá talvez chegasse, ao topo, se Vargas não tivesse apanhado o pião discricionário na unha, durou de 10 de novembro de 1937 a 29 de outubro de 45.
O estadonovismo teve como condestável o então general Eurico Gaspar Dutra, elevado mais tarde ao marechalato, e como chefe de Polícia o capitão Filinto Müller, o terror em pessoa.
Dutra retomaria extraoficialmente o Estado Novo em 1946 (lembrai-vos do comício dissolvido a fogo de artilharia e a patas de cavalos em 23 de maio daquele ano no Largo da Carioca, Rio, e do retorno do PCB (Partido Comunista Brasileiro) à clandestinidade, e do rompimento de relações do Brasil com a União Soviética!), o Estado Novo agora voltado a escusos interesses externos. O fechamento dos cassinos, obra de dona Santinha, a Primeira Dama, serviu de cortina de fumaça.
E aí vai o paradoxo à primeira vista: fora ele, Dutra, o candidato de Getúlio Vargas, que supunha estar matando dois coelhos com uma só cajadada. Um era o brigadeiro Eduardo Gomes, candidato oficial da “alta finança”, e o outro, o próprio general Dutra, em quem Vargas não confiava; por isso mesmo procurava mantê-lo sempre por perto a fim de vigiá-lo melhor, e já pensava em dar a volta por cima nas eleições de 1950, como de fato aconteceu.
Entretanto, por ter entrado no Catete, em 1951, pelas mãos do povo e com o povo, ao qual abrira as portas do palácio no dia de sua posse na presidência da República, viu-se naturalmente Vargas na obrigação de tratar, a partir de então, sempre de frente, e não com a cautela de outras luas, os magnos problemas nacionais, e acaba pisando num clamoroso formigueiro. Um dos conspiradores com assento na reunião ministerial da madrugada de 24 de agosto de 1954: Dutra, eminência parda do ciclo de Vargas.
Sem que eu lhe perguntasse, o dr. Getúlio esclarece que ao contrário do que se lê, hoje, em seu Diário lançado em 1995, em dois volumes, numa co-edição Siciliano/FGV, quando do ataque integralista de 1938 ao Palácio Guanabara, que resultou duas baixas na guarda palaciana, um soldado e um investigador, em um total, não mais, de quatro ou cinco patrulheiros, “Dutra não me socorreu”.

A seguir: “Surgiria um salvador da pátria, que seria um general” ...



Vargas vive - IV -

Instruídos pela Embaixada alemã, os atacantes passaram toda uma madrugada à procura de ângulos pelo palácio dos quais pudessem alvejar o presidente, que deixara seus aposentos, já caminhando por um dos corredores com um revólver na mão direita e um cinto de balas na esquerda.Alzirinha, Alzira Vargas, também armada, e já havia clareado, ao divisar junto ao muro um homem vestido de branco logo pensou: “É o comandante da patrulha!” Abre a janela, acena para ele. A resposta... Um tiro de fuzil. Indo a bala “alojar-se num canto da janela, à altura de minha cabeça”.
“E o homem de branco?” -- alguém pergunta.
“Era o capitão Severo Fournier” -- disse Alzirinha assessorando o dr. Getúlio em suas memórias, parciais, ditadas aos repórteres Rubens Vidal e Mário de Almeida Lima para a Revista do Globo, de Porto Alegre, que as publicava numa edição especial em agosto de 1950.
Tão poucos homens destacados, menos, na prática, para a segurança palaciana do que, por exemplo, para “chamar automóveis”, torna-se fácil concluir, segundo Alzirinha, que os atacantes não tinham a menor intenção de marchar palácio a dentro e dar voz de prisão a Vargas, mas sim de matá-lo a certa distância, atirando para as janelas.
O general Dutra encontrava-se nas imediações do Palácio Guanabara, com uma companhia de infantaria, quem sabe aguardando a hora de acabar com os integralistas, uma vez morto o presidente! Alzirinha: “Surgiria então um herói, um salvador da pátria -- que, naturalmente, seria um general -- que se apossaria do governo”. Ainda ela: “Somente às seis da manhã é que nos livramos daquele inferno, quando tio Benjamin (Benjamin Vargas, irmão do presidente) foi avisado do ataque e se dirigiu para o Guanabara com um caminhão cheio de soldados”.
Estamos, porém, no ano 2006, um ano eleitoral. Ou, precisamente, será mesmo?, em 1946. Quanto aos partidos de que se falava, e estou a imaginá-los mariposas em redor de lustres palacianos, têm ao parecer do chefe revolucionário de 1930 “a mesma substância política, social e econômica”, não sendo, pois, de estranhar “que venham a se reunir”.
-- Já na campanha deste ano? -- cutuco-o nas aparas da História.
O patrão de Alzirinha, como aquela sua filha e secretária particular o tratava, a Vargas, acaricia um havana por alguns segundos até se decidir a soltar a primeira baforada para além de minha indiscrição, referindo-se às siglas partidárias em foco:
-- São os expoentes da democracia burguesa, a velha democracia liberal, que afirma a liberdade política e nega a igualdade social.
-- Democracia liberal, hoje, dr. Getúlio, não é o capitalismo em recessão?

A seguir: O ambiente propício para as negociatas



Vargas vive - V -

-- Impera no Brasil -- ele responde em Porto Alegre (novembro de 1946) -- essa democracia capitalista, comodamente instalada na vida, que não sente a desgraça dos que sofrem e não percebem, às vezes, nem mesmo o indispensável para viver. Essa democracia facilita o ambiente propício para a criação dos trustes e monopólios, das negociatas (...), que exploram a miséria do povo. Ou a democracia capitalista, compreendendo a gravidade do momento, abre mão de suas vantagens e privilégios, facilitando a evolução para o socialismo, ou a luta se travará com os espoliados, que constituem a grande maioria, numa conturbação de resultados imprevisíveis para o futuro. A outra...
-- O senhor não soube do que aconteceu à União Soviética? -- interrompo -- E que derrubaram o Muro de Berlim? E que também derrubaram o maior cartão postal da América que eram as Torres Gêmeas? Chamuscando o Pentágono?
-- A outra...
-- E que os Estados Unidos saíram cuspindo fogo sobre o Oriente Médio? Tendo arrasado com o Iraque, além do Afeganistão?
-- A outra -- sei lá se o dr. Getúlio me ouviu ou não -- é a democracia socialista. A de mocracia dos trabalhadores. A esta eu me filio. Por ela combaterei em benefício da coletividade.
-- Mas... o senhor não está morto?
Ouve-se o tiro do suicídio do presidente, a ressoar no sentimento de cada cidadão verdadeiramente brasileiro. Oito horas e 35 minutos de 24 de agosto de 1954, Palácio do Catete. O tiro anterior, o de 5 de agosto lá pela rua Tonelero, Copacabana, fora disparado contra o jornalista Carlos Lacerda, adversário político de Vargas, por um desses pistoleiros que atiram em elefante errando o alvo, tendo atingido, mortalmente, o major (da Aeronáutica) Rubens Florentino Vaz, pelo que apurou a chamada República do Galeão.
“Tenho a impressão de me encontrar sobre um mar de lama”, desabafava o presidente logo às primeiras denúncias de envolvimento de sua Segurança no (suposto) atentado a Lacerda. E abria o Catete às investigações.
Eis o firme testemunho de Nelson Werneck Sodré: “A Lei 2004 (que criou a Petrobrás) é de outubro de 1953. Vargas não teria mais um ano de poder e de vida. Em agosto de 1954, quando, a propósito de crime comum, da alçada do delegado, articulou-se o golpe que se destinava a puni-lo (a Vargas) pelos seus pronunciamentos e pelos seus atos, três semanas foram suficientes para liquidá-lo. Três semanas em que se assistiu, novamente, a montagem e o desenvolvimento do mesmo tipo de manobra articulada à base dos meios de comunicação de massa, sob controle das forças antinacionais"...


Vargas vive - VI -

Foi ao saber-se deposto que Getúlio Vargas não hesitou em acionar o gatilho contra o próprio peito, uma vez redigida para essa eventualidade a sua carta-testamento, que é o maior libelo já inscrito na História da América Latina contra “grupos econômicos e financeiros internacionais”.
Num artigo que escreveu logo após o suicídio de Vargas e recusado, meses a fio, pela grande imprensa, até como matéria paga, só em agosto de 1955 publicado, no Jornal de Debates, Mattos Pimenta denunciava que ”o imenso poder econômico da Standard Oil” conseguira finalmente repetir em nosso país, “em outro estilo, as deposições ocorridas na Venezuela (Rômulo Gallegos) e no Irã (Mossadegh)”.
Em discurso dirigido aos trabalhadores, pronunciado a 1º de maio de 1951 em Volta Redonda, o presidente Vargas declarava: “Nesta parada cívica em que me tivestes ao vosso lado congregam-se dois esteios da nossa confiança no futuro do país: o advento de uma ordem social mais justa e o começo da grande indústria. Emancipação do trabalhador pelo reconhecimento dos seus direitos, emancipação econômica através da formação de uma indústria de base. Basta Volta Redonda para sagrar um governo de empreendimentos e realizações. Monumento que desafia a passagem dos anos, é um marco da nossa independência econômica”(...)
Passam-se os anos, e Volta Redonda foi a primeira a cair. No governo de Itamar Franco, e praticamente pelas mãos do sociólogo Fernando Henrique Cardoso, que era o ministro da Fazenda. Já no governo de Cardoso cai a Vale do Rio Doce, seguindo-se a abertura do mapa do imensurável tesouro do Brasil -- via Internet -- aos tentáculos da “alta finança”, diria Vargas, e depois de ter sido quebrado o monopólio estatal do petróleo: o passo de ganso para a entrega da Petrobrás ao garrote da liberália, o neoliberalismo, que se rege por uma doutrina (calvinista) norte-americana do século XIX, a do “destino manifesto”, calcada na dos “anjos (vitorianos) da paz”. Eram os piratas de S.M. a Rainha dos Mares, o Reino Unido, em franca vilegiatura por terras banhadas pelo rio de la Plata.
Aqui no Brasil, o primeiro herdeiro político de Getúlio Vargas: João Goulart, o Jango, que retomaria, com as denominadas Reformas de Base, o projeto de libertação econômica, social e política do país das garras do imperialismo, é apeado do poder através de uma conspiração internacional cujos botões logísticos se achavam instalados na embaixada americana e sua rede de consulados. O segundo e último herdeiro, Leonel de Moura Brizola, mal conseguiu alçar vôo -- morrendo na praia... Por culpa de nossas próprias esquerdas de Ipanema, que ajudaram o sistema dominante a enterrar de vez o trabalhismo nacional.
Posto tudo isso, pergunta-se: -- Terá valido o sacrifício de Vargas?

Populismo x Oligarquia
-- I -- por Fernando Henriques Gonçalves


O populismo da era Vargas, praticamente sinônimo de trabalhismo, criado e alimentado pelo caudilho do Rio Grande a fim de fazer frente ao udenismo -- com o Partido Social Democrático (PSD), também de sua criação, na retaguarda -- está de volta à mídia.
Em particular, à cabeça de políticos do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), sem nada a ver com o antigo PSD, que Getúlio Vargas pusera em cena, sob seu comando, para atender a parte da classe média, aos conservadores, às elites, enfim, pelo menos ao primeiro tato, a uma clientela de perfil udenista.
Basicamente, com o propósito de tirar votos da União Democrática Nacional (UDN), no que foi bem sucedido; nesses termos --eleitorais, apenas. Ao partido que tinha por lema uma frase atribuída a Thomas Jefferson(1): O preço da liberdade é a eterna vigilância, com Carlos Lacerda à testa, caberia o papel de armar ciladas contra Getúlio, sem imaginar que uma delas o levaria ao suicídio; mais apropriado, ao sacrifício, sob intensas, audaciosas, sufocantes pressões da Standard Oil por ter o presidente nacionalista instituído o monopólio estatal do petróleo e criado a Petrobrás.
Ao suicídio -- para não sofrer a desonra de ser preso e de “apodrecer”, como queria Lacerda, na república do Galeão (2).
(1) Presidente dos EUA em dois mandatos sucessivos, tendo antes, como parlamentar, presidido a comissão redatora da Ata da Independência.
(2) Denominação dada, em 1954, à Base Aérea do Galeão, onde a Aeronáutica instaurou, indevidamente, um inquérito policial-militar a fim de apurar responsabilidades na morte do major Rubens Florentino Vaz, da FAB, que reagira a um estranho atentado a Carlos Lacerda -- atingido de raspão num pé, segundo testemunhas. O major, afirma o jornalista Mauro Santayana, morrera não em serviço de rotina mas como “guarda-costas afetivo de um político da oposição”. Assim. O IPM foi instaurado, na verdade, já com a intenção de levar Getúlio, uma vez deposto, preso para a república do Galeão, o que só não se consumou devido ao gesto extremo do presidente. A morte de Vaz fora do seu expediente na Base Aérea, portanto, era um caso de polícia civil.
Agora, aos primeiros passos de um novo século, nunca se falou tanto em populismo no Brasil, quando se aproximam as eleições da maior importância geopolítica em toda a História republicana. Estarão em jogo ou em risco, a depender da direção dos ventos da política brasileira, ainda eivada de certos vícios, de herança oligárquica, valores culturais que se sobrepõem aos intrinsecamente econômicos; estes, deificados por governos de tendência social-democrata(3).
(3) O PSDB é fruto da Social Democracia européia, que Roberto Mangabeira Unger, em outubro de 2004, via como “um ídolo de barro”.

Populismo x Oligarquia
-- II --

Conquanto o partido do presidente Luís Inácio Lula da Silva tenha, em suas origens, voltado as costas ao trabalhismo de Vargas, Jango e Brizola, evitando, inclusive, até estes nossos dias, tocar na velha doutrina dos trabalhadores brasileiros, está-se diante de uma questão com duas opções apenas e inconciliáveis: entregar de vez o Brasil ao Império Americano, através da Alca, Área de livre comércio das Américas, ou manter o compromisso firmado na Constituição de 1988: “ buscar a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”.
Através do Mercosul, Mercado Comum do Sul, que é uma realidade, agora com um quadro de sócios maior devido ao ingresso da Venezuela de Hugo Chávez, da Bolívia de Evo Morales, e que a social democracia tucana não digere de maneira alguma, sem falar na ilha caribenha de Fidel Castro, ao passo que a Alca mal existe no papel.
O presidenciável Geraldo Alckmin já declarou que sua opção é pelo multilateralismo econômico, por entender ser esta a tradição brasileira. Resumindo: um candidato conservador, ao gosto da Casa Branca, sendo provável que o seja, também, da União Européia, com algumas exceções discretas dentro do bloco. E do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, apesar dele considerar conservadoras, quando eram verdadeiramente progressistas, as idéias que impulsaram o nosso país nos campos social, econômico e cultural lá pelos picos da era Vargas, a mais produtiva e revolucionária, patriótica, já vivida pelos brasileiros.
Uma era populista? Sim. Na introdução de um ensaio de Nelson Werneck Sodré, Populismo - a confusão conceitual, Eduardo Chuahy destaca que já em 1931 Getúlio legalizava a “luta pelas reivindicações operárias” e iniciava o “processo de estatização dos setores básicos da economia que anteriormente se encontravam nas mãos das oligarquias”, tendo sido criados, por essa época, o Conselho Federal do Café e o Instituto do Cacau. E que, a par disso, decretava a “moratória da dívida externa, para dois anos depois negociar seu pagamento em melhores condições, preservando assim as riquezas nacionais”.
Em 1932, pelas mãos de Gegê, o trabalhador conquista a Carteira de Trabalho, a jornada de oito horas, o salário igual para trabalho igual e a licença-maternidade; em 1933, tem regulamentadas as férias anuais. Ainda em 33, Getúlio revoga concessões de terras da Amazônia, feitas antes dele, a empresas norte-americanas e canadenses. E, em 34, promulga o Código de Minas e o de Águas, como explica Chuahy, “garantindo a nacionalização das riquezas do subsolo e incorporando-as ao patrimônio nacional”.
Graças ao populismo de Vargas.