sábado, 29 de novembro de 2008

Os fantasmas de lençol (1)



A primeira operação de guerra psicológica dos Estados Unidos na América Latina e o Caribe, se não das primeiras operações, foi desfechada contra Cuba, entre fins do século XIX e começo do século XX. Explicada em 1906 pelo então presidente Franklin Delano Roosevelt, na III Conferência Pan-Americana, que se realizou no Rio de Janeiro, deste modo:
“Não temos outra saída que não seja a intervenção. Isso convencerá os idiotas suspeitos na América do Sul de que, quando desejarmos, poderemos intervir, e que nós estamos sedentos de terras”.
A Revolução Russa não havia acontecido ainda. Portanto, aquele tipo de guerra que crescera na estufa da Doutrina Monroe, doutrina concebida em 1823 pelo presidente James Monroe(2), era por assim dizer meramente pragmática, sem o húmus ideológico, ou contra-ideológico -- quando se tratasse de ideologia comunizante --, que alimentaria mais tarde o jardim-suspenso da política do big stick; esta política tornou-se o livro de cabeceira da CIA.
Mas é somente a partir dos anos 50, no início da década, que os Estados Unidos pegam na tesoura, fazem os olhos no lençol, vestem-no e saem às ruas da noite latino-americana encenando a grande ameaça ao nosso continente: o comunismo. O fantasma de lençol transitou primeiro na Guatemala, por causa do nacionalismo (traduzido como marxismo) do governo Jacobo Arbens, que tivera o topete de substituir, no poder local, a United Fruit Company. A guerra psicológica já incorporando, a um tempo, ideologia e o big stick. Assim, a dar-se crédito ao que publicou a revista Stern, editada na Alemanha Ocidental, para o assalto à Guatemala de Arbens e seus compatriotas a CIA estabelecera “campos secretos” de treinamento de mercenários em Honduras e na Nicarágua.
Isso, obviamente, muitos anos depois do assalto ao México, que teve como pano de fundo a famosa campanha Hearst, empreendida através de uma cadeia de jornais de propriedade daquele capitão de imprensa, em especial contra Pancho Villa.
Na passarela da boa vizinhança já desfilaram semblantes vários de dominação (periférica) para autopreservação da comunidade de interesses do filho gigante da Inglaterra, alguns bem charmosos, como a Aliança para o Progresso. Arrancaram aplausos e/ou aleluias a Doutrina Johnson, a Doutrina Nixon -- a do nixonicídio segundo o Prêmio Nobel chileno Pablo Neruda -- a Doutrina Ford etc. No primeiro quartel do século XX o então presidente Wilson, com mandato até 1921, chegara a dizer que “o maior nacionalista é aquele que quer ver sua pátria (a dele, naturalmente) encabeçando todos os Estados do mundo”.
Brasil, Bolívia, Uruguai, Chile... No livro Os Estados Unidos e o Chile: o imperialismo e a derrubada do governo Allende, escrito a quatro mãos, seus autores, o norte-americano J. Petras e o australiano M. Morley, observaram:
“Washington realizou com sangue frio uma política de bloqueio, sabotagem e outras formas de luta dirigidas para a derrubada do governo legalmente eleito. (Informações baseadas em depoimentos de dirigentes da CIA e de outras organizações prestados à Subcomissão para Assuntos Interamericanos do Congresso dos EUA são encontradas em já extensa bibliografia, por exemplo na obra de K. A. Katchaturov, editada pela Ciivilização Brasileira, A Expansão Ideológica dos EUA na América Latina).
E pensar que a chamada guerra psicológica -- hoje acionada por Washington na América Latina, paralelamente, quando não à diplomacia do dólar (que consiste na substituição de projéteis por capital), à diplomacia militarista (que se rege pela política do big stick) -- teve origem na Inglaterra, um reino que em guerra contra a República Argentina, e não contra uma junta militar, pela ótica bastante estranha de pequena parcela, ainda bem, da imprensa brasileira, abriga um regime civilizado. Foi de lá que em princípios do século XIX partia mais uma expedição de “anjos da paz”, como os ingleses se intitulavam, rumo ao Atlântico Sul, propondo-se a “libertar” os nativos da região -- eles aportaram em Montevidéu -- da “escravidão” de Espanha, “essa nação arrogante e vendida”, conforme escreveram num jornal bilíngue, em inglês e espanhol, o Southern Star, que se apressaram a lançar após o desembarque. “Os ingleses chegam não como conquistadores, mas como defensores” -- publicaram. Estava declarada a guerra psicológica.
Talvez este episódio baste ou sirva para explicar a virtual solidariedade da Espanha com a Argentina, no momento atual, tendo o chanceler espanhol Jaime de Pinies nas Nações Unidas considerado a posição britânica no conflito pelas Malvinas um “grave erro histórico”. Para a embaixadora dos Estados Unidos Jeane J. Kirkpatrick(3) no Conselho de Segurança da ONU, “nós temos uma velha aliança, e mais que isso, as mais estreitas relações de amizade com a Grã-Bretanha, país de que derivam nossas instituições políticas, legislativas e lingüísticas”. E para o embaixador do Panamá Jorge Illueca, o sacrifício de soldados argentinos, os tombados em batalha, “não será em vão, porque desta crise emergirá uma nova América Latina”.
Aí é que o carro pega, e começa a grande guerra ideológica, à sombra de uma “velha aliança”, dentro da história do bom filho à casa torna: a casa da mãe Inglaterra. Para essa guerra, tão ou mais suja que a das Malvinas, os povos latino-americanos têm de estar alertas.Os fantasmas de lençol não dormem.

(1) O Fluminense, caderno Encontro, Autor e Livro, 30 e 31 de maio de 1982
(2) Cumpriu dois mandatos presidenciais, de 1817 a 1825; aparece na galeria de presidentes, na Casa Branca, como democrata-republicano.
(3) Representou os EUA na ONU de 1981 a 1985, no 1º governo de Ronald Reagan.

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