sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Vargas vive




Vargas vive - I -

Vargas rompe silêncio de mais de cinco décadas:




“A alta finança está governando o país”




por Fernando Henriques Gonçalves





Uma entrevista historiografada
com Getúlio Dornelles Vargas,
cujo pensamento a respeito da questão
social, econômica, política no Brasil
passa à atualidade, fielmente
aqui reproduzido. Vêmo-lo indignar-se
com a magia de cifras a que lança mão
o poder econômico-financeiro
para iludir o povo. Sobretudo, para
submeter as classes trabalhadoras
a uma escravidão monetária,
fazendo-as renunciar às “conquistas
sociais”: leis trabalhistas, previdenciárias,
o próprio d i r e i t o ao trabalho.
E ele abre fogo contra a “velha democracia
liberal”: altos juros, baixos salários.


Vargas vive - II -

“A alta finança estendeu seus tentáculos sobre o Brasil e está sugando tudo. E o governo toma as medidas em defesa dos interesses dessa política, que não pode ser uma política de Estado, porque é nociva, é contraproducente e agressiva às forças do trabalho e benéfica somente às forças da especulação”.
Assim reagiu o ex-presidente Getúlio Vargas à abertura, desvairada a seu ver, do país ao capital estrangeiro, dando-me ele a impressão de oscilar entre os anos 90, ainda na era Cardoso, e um novo século, já no governo Lula. De todo modo, numa clara alusão à política antiinflacionária adotada de forma a movimentar os dados do jogo não raro traiçoeiro da economia na direção da meta conceitual do Estado mínimo, disse que “o que se pretende é criar o monopólio do dinheiro, destruir todas as iniciativas produtivas, sufocar o nosso povo e obrigar os operários a mendigar trabalho”.
Como a relembrar o “malabarismo de cifras” do governo Dutra, no último quatriênio da década de 40, a supervalorização do capital estrangeiro aplicado no Brasil, Vargas estaria agora repetindo, já nestes tão conturbados começos do século XXI, observações que fizera, naquela época, ao discursar em maio de 1947 da tribuna do Senado. Foi enfático: “Não tínhamos, no Brasil (antes do governo Dutra, ou antes da era Cardoso?), o problema dos desempregados.(...) Os operários sofrerão as conseqüências da crise com o desemprego. Haverá mais oferta de braços do que procura. E os trabalhadores irão, pela fome, pela necessidade imediata e premente, renunciando às conquistas sociais e voltando à condição de escravos dos que possuem dinheiro”.
Pelo entendimento de Getúlio Vargas, “a criação do monopólio do dinheiro que se está efetuando no Brasil representa uma das mais impressionantes ofensivas do poder financeiro contra a produção e contra os valores de trabalho e de iniciativa”. Vargas enfatiza que “a alta finança (sic) está governando o país”.
Diz que “as forças da produção estão sendo subjugadas e aniquiladas”, acrescentando: “Não se pensa mais em produção; só se está cuidando no Brasil em fazer o jogo dos grupos financeiros que, possuidores de dinheiro, desejam valorizá-lo a todo custo com o sacrifício dos que não o possuem e dele precisam para desenvolver sua atividade”.
A seguir, observa que, “no choque entre as forças das finanças e da indústria, quem sofre é o trabalhador, condenado brutalmente, por essa luta, a conhecer misérias e angústias maiores do que as que já tinha de suportar. Nega-se ao trabalhador uma parcela de dinheiro para reajustamento de seus salários, alegando-se que isso afetará o custo da produção. Mas aumenta-se a parcela de juros do dinheiro”.
A seguir:
Dutra não socorre Vargas em 1938
e retoma o Estado Novo já em 1946.


Vargas vive - III -


Vargas em Porto Alegre (29 de novembro de 1946) diante de um carrossel de “partidos que, com nomes diferentes, significam a mesma coisa”. Estaria ele se lembrando de quando (7 de janeiro de 1938) comparava a “bronzes partidos”, que haviam perdido a sua sonoridade, as agremiações políticas dissolvidas no advento do Estado Novo? Esse regime, fruto de uma tramóia da Ação Integralista Brasileira, que à sombra do seu (apócrifo) Plano Cohen, o plano de uma espécie de Revolução Russa no Brasil, atribuído, portanto, aos comunistas, iniciara a sua marcha rumo ao poder, e lá talvez chegasse, ao topo, se Vargas não tivesse apanhado o pião discricionário na unha, durou de 10 de novembro de 1937 a 29 de outubro de 45.
O estadonovismo teve como condestável o então general Eurico Gaspar Dutra, elevado mais tarde ao marechalato, e como chefe de Polícia o capitão Filinto Müller, o terror em pessoa.
Dutra retomaria extraoficialmente o Estado Novo em 1946 (lembrai-vos do comício dissolvido a fogo de artilharia e a patas de cavalos em 23 de maio daquele ano no Largo da Carioca, Rio, e do retorno do PCB (Partido Comunista Brasileiro) à clandestinidade, e do rompimento de relações do Brasil com a União Soviética!), o Estado Novo agora voltado a escusos interesses externos. O fechamento dos cassinos, obra de dona Santinha, a Primeira Dama, serviu de cortina de fumaça.
E aí vai o paradoxo à primeira vista: fora ele, Dutra, o candidato de Getúlio Vargas, que supunha estar matando dois coelhos com uma só cajadada. Um era o brigadeiro Eduardo Gomes, candidato oficial da “alta finança”, e o outro, o próprio general Dutra, em quem Vargas não confiava; por isso mesmo procurava mantê-lo sempre por perto a fim de vigiá-lo melhor, e já pensava em dar a volta por cima nas eleições de 1950, como de fato aconteceu.
Entretanto, por ter entrado no Catete, em 1951, pelas mãos do povo e com o povo, ao qual abrira as portas do palácio no dia de sua posse na presidência da República, viu-se naturalmente Vargas na obrigação de tratar, a partir de então, sempre de frente, e não com a cautela de outras luas, os magnos problemas nacionais, e acaba pisando num clamoroso formigueiro. Um dos conspiradores com assento na reunião ministerial da madrugada de 24 de agosto de 1954: Dutra, eminência parda do ciclo de Vargas.
Sem que eu lhe perguntasse, o dr. Getúlio esclarece que ao contrário do que se lê, hoje, em seu Diário lançado em 1995, em dois volumes, numa co-edição Siciliano/FGV, quando do ataque integralista de 1938 ao Palácio Guanabara, que resultou duas baixas na guarda palaciana, um soldado e um investigador, em um total, não mais, de quatro ou cinco patrulheiros, “Dutra não me socorreu”.

A seguir: “Surgiria um salvador da pátria, que seria um general” ...



Vargas vive - IV -

Instruídos pela Embaixada alemã, os atacantes passaram toda uma madrugada à procura de ângulos pelo palácio dos quais pudessem alvejar o presidente, que deixara seus aposentos, já caminhando por um dos corredores com um revólver na mão direita e um cinto de balas na esquerda.Alzirinha, Alzira Vargas, também armada, e já havia clareado, ao divisar junto ao muro um homem vestido de branco logo pensou: “É o comandante da patrulha!” Abre a janela, acena para ele. A resposta... Um tiro de fuzil. Indo a bala “alojar-se num canto da janela, à altura de minha cabeça”.
“E o homem de branco?” -- alguém pergunta.
“Era o capitão Severo Fournier” -- disse Alzirinha assessorando o dr. Getúlio em suas memórias, parciais, ditadas aos repórteres Rubens Vidal e Mário de Almeida Lima para a Revista do Globo, de Porto Alegre, que as publicava numa edição especial em agosto de 1950.
Tão poucos homens destacados, menos, na prática, para a segurança palaciana do que, por exemplo, para “chamar automóveis”, torna-se fácil concluir, segundo Alzirinha, que os atacantes não tinham a menor intenção de marchar palácio a dentro e dar voz de prisão a Vargas, mas sim de matá-lo a certa distância, atirando para as janelas.
O general Dutra encontrava-se nas imediações do Palácio Guanabara, com uma companhia de infantaria, quem sabe aguardando a hora de acabar com os integralistas, uma vez morto o presidente! Alzirinha: “Surgiria então um herói, um salvador da pátria -- que, naturalmente, seria um general -- que se apossaria do governo”. Ainda ela: “Somente às seis da manhã é que nos livramos daquele inferno, quando tio Benjamin (Benjamin Vargas, irmão do presidente) foi avisado do ataque e se dirigiu para o Guanabara com um caminhão cheio de soldados”.
Estamos, porém, no ano 2006, um ano eleitoral. Ou, precisamente, será mesmo?, em 1946. Quanto aos partidos de que se falava, e estou a imaginá-los mariposas em redor de lustres palacianos, têm ao parecer do chefe revolucionário de 1930 “a mesma substância política, social e econômica”, não sendo, pois, de estranhar “que venham a se reunir”.
-- Já na campanha deste ano? -- cutuco-o nas aparas da História.
O patrão de Alzirinha, como aquela sua filha e secretária particular o tratava, a Vargas, acaricia um havana por alguns segundos até se decidir a soltar a primeira baforada para além de minha indiscrição, referindo-se às siglas partidárias em foco:
-- São os expoentes da democracia burguesa, a velha democracia liberal, que afirma a liberdade política e nega a igualdade social.
-- Democracia liberal, hoje, dr. Getúlio, não é o capitalismo em recessão?

A seguir: O ambiente propício para as negociatas



Vargas vive - V -

-- Impera no Brasil -- ele responde em Porto Alegre (novembro de 1946) -- essa democracia capitalista, comodamente instalada na vida, que não sente a desgraça dos que sofrem e não percebem, às vezes, nem mesmo o indispensável para viver. Essa democracia facilita o ambiente propício para a criação dos trustes e monopólios, das negociatas (...), que exploram a miséria do povo. Ou a democracia capitalista, compreendendo a gravidade do momento, abre mão de suas vantagens e privilégios, facilitando a evolução para o socialismo, ou a luta se travará com os espoliados, que constituem a grande maioria, numa conturbação de resultados imprevisíveis para o futuro. A outra...
-- O senhor não soube do que aconteceu à União Soviética? -- interrompo -- E que derrubaram o Muro de Berlim? E que também derrubaram o maior cartão postal da América que eram as Torres Gêmeas? Chamuscando o Pentágono?
-- A outra...
-- E que os Estados Unidos saíram cuspindo fogo sobre o Oriente Médio? Tendo arrasado com o Iraque, além do Afeganistão?
-- A outra -- sei lá se o dr. Getúlio me ouviu ou não -- é a democracia socialista. A de mocracia dos trabalhadores. A esta eu me filio. Por ela combaterei em benefício da coletividade.
-- Mas... o senhor não está morto?
Ouve-se o tiro do suicídio do presidente, a ressoar no sentimento de cada cidadão verdadeiramente brasileiro. Oito horas e 35 minutos de 24 de agosto de 1954, Palácio do Catete. O tiro anterior, o de 5 de agosto lá pela rua Tonelero, Copacabana, fora disparado contra o jornalista Carlos Lacerda, adversário político de Vargas, por um desses pistoleiros que atiram em elefante errando o alvo, tendo atingido, mortalmente, o major (da Aeronáutica) Rubens Florentino Vaz, pelo que apurou a chamada República do Galeão.
“Tenho a impressão de me encontrar sobre um mar de lama”, desabafava o presidente logo às primeiras denúncias de envolvimento de sua Segurança no (suposto) atentado a Lacerda. E abria o Catete às investigações.
Eis o firme testemunho de Nelson Werneck Sodré: “A Lei 2004 (que criou a Petrobrás) é de outubro de 1953. Vargas não teria mais um ano de poder e de vida. Em agosto de 1954, quando, a propósito de crime comum, da alçada do delegado, articulou-se o golpe que se destinava a puni-lo (a Vargas) pelos seus pronunciamentos e pelos seus atos, três semanas foram suficientes para liquidá-lo. Três semanas em que se assistiu, novamente, a montagem e o desenvolvimento do mesmo tipo de manobra articulada à base dos meios de comunicação de massa, sob controle das forças antinacionais"...


Vargas vive - VI -

Foi ao saber-se deposto que Getúlio Vargas não hesitou em acionar o gatilho contra o próprio peito, uma vez redigida para essa eventualidade a sua carta-testamento, que é o maior libelo já inscrito na História da América Latina contra “grupos econômicos e financeiros internacionais”.
Num artigo que escreveu logo após o suicídio de Vargas e recusado, meses a fio, pela grande imprensa, até como matéria paga, só em agosto de 1955 publicado, no Jornal de Debates, Mattos Pimenta denunciava que ”o imenso poder econômico da Standard Oil” conseguira finalmente repetir em nosso país, “em outro estilo, as deposições ocorridas na Venezuela (Rômulo Gallegos) e no Irã (Mossadegh)”.
Em discurso dirigido aos trabalhadores, pronunciado a 1º de maio de 1951 em Volta Redonda, o presidente Vargas declarava: “Nesta parada cívica em que me tivestes ao vosso lado congregam-se dois esteios da nossa confiança no futuro do país: o advento de uma ordem social mais justa e o começo da grande indústria. Emancipação do trabalhador pelo reconhecimento dos seus direitos, emancipação econômica através da formação de uma indústria de base. Basta Volta Redonda para sagrar um governo de empreendimentos e realizações. Monumento que desafia a passagem dos anos, é um marco da nossa independência econômica”(...)
Passam-se os anos, e Volta Redonda foi a primeira a cair. No governo de Itamar Franco, e praticamente pelas mãos do sociólogo Fernando Henrique Cardoso, que era o ministro da Fazenda. Já no governo de Cardoso cai a Vale do Rio Doce, seguindo-se a abertura do mapa do imensurável tesouro do Brasil -- via Internet -- aos tentáculos da “alta finança”, diria Vargas, e depois de ter sido quebrado o monopólio estatal do petróleo: o passo de ganso para a entrega da Petrobrás ao garrote da liberália, o neoliberalismo, que se rege por uma doutrina (calvinista) norte-americana do século XIX, a do “destino manifesto”, calcada na dos “anjos (vitorianos) da paz”. Eram os piratas de S.M. a Rainha dos Mares, o Reino Unido, em franca vilegiatura por terras banhadas pelo rio de la Plata.
Aqui no Brasil, o primeiro herdeiro político de Getúlio Vargas: João Goulart, o Jango, que retomaria, com as denominadas Reformas de Base, o projeto de libertação econômica, social e política do país das garras do imperialismo, é apeado do poder através de uma conspiração internacional cujos botões logísticos se achavam instalados na embaixada americana e sua rede de consulados. O segundo e último herdeiro, Leonel de Moura Brizola, mal conseguiu alçar vôo -- morrendo na praia... Por culpa de nossas próprias esquerdas de Ipanema, que ajudaram o sistema dominante a enterrar de vez o trabalhismo nacional.
Posto tudo isso, pergunta-se: -- Terá valido o sacrifício de Vargas?

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