sexta-feira, 28 de novembro de 2008

O cérebro: a cavaleiro do coração

o fundamento de uma
sólida felicidade
humana segundo Pavlov



O cérebro: a cavaleiro do coração (**)



O predomínio da dor sobre o prazer, dentro da velha conceituação teológica de dor como sendo o caminho que invariavelmente levaria o Homem a realizar-se, é de supor que remonta ao advento das guerras, já que historiadores imaginam terem sido os árias primitivos uma comunidade feliz, do primeiro ao último ano de vida.Aflorou a civilização, mas temperada no sangue das lutas fratricidas. Descartes disse:”Para alcançar a verdade é preciso, uma vez na vida, desfazermo-nos de todas as opiniões que recebemos e reconstruir, de novo e desde os fundamentos, todos os sistemas de nossos conhecimentos.” Foi o que de certo modo fez Ivan Petrovitch Pavlov, Prêmio Nobel de Medicina – 1904.Ao assentar a base dos conhecimentos exatos sobre a função nervosa superior, no princípio deste século**, dissecando o mecanismo fisiológico e não puramente psíquico dos reflexos (aqueles que nascem conosco e os que adquirimos durante a vida) em face dos estímulos do meio-ambiente (positivos e negativos), Pavlov apresentou o cérebro humano como bem parecido a uma fábrica. Senão vejamos o que ele diz em um dos estudos reunidos sob o título geral Os reflexos condicionados aplicados à Psicopatologia e à Psiquiatria (Ediciones Pueblos Unidos, Montevidéu, 1906):“Se todo o sistema nervoso central se divide em duas partes – aferente e eferente -, o córtice dos hemisférios representa a seção aferente isolada. Nela se realizam exclusivamente a análise e a síntese superiores dos estímulos recebidos, e, dali, as combinações já concluídas se dirigem à seção eferente. Dito de outra forma, a seção aferente é ativa, por assim dizer criadora, e a eferente é passiva, executiva.”Assim como uma fábrica é movimentada por projetistas e examinadores ou selecionadores da matéria-prima e pelo pessoal encarregado de executar o plano de obras, o nosso cérebro está freqüentemente criando reflexos em função dos estímulos que recebe do meio que o circunda e que, uma vez analisados, são entregues às suas células operárias. Se o empregado braçal é o último a responder pelo fracasso de um empreendimento, pelo que são diretamente responsabilizados os organizadores, o cérebro funciona regularmente até o ponto em que se mantêm em certo equilíbrio os processos de excitação e inibição: os pratos da balança geral do organismo. Isto, porque o cérebro comanda todos os demais órgãos, vinculando-os ao infinito mundo circundante, da mesma forma que à fábrica é atribuído o papel de instrumento propulsor do bem-estar social.Para Pavlov, a quem já cognominaram o Príncipe dos Fisiologistas, o cérebro, a rigor, observado de todos os ângulos, está a cavaleiro do coração, porque a função nervosa superior é a que “distingue o Homem, de forma categórica, dos animais,colocando-o infinitamente acima de todo o reino animal.” (Aplicação ao Homem de dados experimentais obtidos nos animais).Ante a proclamação pavloviana de que eram fundamentalmente fisiológicas e não psíquicas as relações humanas, começaram a evaporar-se os castelos de pensadores cujas especulações bem poderíamos medir por estes versos de Rucker em versão de Antero de Quental:O coração tem dois quartos./ Neles moram, sem se ver,/ Num a Dor, noutro o Prazer./ Quando o Prazer, em seu quarto,/ acorda cheio de ardor,/ no seu adormece a Dor./ Cuidado, Prazer! Cautela!... / Fala e ri mais devagar... / Não vás a Dor acordar...Originariamente, a dor e o prazer moram lá em cima, no cérebro, e nem sempre em quartos separados, travando uma batalha multissecular. O que não pensará o Homem de tantas civilizações alicerçadas no sofrimento, daqui a não se sabe quanto tempo, depois que houver abdicado inteiramente da condição animal? Já de agora, o alto pensamento científico repele, em tese, toda uma escala de idéias encerradas na expressão poética de que “quem passou pela vida e não sofreu foi espectro de homem (...)”O catecismo dos idealistas dominou gerações a fio inculcando-lhes, nos grandes hemisférios cerebrais, o sofrimento como sendo o princípio de todas as coisas e o único meio para a consecução de um fim com dignidade. Mas essa voragem de reflexos criados e recriados na mente humana por estímulos fantasmagóricos serviu, pelo menos, para demonstrar que o cérebro é capaz de tudo, até de inverter os papéis mais caros da humanidade: fazer a dor sobrepor-se ao prazer.Foi perante o Congresso Médico Internacional de abril de 1903, instalado em Madri, que o soviético Ivan Pavlov expôs pela primeira vez ao mundo científico o seu trabalho sobre Psicologia e Psicopatologia experimental nos animais.“Esta será, antes de tudo – assim dirigiu-se ele ao plenário – a história de um fisiólogo que passou dos temas puramente fisiológicos ao domínio dos fenômenos chamados comumente psíquicos.”Sem entregar-se a evoluções verbais, desde logo afirmou que localizara “condições de caráter psíquico” entre as glândulas digestivas, tendo-se ocupado, durante muitos anos, da atividade normal desta função. Referiu-se, então, em particular, às glândulas salivares como sendo um órgão aparentemente de importância muito relativa mas que, estava convencido, se converteria no “objeto clássico das investigações do novo gênero.” Da premissa de que, “se se dá ao animal tipos de alimentos duros, secos, ele segrega muita saliva, e, se os alimentos são ricos em água, a secreção é bem menor”, Pavlov partiu para o estudo da extraordinária capacidade de adaptação da atividade das glândulas salivares, tomando o cão por objeto das suas experiências, para concluir que nele se manifestam reflexos constantes e exatos, “reflexos que parecem revelar inteligência, porém o mecanismo dessa inteligência está exposto com toda a clareza como a palma da mão.” Assim é que explicou tratar-se o fenômeno da adaptação ou adequação de “uma excitação exterior especial, que produz uma reação especial na substância viva.” Nada viu, contudo, de particular no fator de adaptação, “salvo a reunião precisa dos elementos de um sistema complexo entre si e desse complexo com o meio exterior”, tal como acontece a qualquer corpo inanimado – que só e x i s t e “graças ao equilíbrio de átomos isolados e de grupos de átomos entre si e de todo o seu conjunto com o meio exterior.”O princípio fundamental do organismo, seu equilíbrio interior e exterior, descoberto por Pavlov, em 1901, com base teórica nos estudos de I. Sèchenov sobre a atividade reflexa do cérebro humano, foi mais tarde consagrado como Princípio da Conexão Temporal (PCT).Não tardou que os dados colhidos das experiências pavlovianas fossem aplicados em todos os campos de atividade analítica, substituindo-se os métodos subjetivos pelos objetivos. Um pedagogo, K. Ushinski, chegara a observar que, enquanto a Medicina se apoiava “no estudo positivo do organismo humano e nos objetos da Natureza que influem nele”, a Pedagogia conformava-se “com as teorias confusas, contraditórias e fantásticas dos psicólogos sobre as quais (sic) não é possível construir nada sólido.”Em 1907 a revista Russikivrach publicava um ensaio do pediatra N. Krasnogorski sobre a fisiologia e fisiopatologia do cérebro infantil, já quando um grupo de ginecologistas, destacando-se Velvoski, Platonov e Nikolaiev, investigava as origens das dores do parto, preparando-se para proclamar que elas não passavam de reflexo condicionado nas noivas e nas mães de quase todos os tempos, através da palavra ou sugestão. Isso, porque “a palavra – quem o diz é Pavlov – é para o homem um estímulo condicionado tão real como todos os restantes comuns a ele e aos animais e de maior alcance que qualquer outro, superando qualitativa e quantitativamente a todo estímulo condicionado nos animais.”A julgar pela tradução feita do Hebraico para o Latim e do Latim para a Língua Portuguesa, do 1º Livro de Moisés chamado Gênesis, no capítulo Tentação de Eva e queda do Homem lê-se que Deus disse à Mulher:“Multiplicarei grandemente a tua dor e a tua conceição; com dor terás filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará.”O Papa Pio XII, por ocasião de um congresso de ginecologistas realizado no Palácio Apostólico do Vaticano, aduziu que, “punindo Eva, Deus não quis proibir, como não proibiu, às mães, que utilizassem os meios que tornam o parto mais fácil e menos doloroso”, e que “a Ciência e a Técnica podem, pois, utilizar as conclusões da Psicologia Experimental, da Fisiologia e da Ginecologia – como no novo método psicoprofilático – a fim de eliminar as fontes de erros e os reflexos condicionados dolorosos e de tornar o parto tão indolor quanto possível.”Foi em 1930 que o método psicoprofilático da parturição começou a ser largamente adotado nas repúblicas soviéticas, em substituição ao universal e ao hipnossugestivo. Ante a repercussão do seu êxito no Ocidente, não demorou que o francês Fernand Lamaze fosse estagiar em Leningrado, na clínica do dr. Nikolaiev, e já de volta a Paris declarou-se entusiasmado dizendo que, em 30 anos de prática obstétrica, jamais vira coisa igual.No Brasil ele foi lançado também com bons resultados, pelo dr. Hirsch Schoor, há 13 anos, em São Paulo, e em agosto de 1955 o dr. Fernando Pedrosa Filho orientava um dos primeiros partos realizados por esse processo no Rio de Janeiro. No ano seguinte, viajava para a França, a fim de aperfeiçoar-se na clínica do dr. Lamaze.O fato é que os obstetras da escola pavloviana encaram como muito natural uma mulher dar à luz com um sorriso – se bem que depois de muito esforço – uma criança que, no caso, geralmente nasce mais sadia do que as nascidas em meio às contrações irregulares, em função do reflexo paradisíaco (medo de sofrer), porquanto a nova parturiente, entrando em atividade no trabalho de seu parto, e não caindo em passividade, está alimentando de oxigênio a seu filho.A tese de que o parto, em suas origens, teria sido indolor é robustecida pelos depoimentos de sertanistas segundo os quais as índias inteiramente afastadas da civilização não padecem no ato da maternidade. O médico Ataliba Bellizi, que há tempos percorreu várias tribos do Norte e do Brasil Central pelo Serviço Nacional do Câncer, deu-me o seu testemunho disso e de que nas mais atrasadas a jovem, tão logo comunica a seus pais que vai casar, submete-se, sem o saber, a intenso tratamento para a parturição, ao caminhar léguas e léguas e até remar contra a correnteza, diariamente, para suprir a taba.Um fato curioso que o médico-sertanista presenciou numa tribo do Sul do Pará, a Uchikring: Enquanto a mulher trabalha, o seu companheiro limita-se a flanar de um lado para outro com o arco e a flecha, a pretexto de velar pela integridade da nação. Imediatamente após o nascimento de seu filho, ela volta ao trabalho e ele se recolhe à taba, entregando-se a uma dieta que consiste em comer apenas manjuara, torrada, espécie de formiga que valeria o gosto do ácido fórmico. O índio uchikring acredita que se não observar esse regime à risca ficará estéril, depois de o acometer terrível dor de cabeça.O cérebro do gentio tem dessa coisa, que enfim não é de admirar tanto – confrontada com muita que se vê no mundo civilizado.Já dizia Pavlov que somente “o completo e exato conhecimento de nosso órgão superior, o cérebro, será nosso legítimo bem e o fundamento de uma sólida felicidade humana”.



( * ) O Fluminense, pág. 4, Prosa & Verso, suplemento literário sob a direção de Marcos Almir Madeira e Sávio Soares de Sousa, 22 de outubro de 1966 Original de FERNANDO HENRIQUES GONÇALVES então editado como Reportagem Pavloviana ( ** )(Séc.XX)

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