sábado, 29 de novembro de 2008

A poesia acampou no Século de Drummond



A poesia acampou no
Século de Drummond*



Com uma musa que acabou numa feira livre de Espanha



À sua hora, Goethe notava que todo poema era de circunstância, e já no rescaldo da II Grande Guerra, tendo rebentado a Revolução Industrial, o poeta da Resistência francesa, Paul Eluard, a reconhecer, a cultivar, a desenvolver no circunstancial algo que se transporta “do particular ao geral.” Para Eluard, que adotara Liberté por musa maior, escrevendo-lhe o nome sur l’horizon, não a liberdade de circismo romano e sim a presidida em essência pelo direito inalienável do Homem ao pão e ao trabalho, a circunstância exterior deve ajustar-se à interior, como se o poeta por si mesmo a tivesse produzido; de l’horizon d’un homme à l’horizon de tous.
Não parece ser outro o núcleo de raciocínio de que Carlos Drummond de Andrade, agora aos 80 anos bem completados, se nutre desde as primeiras publicações em livro: Alguma Poesia (1930), Brejo das Almas (1934), Sentimento do Mundo (1940), A Rosa do Povo (1945).
Todo povo tem sua rosa, e a interpretação e/ou projeção drummondiana deste componente da flora política reflete uma consciência por igual política, conquanto, e necessariamente sim, adaptada ao (anti) metro peculiar da arte, sem o “ismo” dos montes Parnaso – motivo para reavaliações estéticas que sejam, baseado no fato de que por lá pastavam cavalos com asas, um deles o Pégaso, fruto do sangue jorrado da cabeça de Medusa: decepada por Peseo, que empunhara o escudo de Minerva. Se pastavam, existiam; e por que duvidar então da ubiquidade das musas! Umas, líricas; outras, heróicas.
Assim também são os bois do fazendeiro do ar.

Deus já andava triste, a se perguntar por que fizera o mundo, os anjos não disfarçando aquele olhar embora um tanto maroto de reprovação – as plumas caindo: “A graça, a eternidade, o amor” – quando Drummond encontrou-se pela primeira vez com José. Não o de versículo, este ainda que unibíblico e seriamente envolvido no caso da vinda do Messias feito cada boi do continente itabirano, um continente suspenso – circum-ambiente, no entanto inviscerado na realidade social. Mas o José “sozinho no escuro”, anônimo e múltiplo, desses de linha de produção econômica, com passado e presente de chão batido e um futuro que mais tarde se saberia ser paradisíaco. Literalmente, a Nova casa de José, o azul das paredes desbotado, ao menos na chegada.
O poeta de Itabira tinha armado coisas além de uma equação formal. Não se fizera boxeador da lingüística. E nem podia ter agido de outra maneira, porque o José “sem nome”, ou com uma profusão de nomes – portanto de difícil qualificação, desencantara-se com os adjetivos de uma retórica tão do paladar de classes dominantes.
Logo, Drummond não desertou. Não esqueceu que “o espião janta conosco”. O boi e o anjo, de mãos dadas na sua poesia. Ele sabe, e teve o tutano de proclamar que o boi é anterior ao tráfego. O boi José inclusive, ou principalmente este. E que a sua Itabira do epicentro das injustiças sociais poderá um dia levantar-se e, tendo-se invertido as posições, cuspir todas as suas inquietações, todas as suas perplexidades.
O boi, o anjo: estrelas de primeira grandeza na simbologia drummondiana. Estanques apenas a olho nu, e até mesmo neste plano, o do pisca-pisca, como se o poeta estivesse alertando para certas verdades escamoteadas em caminho de terra firme; no meio, a pedra que chegou a provocar menos tropeços do que palavrão. Em termos precisos os dois símbolos-mores da obra de Drummond, entre os quais pode-se admitir que fique a pedra como referencial de vida, ou de um ceticismo singular – que incute esperanças, são projeções de comportamento e mobilidade humanos, de tudo em movimento. Daí esta síntese de A Rosa do Povo:

No beco, / apenas um muro,/ sobre ele a polícia./ No céu da Propaganda / aves anunciam / a glória./ No quarto, / irrisão e três colarinhos sujos.

Do céu devastado de Eluard ao céu desfeito, porém logo refeito, de Drummond. Não o céu da propaganda, naturalmente, com o qual o poeta nada tem que ver.
E certo é que a poesia acampou no Século de Drummond. Com Lorca, Neruda, Alberti, Vinícius, João Cabral incelençando Vida e Morte Severina. Também nascido em 1902, como Carlos Drummond de Andrade, e que recentemente, na Espanha, ocupou a presidência de honra do VI Congresso Mundial de Poetas, evento, aliás, praticamente ignorado no Brasil (será por causa do vernáculo? ou, ipso facto, de alguma dúvida mesmo a respeito de nossa localização geográfica?),
Rafael Alberti a panfletar na virada dos anos 50:

Pueblos del mundo, pueblos! El poeta / hoy ya no canta, grita enfurecido.

Pablo Neruda não faria por menos em louvor da Revolução chilena, na sua Incitação ao Nixonicídio, num livro que saiu pela Francisco Alves em tradução de Olga Savary.
Do maranhense Ferreira Gullar tivemos o Poema Sujo; de Affonso Romano de Sant’Anna, Que país é este? Reeditam-se antologias de Manuel Bandeira, Cecília Meirelles com o seu Romanceiro da Inconfidência, Vinícius de Moraes com a sua Arca de Noé em separado e já em 11ª edição pela José Olympio, antologiados também Mauro Motta, Mário da Silva Brito e o próprio aniversariante, CDA, entre muitas outras vozes. Não faltam os recados de um Thiago de Melo, de Geir Campos – este capixaba que depois de uma Tarefa encontrou tempo para um Cantar de Amigo ao Outro Homem da Mulher Amada -, de Ledo Ivo, alagoano de Maceió, que aprendeu “a ler a terra” (ver A Noite Misteriosa, ed. Record) e que, por isto mesmo, não discrimina entre o cavalo e o seu ferrador. Os cachorros perseguem os ratos do mato / e promulgam a lei do mundo. Os perus em busca do sol no terreiro. Como os demagogos nos comícios e os agonizantes nos hospitais / eles falam uma linguagem espalhafatosa, limitada pela morte. Demonstrações de exercício poético sem compromissos escolásticos, assegurada portanto a integridade estilística. A evidência, a constatação de uma autodefesa contra modismos, estes, no geral, de natureza cíclica. E o modista alimenta uma única pretensão, que é a de inovar – na superfície do texto. No entanto, nada de novo sobre a terra, exceto boas semeaduras, que puxam as boas colheitas, o que, aliás, já é tudo.
De qualquer forma, não se despreze nunca o testemunho de um poeta, contanto que o poeta em referência tenha verdadeiramente algo a dizer e em linguagem adequada. Boa poesia, dessas que rasgam superfícies como em lúcidos vôos indicadores de caminhos ou denunciadores de desníveis para correção nos foros competentes do mundo, não costuma sair aos borbotões; exige, para se revelar, certa disciplina, ou certo jeito, mas sem que tais imposições da própria arte derivem, em primeira água, de discutíveis preceitos de lavor acadêmico.
Poetas de sentinela até na Amazônia, por toda parte. E a Bahia transporta-se até a Nigéria pela voz de Antonio Vieira da Silva em Song’s of África: Cava Zé / esta terra dura./ Cava Chico / tua sepultura./ Anda Joana / vê que desventura./ Remove sempre,/ esta terra é tua.
Há quem ande “em busca de raios e girândolas”, como Roberto Pontes em Memória Corporal (Antares). Jorge de Souza Araújo, ao traçar Os Becos do Homem, descobriu que “ao homem só resta reencontrar-se / nas retinas do mundo.” Na Dança das Descobertas, pela Imprensa Oficial de Belo Horizonte, Elias José vê no “espelho-olho do ditador” a lâmina, o punhal, o gelo, a compra e a venda, mas também o pesadelo. Em Corpo de Delito & Prosipoemas, de Ayrton Pereira da Silva, a “musa de plantão”: De que valem estas flores / se fanadas ficarão /no olvido dos desamores?
Sérgio Ricardo, em Elo: Ela (ed. Civilização Brasileira), rabisca uma careta no papel e vê “tudo atrasado – prestação... liberdade... E o que dizer da eterna transferência da decisão?.”
Estão, ainda, acampando, com lançamentos recentes: Nair Baptista Schoueri, que em Estrela Variável (ed. Fontana) vê o Homem “criança perene – sempre a brincar e encontrando / cobras entre roseirais / e beija-flores morrendo.” Sônia Sá em O Outro Lado de Mim (Argus) à procura de identidade: “Vou recolhendo idéias /no emaranhado de seres / e de coisas./ Disseco em aço / mil fraquezas e poderes,/ em torvelinho de agruras,/ devaneios e conjecturas.” O Cárcere de Maria José Braga Cavalcanti de Albuquerque em Diga um verso bem bonito: “Do fundo deste limbo / esperança nenhuma descortino,/ não há penumbra repousante / nem asa noturna que se abrande / ou se descobre em sono./ Fixo, tortura-me o olho redondo / da crua lâmpada cruel.” Marina Rangel, em Pedras d’Água, ouve o conselho das estrelas: “Não leve a vida chorando / que ela dura um momento.” No Vidro da Aurora de Marta Gonçalves – “o céu azul e o canto suave de paz correndo no corpo.”
Enquanto isso, como a situação não está sopa, por causa das contradições de uma reciprocidade de dependência entre países ricos e países pobres, nem as musas escapam dos tentáculos da “máquina do mundo.” Numa feira-livre de Espanha, bem perto do Cemitério de Alicante, onde repousam os despojos de Miguel Hernández, a musa física deste poeta que lutou na Guerra Civil e que deixou, entre outros livros de alta expressão das letras hispânicas, Vientos de Pueblo, pode ser encontrada atrás de uma banca de verduras e legumes. A musa-feirante, que se chama Josefina Manresa, luta desta maneira por sua própria sobrevivência.
Coisa destes fins do Século de Drummond. Ainda bem que existem o boi e o anjo. Formam um bom par: sem c a n g a.


*O Fluminense, capa do caderno dominical Encontro, 1° de novembro de 1982

Nenhum comentário: