sábado, 29 de novembro de 2008

“Naquela noite o clarim
não pediria silêncio” -
contou João Cândido ( * )


"Seria toda Revolução uma aurora?"
Oswald de Andrade

À leitura de mais um livro-documento de Edmar Morel -- A Revolta da Chibata, em 3ª edição pela Graal --, salta das entrelinhas um raro e edificante detalhe, em face do invólucro dos dias presentes. É o reconhecimento da figura clássica do boêmio como espectador acidental porém consciente, sobretudo humano, de fatos e/ou particularidades às vezes basilares aos próprios fatos. Da história de uma vida, de um grupamento social, de uma nação.
Pois aconteceu terem sido dois boêmios desse porte que puderam captar, a espaço de anos e numa associação perfeita, em suas andaduras pela noite, um a ousadia e o outro a humildade do marinheiro que, de passagem, galgara o almirantado na chefia da revolta de 22 de novembro de 1910 na Baía de Guanabara contra o regime escravo que persistia na Armada.
Oswald de Andrade, a 12 anos de seu édito antropofágico, ainda cheirando à atriz de teatro com quem se trançara numa pensão do centro do Rio, experimentava agora numa enseada da Glória, ao se ver a poucas braçadas de três vasos de guerra dirigindo-se para a saída do porto, um frêmito diferente: a sensação de que estava diante de uma revolução. E como que se inclinasse para o espelho do mar perguntou-se: “Seria toda revolução uma aurora?”.
Amanhecia.
O outro boêmio -- assim referido por Morel -- era o repórter Aôr Ribeiro, que quarenta e três anos depois da histórica revolta, “numa madrugada de março de 1953”, no cais do Mercado, surpreendia um velho marujo despedindo-se, com um beijo no casco, do encouraçado Minas Gerais, que acabara reduzido à “condição de um montão de ferro velho”, para venda como sucata, mas que nem por isso deixava de ser “um pedaço de sua vida”.
Esse marinheiro, dir-se-ia também um boêmio muito acima do copo, chamava-se João Cândido, em quem o tenente Felipe Moreira Lima viu “um Nélson dos morros... que não arrasara a Capital** por humanidade. E um jornal argentino reivindicava para Corrientes a glória de ter sido a terra de nascimento do herói”. Gaúcho da Vila da Encruzilhada do Rio Pardo, praça desde 10 de dezembro de 1895, da 40ª Companhia do Corpo de Marinheiros Nacionais, João Cândido, o Almirante Negro -- como ficou conhecido na época da insurreição naval contra a chibata e que muitos anos depois a Censura deixou passar à história da Música Popular Brasileira como o Navegante Negro vetando o Almirante porque ele não precisava mais de cartaz...-- assim relatou para Edmar Morel a deflagração do movimento:
“O sinal seria a chamada da corneta das 22 horas. O Minas Gerais, por ser muito grande, tinha todos os toques de comando repetidos na proa e popa. Naquela noite o clarim não pediria silêncio e sim combate. Cada um assumiu o seu posto e os oficiais de há muito já estavam presos em seus camarotes. Não houve afobação. Cada canhão ficou guarnecido por cinco marujos, com ordem de atirar para matar contra todo aquele que tentasse impedir o levante.
“Às 22h50min, quando cessou a luta do convés, mandei disparar um tiro de canhão, sinal combinado para chamar à fala os navios comprometidos. Quem primeiro respondeu foi o São Paulo, seguido do Bahia. O Deodoro, a princípio, ficou mudo. Ordenei que todos os holofotes iluminassem o Arsenal de Marinha, as praias e as fortalezas. Expedi um rádio para o Catete, informando que a esquadra estava levantada para acabar com os castigos corporais(...)”.
A noite de 22 de novembro de 1910 -- conta Morel em seu livro -- foi marcada por deslumbrante recepção ao novo presidente da República, marechal Hermes da Fonseca, no Clube da Tijuca, enquanto João Laje, um dos maiorais de O Paiz, em sua residência, no bairro de Botafogo, oferecia um jantar aos oficiais do Adamastor. O marechal, ao lado de todo o seu Ministério, ouvia a ópera Taunhàuser, de Wagner, quando um tiro de canhão sacudiu a cidade. Cinco minutos depois um outro ecoou pelo Rio. Vidraças, agora, eram quebradas em Copacabana e no Centro.
Chegaram a atribuir a chefia do levante ao almirante Alexandrino de Alencar, ministro da Marinha no governo anterior, de Nilo Peçanha, que recebeu em audiência, no Catete, o marinheiro (de 1ª classe) que assistira na Inglaterra, com alguns companheiros, à fase final da construção do Minas Gerais, nos estaleiros de New Castle, inteirando-se de todo o seu funcionamento. E João Cândido pedira ao então presidente que abolisse o açoite na Armada, o que já havia sido feito no papel, ainda que pela metade, no segundo dia da República, pelo decreto nº 3, de 16 de novembro de 1889, previsto, aliás, na própria Constituição Imperial.
Contudo, as penas cruéis continuavam em prática em todos os navios de guerra e no Batalhão Naval. Isto, que Morel não chega a dizer, nem insinuar, até mesmo porque escreveu A Revolta da Chibata baseado única e exclusivamente em documentos e testemunhos autênticos, com toda a imparcialidade que dignifica o repórter-historiador, embora esta sua postura lhe tenha custado a cassação dos direitos políticos e conseqüente desemprego, leva inclusive a pensar em espécie de insubordinação contra o texto de uma lei.
O almirante Alexandrino de Alencar estava a bordo do Principessa Mafalda, transatlântico italiano, a caminho da Europa. Portanto, logo concluiu o estado-maior de Hermes da Fonseca na noite de Wagner e Edmar Morel explicaria em seu livro: “A sublevação, na verdade, fora arquitetada nos estaleiros da Armstrong, onde a João Cândido e outros cabeças do motim foram dadas hábeis e proveitosas lições de navegação”.
Transcreve a mensagem dos rebeldes: “Não queremos a volta da chibata. Isso pedimos ao presidente da República, ao ministro da Marinha. Queremos resposta já e já. Caso não tenhamos, bombardearemos a cidade e navios que não se revoltarem. Guarnições Minas, São Paulo e Bahia”.
Apesar de longa espera pela abolição da chibata e das tentativas de resistência do Governo através do cruzador Barroso e do caça-torpedeiro Tymbira, João Cândido e seus homens não passaram do ultimato. E tinham a cidade aberta a uma fragata invencível em águas da Guanabara, da terceira maior potência naval do mundo. Quando se aperceberam disto, os homens do Governo cuidaram de acenar com anistia para os amotinados, no que eles acreditaram.
João Cândido estava mesmo do lado do Brasil, como atesta o seu último rádio, transmitido ao marechal Hermes da Fonseca: “Confiamos na vossa justiça; esperamos, com o coração transbordando de alegria, a vossa resolução, pois os culpados da nossa rebelião são os maus oficiais da Marinha, que nos fazem escravizados deles e não da bandeira que temos. Estaremos ao vosso lado, pois não se trata de política e sim dos direitos dos miseráveis marinheiros”.
E uma vez em terra, após os interrrogatórios de praxe, embora anistiados, “foram metidos em masmorras medievais na Ilha das Cobras, onde vários morreram asfixiados (16 marinheiros) com cal virgem (após terem clamado por água). O chefe, aquele que acabou com a chibata na Marinha, foi parar no Hospital dos Alienados” -- consta no texto de Morel. Por outro lado, que “Rui Barbosa aparecia como inspirador e redator oficial dos principais decretos de Deodoro”, entre eles o que instituiu a Companhia Correcional (referendado pelo próprio jurisconsulto e grande orador, sempre na defesa -- da tribuna -- dos fracos e oprimidos) limitando, no último artigo, em 25 o número de chibatadas como punição por “faltas graves”.
Rui Barbosa a bradar: “Extinguimos a escravidão sobre a raça negra; mantemos, porém, a escravidão (sic) da raça branca entre os servidores da Pátria”.
Mas não deve ter sido bem assim. A julgar pelo que escreveu um brazilianist daquele tempo, James Bryce, testemunha ocular do motim, ao contrário de Rui. Num trabalho que publicou sob o título South América Observations and Impressions (Observações e Impressões da América do Sul), Bryce afirma que “as tripulações eram quase inteiramente de negros”, e acrescenta: “Somente alguns homens brancos foram deixados a bordo. Eram engenheiros ingleses, detidos forçadamente com ordem de trabalhar nas máquinas. Os navios de guerra estavam liderados por um negro, chamado João Cândido, um homem de energia e resolução, que se tinha apoderado da situação, ordenando pôr na água todas as bebidas do Minas Gerais”.
Não estava muito acima do copo?!

( * ) O Fluminense, caderno Encontro, Autor e Livro, 20/21 de janeiro de 1980

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