sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Em busca dos universais linguisticos


Em busca dos universais linguísticos *

Com “o exercício do ato de sentir”


Qual o papel da linguagem na cognição? “Contar uma história” a este respeito, “e refletir as aquisições da criança na decodificação e construção de estruturas linguísticas”, é o que fundamentalmente procura fazer Dan Isaac Slobin em Psicolinguística, que chegou ao Brasil em 1980, vol. 16 da coleção Biblioteca Universitária, série 5ª – Letras e Linguística.
A edição príncipe vem acrescida de observações – feitas por Slobin e por outros pesquisadores do Departamento de Psicologia da Universidade da Califórnia no campo dos universais linguísticos e/ou dos fundamentos biológicos da linguagem. Slobin explica: "Começamos a pôr a linguagem humana numa estrutura universal, tanto em termos dos universais linguísticos dos sistemas de comunicação de nossas espécies, como em termos do meio biológico do comportamento humano típico”,
Refere com particular admiração a influência que sobre ele e seus companheiros de pós-graduação no Center for Cognitive Studies, de Harward, nos anos de 1960 e 64, exerceu Noam Chonsky com “as novas formulações de gramática transformacional e sua eventual significação psicológica”. E recorda ter sido Jerome Bruner quem então os levou até os estudos do soviético L,.S.Yygorsky, que não se desviara dos rumos traçados à Fisiologia por René Descartes, Ivan M. Sèchenov e Ivan Petrovich Pavlov e aos do suíço Jean Piaget ,que acabou procedendo de forma um pouco análoga, dando a suas investigações certo sentido ontogênico, biológico. Com seu primeiro livro, editado em 1923, Le langage et la penseé chez l’énfant, Piaget tivera a oposição de Vygotsky pelo fato, p.ex., de atribuir a uma “incontinência verbal”precoce a fala egocêntrica na qual não viu como Slobin registra funções especiais.Vygotsky já sustentava que a função da fala egocêntrica assemelhava-se à da fala interior. Ela não apenas acompanha a atividade da criança; serve de orientação mental, compreensão consciente, ajuda a venccr dificuldades; é fala para si mesma, ligada íntima e proveitosamente ao pensamento infantil.(...) No fim, ela se torna fala interior”.
O próprio Dan Isaac Slobin opina que “a aquisição da linguagem é dirigida por princípios estruturais inatos, alguns dos quais são exclusivamente para esta tarefa especial, sendo alguns outros mais gerais”. Uma posição dir-se-á nativista, que ele mesmo, por sinal, admite, ou melhor, naturalista. Implicitamente, de um fisiolinguista. Significa que numa 3ª edição não seria incorreto apor a tal título, a escolher, “ou Fisiolinguistica”.
Ele explicita: “já dissemos o bastante para lançar sérias dúvidas sobre a idéia – comum a muita prática educacional – de que a língua é a fonte do desenvolvimento mental. E também debatemos a idéia de que as diferenças culturais se refletem com déficits gerais em capacidade da mente. Entretanto, continua sendo meta de uma boa parte da educação nos Estados Unidos tentar, em relação às crianças pequenas negras, portorriquenhas, mexicanas e asiáticas (e até surdos), que falem o inglês americano, padrão da classe média (Standard Middle-Class American English, geralmente mencionado pelos pofessores como inglês correto (...) .Slobin reconhece na criança uma capacidade de construir línguas. E Nicolas Ivanovith Krasnogorski já em suas primeiras observações (1907-1913), sobre o desenvolvimento da linguagm infantil (La actividad nerviosa superior del niño, ediciones en lenguas extranjeras, Moscou,1960) ... constatava que as reações elocutivas são no fundo reflexos que se formam segundo as leis das conexões temporais” ... Krasnorgoski, que se destacou como um dos maiores discípulos e seguidores de Pavlov, tendo publicado sua primeira comunicação dessa especialidade no n° 36 da revista Russki Vrach em 1907 sob o título Obtenção de reflexos condicionados das crianças” expõe que no homem, à diferença dos animais, predomina um analisador locutivomotor especial composto de células cinestésicas que percebem os estímulos internos vindos dos músculos vocais. E que a existência nele de um sistema elocutivo de sinalização especial – a realizar a atividade verbal – faz com que tal sistema reflita o mundo externo e interno no homem, nos reflexos elocutivos, constituindo assim a base do conhecimento. “O método fisiológico no estudo da atividade dos sistemas de sinalização do cérebro tem aberto amplo acesso à investigação científica experimental não só do mundo exterior como também do mundo interior – através do sistema locutivo.
Em suma, a corrente pavloviana testemunha uma suficiência de linguagem sensorial ao término do 1° ano de vida, com o desenvolvimento bastante significativo da função conectora do córtex (ou córtice) cerebral da criança. Isso quer dizer que ela, em tal estágio, compreende muitas palavras, ainda que não as pronuncie.
Dentro deste quadro expositivo de natureza essencialmente fisiológica é que parecem movimentar-se psicólogos do porte de Dan Isaac Slobin, que realiza gradualmente em Berkeley, desde 1964, um programa de estudo de aquisição da linguagem, envolvendo duas (ou mais) línguas. Diz ter passado os anos de 1969-70 e 1972-73 na Turquia,” aprendendo o turco e também observando como as criancinhas aprendem esse idioma”. Para ele, é uma língua rica e fascinante, que lhe fornece contrastes com o inglês e o leva a pensar em universais linguísticos.
O problema, como se percebe, é mais de ciências naturais do que de outra área. E não seriam os universais lingüísticos a base sensorial do conhecimento? Para ilustrar, ou divertir, vejamos um trecho de conto da escritora Esther Lúcio Bittencourt, autora de No país das palavras onde moram os homens mudos, edição São José, 1975, rodado também em mimeógrafo para a antiga Feira do Autor, uma feira que funcionou por algum tempo no Campo de São Bento, Niterói, reunindo escritores e artistas de vários Estados, com ampla repercução no meio cultural do Rio, São Paulo e Minas Gerais, principalmente.
O conto é apresentado como parte de uma série por título flagra e que a autora explica tratar-se de “exercício do ato de sentir”:

Arimori camireri vilupodi drinca de sula Olibali peri nodi ende virdi. Manilamente vidi ensi malo viguibinte. Osú, Arimori. La mergue de plengue viguiri la virma emos de los pies entre dos. Vijo. Arimori ni. E ni. e ni. La plantica vertiplenta vibri entra drei erere mele duestra plei. Duolo. Isare capricou vitile emirante deli... E tal “exercício do ato de sentir” levou-me a compor o soneto que se segue:




Marchim de fasta, fuesta delevisa.
Mergue de plengue, vijo tus sonombres.
Encorpulo de vim los emos amos.
Ama la vela de los nolos dami.
Corsas di visde nostaljuramani.
Pianze mnodo ritime ni de mer.
Zivali poli poli valipor.
Falui de mari, ni le mali amon.
Incelo in te conosconoscision.
Segrido mei, la plaga melitosa.
Visuando mele duestra plei sensare.
Camireri de panto, sulaminte.
Sula manifaciene d’emirade.
Manilamente vidi en ti – Isare.


* O Fluminense, Caderno Encontro, 19 e 20 de outubro de 1980; Fernando Henriques Gonçalves

sábado, 20 de dezembro de 2008


Honra ao Conselheiro

Pela primeira vez se rende algum tributo à memória de Antônio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro, natural do Ceará, arquiteto de Canudos, Bahia – e isto acontece amanhã, no 92 aniversário de sua morte.
Quem já atravessou o caudal de Os Sertões, de Euclides da Cunha, e repetiu a travessia – com a mesma atenção e interesse dos estudiosos dos textos bíblicos, com o mesmo afã como artistas de tendências diversas vão buscar na Bíblia Sagrada elemento para suas produções – terá conhecido essa figura impressionante, acidentalmente gnóstica, que foi Antônio Conselheiro.
Os Sertões de Euclides compõem a Bíblia da nacionalidade brasileira, que o Conselheiro pervaga menos na condição de mais um messiânico posto no mundo do que na de revolucionário nos limites e moldes de Canudos: a Favela de Monte Santo, por ele transformada, a um tempo, em espécie de casa de correção e oficina de justiça social.
Apóstolo, beato ou bruxo, qualquer outro qualificativo que se lhe possa atribuir, certo é que ele realizou, praticamente, da noite para o dia, pelo fascínio que exercia sobre os párias do Norte e do Nordeste do Brasil, aquilo que o Direito Penal de uma “civilização de empréstimo” (expressão usada por Euclides para retratar as classes dominantes da época) jamais conseguiria: a reabilitação em massa de criminosos comuns ou seu direcionamento a uma causa internamente justa: a incorporação deles num sistema assemelhado ao dos primeiros cristãos – o comunitarismo, em linguagem eclesial.
E pensar que o Conselheiro deve ter-se inspirado nas abelhas para conceber aquele seu pequeno mundo de irmãos, como fez Karl Marx em escala científica. O personagem quase irreal da obra extraordinária de Euclides da Cunha pregava, conforme se lê em Os Sertões e as cevadas elites culturais de hoje encobrem o quanto podem, a “comunidade absoluta da terra, das pastagens e dos rebanhos”.
(A tais elites , por sinal, pertence o escritor e político Vargas Llosa, ex-guru – ou ainda o é? – da esquerda distraída sob um céu de anil e que, após tentar reduzir a uma guerra de fim de mundo a resistência de Canudos, abalou-se em campanha pela internacionalização da Amazônia. Esbarrando, entretanto, na prancheta de Oscar Niemeyer, que se recusou, indignado, a assinar uma carta de penas serviçais do latifúndio transnacionalista).
Gente afeita a desfiar rosários de coco, outro tipo a talhar seus crimes de morte no clavinote, no mosquetão, no trabuco; criaturas pacatas e facínoras até o último grau, cangaceiros e jagunços, brancos, negros, mulatos, amarelos, todos irmanados em defesa do Arraial do Bom Jesus (assim tratavam o Conselheiro) e suas conquistas sociais - das balas da artilharia pesada, dos vômitos dos canhões Krupp, de uma república “de empréstimo”
E se tornaram competentes, audaciosos guerrilheiros. Em face do desvario de um exército que, acompanhando-se a avaliação dos acontecimentos feita pelo tenente Euclides da Cunha (tinha ele os cursos de Estado-Maior e de Engenharia Militar, da Escola Superior de Guerra), descera ao nível de grande parte dos habitantes de Canudos – antes da regeneração
O Conselheiro e seus homens morreram de pé..




Ultima Hora, 21 de setembro de 1989, Opinião, Fenando Henriques Gonçalves

sábado, 13 de dezembro de 2008


A Resistência *
Canudos (1896-97)




A República de Floriano, não mais que “meia ração de glória”

Entre os novos críticos de Euclides da Cunha e sua obra documental, Os Sertões, nota-se vez e outra uma sôfrega preocupação de lançar dúvidas à veracidade de registros feitos por aquele autor na cobertura jornalística do episódio de Canudos, além de reinterpretá-lo ao sabor da conveniência dos dias atuais. Há como que uma ação orquestrada no sentido de deseuclidizar o sertão de Antônio Conselheiro e sua antítese, o latifúndio, quando o próprio Euclides, ao compor a tríade sarmientiana “o Homem, a Terra, a Luta”, procurou e conseguiu, até onde lhe foi permitido avançar, impessoalizar-se na medida e nos momentos em que o puro e cru desenrolar dos fatos o exigia, embora chocando-se ao primeiro toque, às vezes, já transpostos ao papel, com o testemunho que ele daria no remate do livro.
Logo, as personagens deste romance vivo e epopéico de certo período da História brasileira que são Os Sertões têm luz própria. Umas, bruxuleante, outras, de uma luminosidade copada. As oscilações vão à custa da estrutura feudal de uma época visceralmente ainda bem próxima da que se vive agora no Brasil e, de roldão, por outros países de uma América pobre porque saqueada nos moldes da diplomacia, inclusive de canhoneiras, ao correr dos dados narco e/ou anarcocapitalistas.
Atiradores do sertão e de caserna, rosários de coco e pentes de chumbo, o clavinote à bandoleira.talhado a canivete (cada talho, uma, vida fechada) e o canhão Withworth 32, que viera adrede para lhe derrubar os muros, da igreja nova de Canudos, sem no entanto a atingir, visto que “as balas passavam-lhe, silvando, sobre a cumeeira”, tudo isto a entrelaçar-se numa engenharia singular, instigadora, derivada da visão ..quase a um tempo impulsiva e serena de Euclides acerca dos acontecimentos que deram à República mal começada, de 1896 a 97, não mais que “meia ração de glória”.
Hoje, discute-se não a campanha de Canudos, pelo lado das sucessivas expedições batidas em confronto com a “guerrilha sertaneja”, culminando com o tresloucado assalto a uma “Jerusalém de taipa”, mas a resistência de Canudos, que tombou sem render-se. E o Conselheiro, guia dos rebelados sem eira nem beira contra algo, para eles, com o peso de cangalha tributária jogada aos seus lombos pelo novo regime, estava morto, após dias de sofrimento, atingido que fora por estilhaços de granada.
Em solo rebelde, presunçosamente tomado pelas forças legais, ferira-se um diálogo laminar entre Antônio Beato, o altareiro do arraial conflagrado, e um general de brigada. O fiel seguidor do já então finado Conselheiro nos ofícios de acolitá-lo nas avemarias e de acionar o bacamarte, escudeiro descrito por Euclides da Cunha como um mulato claro e alto, sobranceiro, vestindo camisa de azulão e a corrupiar pelos dedos um gorro azul, de linho, esperou que o general principiasse.
“Quem é você?”, perguntou-lhe enfim, e o provavelmente ardiloso emissário do que sobrara da resistência, uns poucos guerrilheiros, porém dispostos ao combate até o último homem, tirante o ajuntamento de inválidos e crianças a aguardar recolhimento – tinha pronta a resposta:
“Saiba o seu doutor general que sou Antônio Beato, e eu mesmo vim por meu pé me entregar porque a gente não tem mais opinião”...
Queria dizer: munição. E convenhamos: opinião deste calibre é o que jamais faltou aos opressores, do passado e do presente. Para determo-nos no século XX e no raio latino-americano: a partir de 1903, contra o Panamá; de 1908, Nicarágua, de 1914, México e Haiti, de 1916, República Dominicana; em 1954, Guatemala; em 1961, Cuba; em 1973, Chile, e em 1983 com a invasão da pequenina ilha de Granada. O agressor: Estados Unidos da América do Norte, que a par dessa listagem de agressões armadas e além das intervenções camufladas no Paraguai e no Brasil, em 1954, outra vez no Brasil, em 1964, no Uruguai, em 1973, e na Argentina em 1976, para implantação da ditadura do capital , não negaram apoio logístico à guerra da OTAN, Organização do Tratado do Atlântico Norte, via Londres, no Atlântico Sul, em 1982. Contra a República Argentina, a fim de garantir pelo último argumento dos reis, que é a força bruta, a pretensa e impudente soberania britânica sobre as ilhas nomeadas Malouines, em 1620, por marinheiros franceses, de Saint-Malo, soberania conquistada a botas de vândalos, em 3 de janeiro de 1833, primeiro estágio do mais ambicioso sonho do imperialismo que é exercer pleno e total controle sobre a Antártida.
Todavia, Canudos também teve opinião e, com todo o efeito naquele seu espaço, soube usá-la. Ou descarregá-la pelas mãos de gente que dominava coisas nativas, segredos marciais de raiz. Invejados e, sobretudo, odiados nas fileiras regulares, não tanto pelo fato de se terem revelado hábeis estrategistas, mas por sua simples, positiva, astuta condição de matutos. Tinham a seu favor as incríveis ciladas naturais, que a natureza, rude, à volta armava e contrapunha aos passos que lhe fossem estranhos.
Entrecruzavam-se, assim, o homem da caatinga e o próprio meio hostil ao homem da civilização, qual seja, naquela circunstância, o dos quartéis – oficiais e praças de unidades do Exército nacional baseadas na Bahia, Pernambuco, Amazonas, Pará, Sergipe, Alagoas, São Paulo, em todos os quadrantes do país, mobilizados para defenderem a República de fantasmas da Monarquia encarnados pelo Conselheiro e seus homens e para as reverências de estilo à lápide de Floriano Peixoto, cognominado o Marechal de Ferro.
O tenente Euclides da Cunha (com os cursos de Estado- Maior e de Engenharia Militar, da Escola Superior de Guerra), a cuja formação militar – apesar do gesto, na época, de indisciplina, quando cadete republicano no ocaso da Monarquia, de atirar o sabre aos pés do ministro da Guerra, Tomás Coelho -, pode ser atribuída, em grande parte, a disciplina na construção de Os Sertões, viu nas caatingas “um aliado incorruptível do sertanejo em revolta.” E não perdeu um só detalhe: “Entram também (as caatingas) de certo modo na luta. Armam-se para o combate, agridem. Trançam-se, impenetráveis, ante o forasteiro, mas abrem se em trilhas multívias, para o matuto que ali nasceu e cresceu. E o jagunço faz-se o guerrilheiro-thug, intangível.
Envolvente a “guerra das caatingas” tal como a apresenta Euclides:
- “E os soldados, devassando com as vistas o matagal sem folhas, nem pensam no inimigo. (...) E lá se vão,marchando, tranqüilamente, heróicos... De repente, pelos seus flancos, estoura, perto, um tiro... A bala passa, rechinante, ou estende, morto, em terra, um homem. Sucedem-se, pausadas, outras, passando sobre as tropas, em sibilos longos. Cem, duzentos olhos, mil olhos perscrutadores, volvem-se, impacientes, em roda. Nada vêem. (...) As seções (da expedição) precipitam-se para os pontos onde estalam os estampidos e estacam ante uma barreira flexível, mas impenetrável, de juremas. Enredam-se no cipoal que as aguilhoa, que lhes arrebata das mãos as armas, e não vingam transpô-lo. Contornam-no. Volvem aos lados. Vê-se um como rastilho de queimada: uma linha de baionetas enfiando pelos gravetos secos. Lampeja por momentos entre o raios do sol joeirados pelas árvores sem folhas, e parte-se, falseando, adiante, dispersa, batendo contra espessos renques de xiquexiques, unidos como quadrados cheios, de falanges, intransponíveis, fervilhando espinhos...
“Circulam-nos, estonteadamente, os soldados. Espalham-se, correm, à-toa, num labirinto de galhos. Caem, presos pelos laços corredios dos quipés reptantes; ou estacam, pernas imobilizadas por fortíssimos tentáculos. Debatem-se desesperadamente até deixarem em pedaços as fardas entre as garras felinas de acúleos recurvos das macambiras...
“Impotentes estadeiam, imprecando, o desapontamento e a raiva, agitando-se furiosos e inúteis. Por fim a ordem dispersa do combate: faz-se a dispersão do tumulto. Atiram a esmo, sem pontaria, numa indisciplina de fogo que vitima os próprios companheiros. Seguem reforços. Os mesmos transes reproduzem-se maiores, acrescidas a confusão e a desordem – enquanto em torno, circulando-os, rítmicos, fulminantes, seguros, terríveis, bem apontados, caem inflexivelmente os projéteis do adversário.
De repente, cessam. Desaparece o inimigo que ninguém viu.” (...)
São passagens como esta que irritam os catadores de sutilezas nas aparas do livro maior de Euclides, empenhados que estão em falsear a verdade de Canudos, em cobrir com o manto linearmente messiânico o conceito de guerrilha enristado nas páginas de Os Sertões por um engenheiro militar; o escritor e político Mario Vargas Llosa tentou consagrar a escamoteação com o seu romance A Guerra do Fim do Mundo. Quando não, em proceder à maneira do historiador baiano José Calasans, para quem Canudos foi o “último quilombo do Brasil” (O Estado de S. Paulo, 1987, pág. 16). Nos achados do professor Calasans sobreleva a revelação- resultado de 36 anos de laudáveis buscas em documentos oficiais mas nem sempre acreditados – de que a população de Belo-Monte, nome original de Canudos, se constituía basicamente de ex-escravos. A documentos produzidos em cartórios do latifúndio, o bom-senso recomenda inclinarmo-nos pelo que registrou esse grande repórter que foi Euclides da Cunha, testemunha ocular de acontecimentos que abalaram a nação por fins do século XIX, e O Estado de S.Paulo deve ter-se arrependido mil vezes de havê-lo designado seu enviado especial ao front sertanejo. O Estado não fugiu à regra ventral da imprensa brasileira que imputara à colméia humana de Canudos o estigma de massa de manobra monarquista para derruir uma República mal saída do cueiro. Uma República que, a bem da verdade, manejava as mesmas armas da Monarquia, que a gerara. E os remanescentes do cativeiro, comprovados à lâmina em função de uma cultura religiosa peculiaríssima, sem nenhuma afinidade com o catolicismo estampado na “ bandeira do Divino” se predominavam no reino de Antônio Conselheiro, nascido Antônio Vicente Mendes Maciel, como quer o esforçado historiador baiano, teriam então desempenhado papéis secundaríssimos sob o fogo da campanha republicana e o comando da resistência, este entregue ao pulso firme e decidido de todo um produto de milagrosa convergência: cangaceiros e jagunços. Alguns, quem sabe, a se penitenciarem até de terem servido ao escravagismo pegando na chibata contra cada amarrado ao tronco ou acertando a tiros fujões estropiados para os afazeres do eito.
De qualquer forma, sob a “bandeira do Divino” transformam-se todos, “mestiços de toda a sorte, variando, díspares, na índole e na cor, em audazes guerrilheiros: o qualificativo preciso que se há de conferir a uma turba, paradoxalmente, disciplinada que revida com flama e destreza, com bravura, a fuzilaria e as bombas expedidas em nome e honra da lei e da ordem estabelecidas. A lei e a ordem, contudo, que o governo da República suava para impor na comarca de Monte-Santo. Uma ordem econômica com a qual não concordava Antônio Conselheiro. Este pregava, segundo Euclides, “a comunidade absoluta da terra, das pastagens e dos rebanhos”... Certo, ia ao paroxismo no distanciamento de valores normais da vida em sociedade, ou civilizada, ao tolerar a “promiscuidade de um hetairismo infrene” sob o argumento de que todas as donzelas pastavam, inexoravelmente, “por baixo da árvore do bem e do mal”, sendo-lhes admitido fazer a opção.
E nem podia ser diferente, pois o Conselheiro era o gnóstico bronco fora do sertão e, enquanto não passasse à imortalidade, só lá dentro, um revolucionário autêntico.
Os paralelos, entretanto, não o deixariam a salvo da rotulagem, de agente de Moscou se a explosão de Canudos, com o mesmo elenco, acontecesse mais à frente, após a Revolução (russa) de 1917. Governo e imprensa logo cairiam em cima de Antônio Conselheiro com acusações como a de pretender semear pelo Nordeste do Brasil a ditadura... do campesinato.
Quimera que transporta despertados.

· Correio do Ilac, órgão do Instituto Latino-Americano de Cultura, Rio, Ano III, nº 15; por Fernando Henriques Gonçalves

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008


CIA rumina planos de
guerrilha contra Cuba *

Filho de Bush dá apoio a
exilados

Carlo Patiño **


A dissolução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, efetivamente iniciada por Mikhail Gorbachov através de uma irônica reestruturação transparente - na realidade, planejada no eixo Moscou-Washington-, alarga a vulnerabilidade da América Latina e o Caribe à ditadura do capital do complexo industrial-militar: denominação dada orgulhosamente por Eisenhower à argamassa do capitalismo norte-americano.
A economia de mercado não vive sem a indústria de guerra, e capitalismo periférico, para o qual caminham os russos nesta sua contra-revolução importada dos EE.UU., numa hora em que nos EE.UU. crescem a taxa de pobreza e o banditismo, significa dependência ao centro de uma produção industrial que Bertrand Russell já nos anos 60 dizia ser “empregada no sentido não só
de perpetuar a fome no mundo, mas ainda de aumentá-la em alta escala e com fins de lucro”.
Em muitos pontos, ou no conteúdo, o discurso de Bertrand Russell (“Paz por meio da resistência ao imperialismo dos Estados Unidos da América”) não perdeu atualidade. Entre um crime e outro da Guerra do Vietnam, bradava o pensador inglês: “Como abutres, o pequeno punhado de ricos é cevado à custa dos pobres, dos explorados, dos oprimidos.(as riquezas da Terra são esfaceladas, dissipadas, saqueadas por uns poucos e usadas para matar milhões. Três mil e 300 bases militares estão espalhadas por todo o planeta para impedir que os povos derrubem um sistema nocivo”.
O do império das armas e dos dólares, uma de suas bases, talvez a mais bem cuidada, ocupa (desde 1903) 118 Km2 da província cubana de Guantánamo: permanentemente voltada contra a Revolução de 1º de janeiro de 1959 e a Vitória de Playa Girón, de 19 de abril de 1961, quando uma expedição de anticastristas armados no exílio pela Central Intelligence Agency (CIA), reforçada por mercenários, foi batida fragorosamente pelas forças de defesa de Havana.
E com a estranha derrocada do regime soviético, pela rapidez como ela se processou, a primeira impressão que se tem é de que o regime marxista-lenilista adotado na ilha caribenha, mesmo sem ferir peculiaridades locais, encontra pela frente maiores ameaças de desestabilização. Isto, levando-se em conta estarem os cubanos preparados para a Opção Zero, por exemplo a substituição de automóveis por bicicletas, como forma de sobrevivência nacional a um bloqueio cerrado do imperialismo às importações de petróleo e outros condutos naturais de progresso dentro dos padrões atuais de civilização.
Entretanto, o socialismo cubano não se renderá enquanto Fidel viver, sendo esta a dedução dos mais realistas do anticastrismo estabelecido em Miami, empresários em grande número. Há exilados, como Sergio López Miro, que colaboram no The Wall Street Journal, sustentando que falta a Cuba uma liderança contra-revolucionária da envergadura de Gorbatchov (um Boris Ieltsin não é citado, naturalmente porque não teria a menor chance de falar aos ilhéus de cima de um blindado das forças sob o comando de Raúl Castro, irmão do presidente), ou do polonês Lech Walesa, coqueluche do sindicalismo de uma época no Ocidente, protótipo do peleguismo internacional***, para enfrentar Fidel Castro em igualdade de condições, sobretudo carismáticas, na crista de uma sonhada onda insurrecional.
O deflúvio planetário do marxismo-lenilismo não será contido em razão de uma parada histórica ou desvio filosófico de rumo no Leste Europeu: se a História pára por assim dizer em determinada região, acidental ou criminosamente, em seu leito geopolítico, ela prossegue em outra região, até numa república insular. Não é por outro motivo que Cuba de após desintegração soviética – provocada a débácle menos pela reconhecida incompatibilidade socialista existente entre desenvolvimento sócio-econômico e armamentismo, pela contingência em que se viu Moscou de ingressar numa corrida armamentista, do que pela gradual infiltração de enganosos valores ocidentais nos próprios quadros dirigentes da URSS - transformou-se de pronto e na esteira de tão surpreendentes acontecimentos em símbolo concreto e vigoroso de resistência da cultura mundial ao neocolonialismo.
Logo, ninguém pode escamotear a evidência de estar a CIA hoje, mais do que nunca, ruminando planos devastadores contra a estrutura política e econômica de Havana. E tirar Fidel de cena, eliminando-o fisicamente, é o primeiro deles, fundamental para dar passagem à guerrilha de Miami: em treinamento nos pântanos da Flórida, com o apoio às claras de Jeb Bush, filho do presidente dos Estados Unidos.

* Correio do Ilac, Ano VI n.18
**Pseudônimo de Fernando Henriques Conçalves
*** Falsa representação sindical de trabalhadores, a serviço de empresas transnacionais.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Novela Amazônica...

Eva Bán


Grupo de Vargas Llosa (*)
entra na novela amazônica

Sarney acusado até de etnocida
e embaixador reage. No Rio,
jornalista conta toda a trama



O Grupo dos100, que reúne Mário Vargas Llosa(aspirante à presidência da República do Peru), Gabriel García Márques, Carlos Fuentes e Ernesto Sábato, com outros intelectuais e artistas latino-americanos, escreveu ao presidente Sarney clamando pelo fim da “barbárie dos depredadores da Amazônia”, e responsabilizando-o pelo futuro de “um dos principais pulmões do mundo”
A carta de mais esse grupo ecológico, endereçada a Sarney dia 3 último, f oi publicada esta semana no jornal mexicano La Jornada e, nela, o presidente brasileiro é acusado de usar um “tom nacionalista para rechaçar as críticas internacionais a uma politica ecocida e etnocida”.
Tais acusações foram consideradas inacreditáveis pelo embaixador do Brasil no México, José Guilherme Merchior.Em sua resposta oficial, Merchior afirma que “o documento é simplesmente inaceitável”, e disse esperar que, “sem esse tom panfletário e demagógico, o grupo dos 100 possa, em breve, abordar objetivamente a questão amazônica”.
No Rio, a jornalista e escritora Eva Bán declarou que “infelizmente, o meu instinto de repórter experiente estava certo”. Referiu-se a uma nota por ela assinada ao lado de um poema – As Queimadas, também de sua autoria, no n.12 do Correio do Ilac, órgão do Instituto Latino-Americano de Cultura. “Isso, algumas semanas antes do assassinato de Chico Mendes, que provocou a tempestade desabada através da imprensa européia e norte-americana sobre a política ambiental brasileira, culminando com a eclosão de um movimento ensaiado há quase duas décadas, no exterior, visando à internacionalização da Amazônia”.
Falei disso, em poucas e boas tintas, no Correio do Ilac, bem antes de começar toda esta barafunda nacional e internacional em torno do assunto, disse Eva Bán, acrescentando: “Discursos, artigos, mentiras e desmentidos transformaram-se, agora, numa montanha de confusão total. A verdade é que nós, brasileiros, temos o direito de reclamar, xingar, brigar com os que devastam nossa Natureza.Mas os estrangeiros, que deixem fora daqui suas mãozinhas quentes de cobiça”
Eva Bán, que é delegada no Brasil da Associação Internacional de Jornalistas, sendo, ainda, membro fundadora do Instituto Latino-Americanode Cultura, disse mais:
- Acho que todas as outras nações que praticamente acabaram com a maior parte da Nave Espacial-Terra deveriam pagar uma espécie de pedágio mensal (ou anual, adiantado!) como reconhecimento pela nossa gentileza de ainda termos conservado uma fonte de oxigênio sem a qual todas elas já teriam morrido asfixiadas. Aí teremos dinheiro para pagar guardas florestais em quantidade e qualidade. Mas, enquanto esta utopia não vier, continuemos lutando com o que temos, gritando bem alto: “Abaixo as queimadas, os assassinatos, a destruição e a irresponsabilidade criminosa de autoridades coniventes”.
Em princìpios dos anos 70 Eva Bán encontrava-se nos EUA como correspondente dos Diários Associados, do Brasil. Por essa época, ela afirma ter escutado, “com estes ouvidos que os vermes irão comer, grandes banqueiros e capitalistas declararem em Nova Iorque que a internacionalização da Amazônia era necessária, “e eu, obrigada a assistir e escutar coisas idiotas, deste tipo”.
Não é por outra razão que Eva Bán tem suas dúvidas “de que a destruição em Goiás, Amazonas, etc., seja só de origem nacional” Antes de Chico Mendes tombar, ela escrevia no Correio do Ilac que “as queimadas trarão um efeito perigoso para a nossa soberania como nação”. E que, “se isto não parar urgentemente, um dia acordaremos com tropas estrangeiras ocupando Goiás, Amazonas etc. para salvar o clima e a sobrevivência da espécie humana”. E completava: “que meu instinto e senso de análise de repórter experiente estejam errados”. (AFP/OFLU) *O Fluminense, 12 abril de 1989

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

O fio da droga I

O fio da droga (1)
-- I --

Quem pervagar as sombras da II Guerra Mundial estará, certamente, informado da Operação Husky (Brutamontes) ou Lucky: assim identificada por ter tido como patrono Salvatore Lucky Luciano, que pelo menos até começos de 1943, nos Estados Unidos, cumpria pena equivalente a prisão perpétua, logo reduzida para 9 anos e 6 meses, resultante de 32 condenações. O abrandamento destas pela Justiça americana se deveu a que Lucky Luciano, que mesmo encarcerado não perdera a condição de rei da Máfia nova-iorquino-siciliana, participou decisivamente, embora de longe, já em confortáveis aposentos da penitenciária de Great Meadows, da campanha na Sicília, Itália.
Em outras palavras, aceitando um acordo proposto pelos serviços secretos da U.S. Navy através de Moisés Polakoff, famoso advogado de mafiosos, então contratado por clientes legais para estabelecer os primeiros contatos, Lucky Luciano acabou por emitir mensagens aos “notáveis” de Villalba, aldeia a 60 km de Palermo. Na forma de um lenço amarelo, de seda, com a inicial L, empacotado, que caiu atado a um minipáraquedas próximo à residência de Calogero Vizzini, o dom Calo, um dos chefões da Máfia villalbesa. E o lenço amarelo funcionou como luz verde para o desembarque de tropas aliadas na Sicília Central e Ocidental, em meados de julho de 1943.
A estratégia fora traçada durante reunião da Força 141, em Argel, no quarto nº 141 do luxuoso e tropicalesco Hotel Saint-Georges, sob a direção do major-general inglês C.H. Gairdner, tendo a operação sido decidida em Casablanca de 19 a 23 de janeiro, escolhido o general Eisenhower para comandá-la; ele se encontrava, na época, em campanha na Tunísia.
A Máfia siciliana abriu de muito bom grado os caminhos da Itália para as forças aliadas, enquanto a União Soviética, contando apenas com suas próprias forças, enfrentava estoicamente a marcha nazista.
A “Honrosa Sociedade” engajara-se na guerra. Em troca de liberdade para Lucky Luciano e de vista grossa da Justiça americana ao tráfico de drogas, dentro de seus limites, e atiividades paralelas. Com efeito, em 9 de fevereiro de 1946 os EUA devolviam a Lucky sua cidadania, e ele foi recebido na Itália com fogos, banda de música e calorosos discursos de boas-vindas. Pôde dedicar-se ao ramo até janeiro de 1962, quando morreu, como um “anjo”, em Nápoles, cercado de irmãos da Cosa Nostra.
Este pode ser o fio da meada do narcotráfico nas Américas, a levar política e vingativamente à prisão o general Manuel Antonio Noriega, sob as mesmas acusações imputadas ao general Omar Torrijos Herrera (1929-81), vitimado em acidente aéreo presumivelmente provocado pela CIA, inscrito na História centro-americana como um de seus heróis. Com a diferença de que Noriega foi contratado por George Bush quando o atual presidente dos EUA(2) era diretor da CIA, para missões ultra-secretas na América Central, inclusive de envolvimento tático com o narcotráfico. A isto se poderia chamar de Plano Medellín, uma Operação Lucky às avessas. Ou estilizada.
O teatro de guerra, agora, é a América Central, especialmente ou por enquanto a Colômbia e seu prolongamento natural, o Panamá. Noriega teria traído o código da
“Honrosa Sociedade” do Pentágono a partir do momento em que deu sua guinada nacionalista, seguindo o exemplo de Torrijos: o Panamá para os panamenhos. E eis, também, a razão por que os EUA são os maiores fabricantes de cocaína no mundo.



(1) Ultima Hora, pág.4, UH opinião, 11 de janeiro de 1990
(2) George Bush, pai, governa os EUA de 1989 a 1993, sucedendo-o Bill Clinton, mantido no poder até 2001, em dois mandatos.

O fio da droga II

O fio da droga (1)


-- II --

A Máfia se plantou nos Estados Unidos ainda no século XIX, lá conhecida, por essa época, como Mão Negra. Em 1891, cinco mafiosos trancafiados em Nova Orleans, por quase terem tomado o governo local após eliminar o chefe de polícia, foram retirados da cadeia por populares revoltados com as penas leves que lhes haviam sido impostas, num julgamento em que a maioria do corpo de jurados parecera ligada àquela organização, e linchados. Entretanto, sem a carga de ódio da Ku-Klux-Klan aos negros.
É verdade que o sistema norte-americano está de certo modo calcado na Ku-Klux-Klan, quanto ao tratamento de “seres inferiores” dispensado aos mestiços da América Latina e o Caribe, mas foi a Máfia que lhe serviu de lente de aumento para suas intervenções imperialistas, sem que se esqueça a matriz realmente histórica: a Inglaterra; aliás, tão racista que, ao contrário da Espanha, da França e de Portugal, evitou a miscigenação no tempo das colonizações.
Sem nenhuma margem de erro, pode-se afirmar que os sucessivos governos dos EUA, sejam os do Partido Republicano ou do Democrata, até nossos dias, conduziram sua política externa inspirados na maneira de agir da Máfia, que encontrou solo fértil para propagar-se rapidamente, no estilo dos grandes monopólios, pelas principais cidades da poderosa nação do Norte. Americanizando-se, ao ponto de ensinar economia de mercado aos próprios homens da lei expansionista. Conservando apenas os termos do juramento original para cada novo membro:
“Juro, perante Deus, que prestarei assistência aos meus irmãos em dificuldade, mesmo com o risco de minha própria vida,. Juro que vingarei o mal causado a meus irmãos como se o fosse a mim mesmo. Juro que não pedirei auxílio à polícia, nem a nenhuma outra entidade civil. Juro que não divulgarei, em qualquer circunstância, os nomes de meus irmãos. Juro que executarei todas as ordens do Conselho dos Amigos sem perguntar a razão. Aceito que todo irmão que desobedecer a esta lei seja punido com a morte. Em nome do Santo, cuja imagem reguei com o meu sangue, juro tudo isto. Amém”.
Salvatore Lucky Luciano, o mafioso que em 1943, na 2ª Guerra Mundial, abriu as portas da Sicília às tropas anglo-norte-americanas, passara galhardamente por aquela prova: preso, nenhuma forma de interrogatório policial fizera com que apontasse qualquer de seus “irmãos” ou locais em que operavam. Por isso mesmo, dele se socorreram os EUA para o desembarque seguro na Itália, com toda a cobertura da Cosa Nostra nativa, e Lucky virou herói de guerra secreta.
A partir daí, a Máfia, ou Mão Negra, pôde consolidar posições dentro dos Estados Unidos. O tráfico e o consumo de entorpecentes começaram a fazer parte do american way of life, para exportação, num estereótipo que causaria inveja a Al Capone com os seus negócios de alta rotatividade e rentabilidade nos anos 20, os anos dourados do gangsterismo em Chicago, em Nova Iorque. Al Capone não era dos quadros da Máfia, porém absorvera-lhe os métodos, tal como fariam as próprias autoridades estadunidenses com relação à América Latina e outras regiões vulneráveis do planeta. Admitindo-se agora a inclusão, quem sabe, também do Leste europeu.
O neo-colonialismo não vacila em utilizar expedientes, os mais condenáveis, para alicerçar seus domínios no Hemisfério Sul, notadamente na América Central, a única parte de toda a região que tem oferecido alguma resistência. E a droga é o pano de fundo para novas encenações imperialistas. A reação enérgica da Colômbia ao bloqueio ensaiado pelos EUA em águas do Caribe não demoverá o governo Bush de seus planos belicistas contra a Nicarágua.


(1) Ultima Hora, UH opinião, p.4, 19 de janeiro de1990

domingo, 30 de novembro de 2008

- I - A UDN ressurrecta

A violenta invasão da Câmara dos Deputados por centenas de manifestantes de uma dissidência do Movimento dos Sem Terra (MST), no meio do ano de 2006, é ao que parece um desses filmes que já vimos antes. Produzidos com um só objetivo, ainda bem que nem sempre alcançado: alterar a qualquer preço a vontade popular na condução de um processo político e/ou institucional.
Estaria por trás uma oposição encapuzada? Com a cauda de fora, talvez. Precedentes não faltam na teia mundial. No Brasil, temos 1964. Quando o governo norte-americano compra a briga de Carlos Lacerda com João Goulart, herdeiro político de Getúlio Vargas, ao derramar dólares nos meios de comunicação, inclusive individualmente, entre jornalistas, e financiar a peso de ouro entidades destinadas a atropelar as Reformas de Base de uma República Trabalhista que, mal ou bem, então se esboçava, tais como o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) e o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes). Contrapunham-se ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb)¹, criado em 14 de julho de 1955 como órgão do Ministério da Educação e Cultura, passado quase um ano da morte trágica de Vargas.
1. Na opinião do historiador e general reformado Nelson Werneck Sodré, já falecido, entrevistado em maio de 1988 pelo professor universitário Dênis de Moraes, “o golpe de 64 não foi um golpe militar”, mas sim um “golpe político, vitorioso na área política. Isolado o governo, deu-se a operação militar de ocupação”. Ressaltou que o Iseb, por suas posições nacionalistas, “caiu no índex das forças reacionárias”, que lhe moveram uma campanha sem trégua, tendo propagado “com muita arte e engenhosidade” ser o Instituto Superior de Estudos Brasileiros “uma coisa espantosamente poderosa, capaz de influir no governo, controlá-lo, traçar rumos para o país”. Segundo Sodré, “uma balela” que visava à esquerdização e ao conseqüente esvaziamento do Iseb, isolando as forças progressistas até reduzi-las “à impotência”. E que, com efeito, na montagem do golpe de 1964, “ o Iseb se tornou um dos alvos prediletos da reação. Tanto assim que foi depredado na manhã do dia 1º de abril, por elementos ligados ao então governador da Guanabara”, Carlos Lacerda. (Nota do autor)
João Goulart, Jango, chegara à metade do poder (à metade, por terem substituído o regime presidencialista pelo parlamentarista -- posto abaixo, afinal, em 6 de janeiro de 1963, através de plebiscito) graças à Campanha Nacional pela Legalidade, desfechada do Rio Grande do Sul por Leonel Brizola ao impacto da renúncia do presidente Jânio Quadros e da posse ameaçada de Jango, vice-presidente eleito pelo PTB. Em 13 de março de 1964, com o Comício Pró-Reformas de Base, o comício da Central do Brasil, o governo Goulart iniciava um processo revolucionário que os Estados Unidos não deixaram ir adiante², golpeando-o com o terçado de uma contra-revolução a que os golpistas nacionais deram o epíteto de Redentora.
2. Dias ou semanas atrás do apeamento de Goulart do poder, houve desembarque não de tropas do Pentágono no Brasil mas de observadores da situação no Nordeste de Miguel Arraes e as Ligas Camponesas, para execução, se necessário fosse, da Operação Brother Sam a partir de S. Paulo. Seria o estalar de uma guerra civil, com a cobertura militar dos EUA a incursões das forças conservadoras internas, uma possibilidade já admitida pelo presidente Goulart, cuja política de oscilações, mantida até pouco antes de subir o palanque das Reformas, quando lançaria seu único dardo, vinha sendo criticada entre quatro paredes pelo governador do Rio Grande, Leonel Brizola, sem dúvida o braço forte de uma resistência que pudesse ser exercida. Responsável pela posse de Jango na vaga aberta pela renúncia de Jânio, Brizola, sem o qual Jango talvez voltasse da China, aonde fora em missão oficial, como cidadão comum, oferecera-lhe o Palácio Piratini para sede provisória do governo da República. Confiante no então poderoso III Exército e, quem sabe, numa guerrilha sertaneja que Euclides da Cunha mostrara ser possível acontecer num cenário bem diferente e maior que o de Canudos.


- II - A UDN ressurrecta

EM 14 de junho de 1982, assinada a rendição das tropas argentinas às inglesas, o general Leopoldo Galtieri, que experimentara dias de glória com a retomada das ilhas Malvinas e o desempenho notável de sua força aérea, era alvo de apupos orquestrados por agentes da CIA que se tinham infiltrado numa manifestação pública em Buenos Aires não propriamente contra o ditador-presidente (apoiado maciçamente pelas esquerdas e outras correntes políticas do país durante a guerra) mas de justa indignação com a derrota frente ao Reino Unido; extensivamente, à OTAN. Galtieri tornara-se persona non grata nos EUA a partir do momento em que ameaçou cortar relações diplomáticas com eles (as comerciais já haviam sido praticamente cortadas, e pelos norte-americanos) após mudar o rumo das exportações do trigo argentino, de Washington, que as suspendera como é de seu feitio proceder em tais circunstâncias, para Moscou.
E o que dizer da infiltração da CIA na marcha da oposição a Hugo Chávez, na Venezuela, em 2002, que lhe custou o afastamento da presidência por 48 horas e a detenção num quartel distante da capital, sucedendo-o o empresário Pedro Carmona sem que tenha tido tempo de sentir o gosto do poder? O governo norte-americano, que planejara o golpe, dera com os burros n’água.
A CIA e tampouco o Departamento de Defesa dos EUA nada têm a ver, direta ou indiretamente, com o recente quebra-quebra em Brasília. Aos EUA -- macaco velho -- interessa tirar proveito de uma situação como essa sem meterem a mão na cumbuca, por haver entre nós quem faça isso por eles e a baixo custo. A ser assim, quem estaria por trás da arruaça supostamente planejada, ou apoiada, por opositores, não do Partido dos Trabalhadores nem de Lula da Silva, este a liderar com ampla margem de votos sucessivas pesquisas de opinião, de várias agências, praticamente às vésperas das eleições presidenciais -- mas do processo de independência econômica, política e social em curso na América Latina?
Tal a importância da República Federativa do Brasil como chave-mestra do Hemisfério Sul que os EUA não deitam suas vistas com maior interesse do que têm pela imensa e rica fatia brasileira sobre qualquer outro país da região. Luiz Inácio Lula da Silva, apesar de suas relações pessoais com George W. Bush serem consideradas bastante razoáveis, ultrapassando a raia da mera cordialidade, Bush sabe que a reeleição de Lula comprometeria o projeto da Alca ou mesmo o do Nafta devido ao fato de o presidente brasileiro estar ligado ao processo de formação de uma “comunidade latino-americana de nações”, como consta em nossa Constituição de 88.

- III - A UDN ressurrecta

A quem poderia interessar a desestabilização do atual governo através de ações como a dos autoproclamados sem-terra na Câmara dos Deputados, alguns até já assentados? Não seria a uma UDN ressurrecta?! Como a do passado, a de hoje, com outro nome, pode estar acendendo velas em janelas do Flamengo... (Dir-se-ia mandinga do Clube da Lanterna). Daquelas velas acesas por respeitáveis senhoras lacerdistas durante o Comício monstro da Central, que tanto irritou as classes dominantes de dentro e fora do país que se apressaram na militarização total do movimento de ruptura de um processo histórico iniciado no Estado Novo e no curto período de governo democrático de Getúlio Vargas, quando institui-se, em 1953, o monopólio estatal do petróleo e surge, assim, a Petrobrás.
Em 1964, Jango no palanque das Reformas de Base falando a uma multidão calculada em 130 mil pessoas. Pouco antes, no Palácio das Laranjeiras, dera o primeiro passo para a reforma agrária ao assinar o decreto da Supra, Superintendência de Reforma Agrária, seguido de um outro, por indicação de Leonel Brizola, encampando refinarias particulares de petróleo. Era o começo de uma revolução trabalhista, que já tinha em mira um plebiscito para a reforma da Constituição e a eleição de um novo Congresso, com ampla e autêntica representatividade popular.
“Nenhuma força será capaz de impedir que o governo continue a assegurar absoluta liberdade ao povo brasileiro. E para isso podemos declarar, com orgulho, que contamos com a compreensão e o patriotismo das bravas e gloriosas Forças Armadas”, enfatizou o presidente João Goulart no Comício da Central.
A um tempo, o presidente contava com a lealdade de expressivos contingentes das Forças Armadas e esforçava-se por esconder sua preocupação menos com o movimento nos quartéis do que com a tropa de choque udenolacerdista ancorada na Embaixada americana. Ou seja: com os artífices da traição à pátria. Civis, praticamente todos.
E pensar no arrependimento tardio de Carlos Lacerda³. Ao sentir-se logrado justamente pela Redentora, visto que já tinha como favas contadas a chance de candidatar-se à presidência da República e, uma vez vitorioso, conforme esperava, de suceder ao marechal Castelo Branco. Conduzido ao poder nos ombros dos militares mais conservadores para os quais as elites civis que conspiravam contra Jango e as fileiras nacionalistas das Forças Armadas haviam deixado o caminho livre. Saindo de cena.
A Lacerda, faltavam as divisas. 3. Em 25 de setembro de 1967, Carlos Lacerda e João Goulart firmavam em Montevidéu documento pelo qual se comprometiam à formação de uma Frente Ampla em busca de “soluções pacíficas para a crise brasileira, sem cultivar ressentimentos pessoais, nem propósitos revanchistas”. O documento seria levado a JK para que também ele o assinasse. Quanto a Brizola, que Lacerda nem procurou no Uruguai, sabendo que perderia seu tempo, não embarca na tal Frente: uma canoa furada, deve ter pensado. Brizola tinha razão, sempre -- dizia-se. (N. do autor).


A UDN ressurrecta
- IV-


Ao homologar a candidatura de Geraldo Alckmin ao Planalto, dias após o quebra-quebra de dissidentes do MST no Congresso, a convenção nacional do PSDB foi pródiga em ataques ao presidente da República e ao PT. O próprio Alckmin vociferou: “Que tempos são esses, no Brasil, em que a cada vez que ouvem uma notícia sobre a quadrilha dos 40, os brasileiros pensam automaticamente, em silêncio: e o chefe? Onde está o chefe, o líder dos 40 ladrões!”. E o mais grave: “O aparelho de Estado foi tomado de assalto por quem deveria geri-lo”. No mesmo tom, outras vozes udenopessedebistas a arrancar aplausos de uma assistência, ou militância, delirante; uma delas, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso a acusar Luiz Inácio Lula da Silva de ter virado “a casaca”, de ter virado “o homem dos banqueiros”. Como se não tivesse sido Cardoso o homem que elevou os bancos ao patamar de um poder da República, para o que e a fim de impulsar a neoliberália, em obediência às determinações do Consenso de Washington, precisou de dois mandatos sucessivos, conseguindo-o finalmente através da compra de votos no Congresso Nacional.
Desce o pano da era Cardoso com o Brasil tendo perdido cerca de 80% do seu patrimônio. O governo batera o martelo sobre as estatais em fila no corredor da morte -- “com transparência e dentro dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade”, dizia o Programa Nacional de Privatizações depois de dar a seguinte explicação: “A venda das estatais desonera a administração pública e gera recursos para a saúde, educação, segurança, previdência e outras áreas sociais”. Só que até hoje ninguém se debruçou sobre o que teria sido apurado com a venda da Companhia Vale do Rio Doce¹, das telecomunicações e de outras jóias da coroa, sem incluir a quebra do monopólio estatal do petróleo e seus desdobramentos no setor, e muito menos em quais “áreas sociais” foi empregado o dinheiro.
1. Antes de estourar a II Guerra Mundial, a britânica Itabira Iron Ore Company explorava riquezas do subsolo brasileiro que se estendiam pelo Vale do Rio Doce, em Minas Gerais, mediante concessão. Convicto de que ao Brasil não interessava meter-se naquela guerra, a não ser que dela tirasse algum proveito antecipado, inicialmente, Getúlio Vargas, após receber da indústria alemã Krupp a proposta de construir a primeira siderúrgica brasileira -- que Washington vinha cozinhando em banho-maria -- e só desse modo obter dos EUA o sinal verde para as obras, o presidente, em 1942, baixa decreto-lei criando a Companhia Vale do Rio Doce e, aí sim, declara guerra à Alemanha e outros países do Eixo. Não sem a Inglaterra ter-lhe devolvido os direitos de exploração das jazidas. Corre o tempo e entra-se na década de 90. O Exército norte-americano revela, abrindo documento reservado, plano de invasão do território brasileiro se Vargas não houvesse entrado na guerra de cachorro grande.
Só o fato de saber-se da cobertura das privatizações por parte do BNDES, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, mediante o financiamento da compra de bens patrimoniais da nação brasileira por grupos transnacionais ou testas de ferro da gringolândia, caracteriza o crime de lesa-pátria.
Neste caso, onde estariam os “40 ladrões”? Então o chefe não se chamaria Luiz Inácio Lula da Silva!


A UDN ressurrecta
-V-

Ainda soa aos ouvidos da nação o arrebatamento da diretora de Desestatização do BNDES nos primórdios do governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1995, Elena Landau: “Eu estou vendendo o Brasil!”
Um colunista social, Fred Suter, do jornal O Dia (16 de agosto de 1995), chegou a comentar: “A declaração repercutiu muito mal nos círculos militares”.
E a Folha de S.Paulo, na edição de 14 de abril de 1996, abria espaço para a economista Elena Landau ver em sua bola de cristal o Brasil quando já tivesse vendido todas as estatais:
“O processo de estabilização estará consolidado, e o custo da dívida pública será ‘carregável’ e alongado. O Brasil é um país solvente. O programa de privatização aumenta a credibilidade do país e permite que nossa dívida seja alongada cada vez mais”.
Na mesma edição, a Folha de S.Paulo abria a seguinte manchete:
Venda de estatais não atinge objetivo
Explosão da dívida anula os efeitos da privatização Reportagem a quatro mãos, de Fernando Godinho, coordenador de Economia, e Reinaldo Azevedo, coordenador de Política, da Sucursal de Brasília, da Folha, mostrava que de outubro de 1991 até abril de 1996 “as privatizações renderam R$ 13 bilhões”. E que, “no período, a dívida saltou de US$ 11,4 bilhões para US$ 125, 531 bilhões (ou R$ 127, 353 bilhões, pela conversão do dólar médio de março)”.
Nesse caso, calculava a Folha, “a evolução bruta da dívida pública federal desde 1991 é aproximadamente 777, 93% maior que todo o resultado do programa de privatização”. E observava que, dos R$ 13 bilhões gerados pelo programa, R$ 10, 4 bilhões eram constituídos de moedas podres.
Ainda a Folha: “Ou seja, de 1991 -- início das privatizações -- até hoje (abril de 1996), entraram no caixa do governo, em dinheiro vivo, apenas R$ 2,6 bilhões”. Quarenta e quatro empresas estatais foram privatizadas nesse período, além da venda de participações minoritárias da União em outras empresas, segundo o BNDES.
Os autores da reportagem trocaram em miúdos todo esse imbróglio do neoliberalismo para emergentes: “A rigor, receber moedas podres em troca de estatais ajuda no abate da dívida pública federal. Ocorre que essa dívida galopa por razões não associadas à privatização. Resumo: em termos de política econômica global, o governo se desfaz do patrimônio público e fica devendo cada vez mais”.
O que dizer agora que lá se foram, também, a Vale (leiloada em 7 de maio de 1997), as teles²... pelas mãos do governo Cardoso?
2. O processo de privatização das telecomunicações iniciou-se em 1997.


A UDN ressurrecta
VI-


O Partido dos Trabalhadores homologa a candidatura da chapa Lula-Alencar a mais quatro anos -- aliás, dois mandatos sucessivos: invenção do presidente anterior por artes de berliques e berloques --, o atual presidente afirma ter realizado mais em 42 meses que o tucanato em oito anos, e Fernando Henrique Cardoso, o sociólogo mágico, perde a pose. Como se depreende da manchete de 26 de junho de 2006 de O Estado de S.Paulo:
FHC: Lula é bom de garganta e apenas ganha em corrupção
O ex-presidente não admitiu uma disputa sobre quem seria mais corrupto?
Argemiro Ferreira, em sua coluna na Tribuna da Imprensa (20 de junho de 2006), publicou carta de Arthur Poerner dirigida a Carlos Lupi, presidente do PDT, bastante esclarecedora dos descaminhos e não propriamente da desunião, como quer Roberto Freire, da esquerda no Brasil. Poerner, como um dos signatários da Carta de Lisboa, que marcou a reabilitação do trabalhismo brasileiro embora sob nova legenda, que viria a ser PDT, visto que a histórica, PTB³, fora escamoteada em “sórdida manobra governamental” -- palavras de Leonel Brizola na ocasião -- acatada pela Justiça Eleitoral, afirma não poder concordar com “os rumos trilhados, ultimamente, pelo partido”.
3. A 17 de junho de 1979, em presença de Mário Soares, que representava a Internacional Socialista, se reuniam em Portugal, preparando-se para o retorno ao Brasil depois de anos de desterro, agora anistiados, Leonel Brizola, Darcy Ribeiro, Doutel de Andrade e outros trabalhistas históricos, além de novos ou simpatizantes do trabalhismo criado por Vargas e seguido por Jango. Firmaram a Carta de Lisboa, na qual se comprometiam a recriar o Partido Trabalhista Brasileiro. Em solo pátrio, tiveram negado no Superior Tribunal Eleitoral o pedido de registro do PTB, perdendo a sigla que já por tradição lhes pertencia para uma sobrinha em 2° grau de Getúlio Vargas: Cândida Ivete Vargas Tatsch, à frente de um grupo ligado a Golbery do Couto e Silva, estrategista político da Redentora. Um ato de traição a Getúlio, Jango e Brizola; aos trabalhadores. Foi a 12 de maio de 1980 que o PTB era entregue a Ivete e seu grupo. Dias 17 e 18 de maio, no Palácio Tiradentes, realizava-se o Encontro Nacional dos Trabalhistas, quando se anunciou a nova sigla do trabalhismo: PDT. Em 25 de maio, na ABI, eram aprovados, em assembléia geral, os estatutos e o programa do novo partido. (Nota do autor)
Em sua carta a Lupi, Arthur Poerner afasta-se do PDT, “partido que foi parte da minha vida ao longo dos últimos 27 anos”. Diz que não pode “referendar o encaminhamento que vem sendo dado à participação pedetista na próxima eleição presidencial”. Observa que “o governo Lula, apesar dos defeitos, falhas e omissões que se lhe possam atribuir, não é o nosso inimigo; ele é, sim, o avanço nacional possível nas atuais conjunturas interna e externa. Não reelegê-lo significa, na prática, devolver o poder às elites que impedem a participação do nosso povo desde os tempos do escravagismo, agora travestidas de neoliberais, com suas privatizações e alienações das riquezas nacionais, suas políticas de concentração de renda, sua aversão aos pobres, sua submissão aos EUA e, daí, seu sistemático boicote às tentativas de integração latino-americana”.
Poerner se recusa a contribuir “para que a primeira experiência de um homem do povo na presidência do meu país seja afogada pelas marolas alvoroçadas, hipocritamente, por falsos moralistas udeno-tucanos”.
Ninguém mexe


O primeiro a depor no inquérito sobre a denúncia de compra de votos parlamentares, em 1997, para a reeleição do presidente Fernando Henrique Cardoso será o deputado Ronivon Santiago (PP-AC), informa a Agência Câmara de Notícias, acrescentando que ele o fará provavelmente semana que vem. Essa agência promoveu há dias uma sabatina, on line, de internautas com o deputado Paulo Baltazar, vice-presidente da CPI que investiga dinheiro de caixa 2 no governo do PT. E veio à tona, entre outros deslizes do governo do PSDB, o caso do senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG), que teria recebido do empresário Marcos Valério, em 1998, dinheiro de caixa 2 para sua campanha ao governo mineiro. Faltaram perguntas de fundo de baú, relacionadas, por exemplo, ao fato de FHC ter vetado a criação de uma CPI com a finalidade de averiguar favorecimentos apontados na condução do projeto do Sivam, o de instalação de radares na Amazônia, e à privatização da Companhia Vale do Rio Doce, criada por Getúlio Vargas, mais a quebra do monopólio estatal do petróleo e a entrega de empresas nacionais ao capital transnacional. Na direção de algo ditado do Consenso de Washington com o nome de “Estado mínimo”. O presidente Cardoso, na ânsia de não deixar pedra sobre pedra do rico legado de Vargas, fez, ainda, várias tentativas para acabar com as Leis Trabalhistas. E a respeito de tudo o que fez não vacilou em considerá-lo coisas do passado, significando que tudo aquilo – compra de votos, mensalão e afins de sua era - já pertencia à História. Ninguém mexe.

sábado, 29 de novembro de 2008

Os fantasmas de lençol (1)



A primeira operação de guerra psicológica dos Estados Unidos na América Latina e o Caribe, se não das primeiras operações, foi desfechada contra Cuba, entre fins do século XIX e começo do século XX. Explicada em 1906 pelo então presidente Franklin Delano Roosevelt, na III Conferência Pan-Americana, que se realizou no Rio de Janeiro, deste modo:
“Não temos outra saída que não seja a intervenção. Isso convencerá os idiotas suspeitos na América do Sul de que, quando desejarmos, poderemos intervir, e que nós estamos sedentos de terras”.
A Revolução Russa não havia acontecido ainda. Portanto, aquele tipo de guerra que crescera na estufa da Doutrina Monroe, doutrina concebida em 1823 pelo presidente James Monroe(2), era por assim dizer meramente pragmática, sem o húmus ideológico, ou contra-ideológico -- quando se tratasse de ideologia comunizante --, que alimentaria mais tarde o jardim-suspenso da política do big stick; esta política tornou-se o livro de cabeceira da CIA.
Mas é somente a partir dos anos 50, no início da década, que os Estados Unidos pegam na tesoura, fazem os olhos no lençol, vestem-no e saem às ruas da noite latino-americana encenando a grande ameaça ao nosso continente: o comunismo. O fantasma de lençol transitou primeiro na Guatemala, por causa do nacionalismo (traduzido como marxismo) do governo Jacobo Arbens, que tivera o topete de substituir, no poder local, a United Fruit Company. A guerra psicológica já incorporando, a um tempo, ideologia e o big stick. Assim, a dar-se crédito ao que publicou a revista Stern, editada na Alemanha Ocidental, para o assalto à Guatemala de Arbens e seus compatriotas a CIA estabelecera “campos secretos” de treinamento de mercenários em Honduras e na Nicarágua.
Isso, obviamente, muitos anos depois do assalto ao México, que teve como pano de fundo a famosa campanha Hearst, empreendida através de uma cadeia de jornais de propriedade daquele capitão de imprensa, em especial contra Pancho Villa.
Na passarela da boa vizinhança já desfilaram semblantes vários de dominação (periférica) para autopreservação da comunidade de interesses do filho gigante da Inglaterra, alguns bem charmosos, como a Aliança para o Progresso. Arrancaram aplausos e/ou aleluias a Doutrina Johnson, a Doutrina Nixon -- a do nixonicídio segundo o Prêmio Nobel chileno Pablo Neruda -- a Doutrina Ford etc. No primeiro quartel do século XX o então presidente Wilson, com mandato até 1921, chegara a dizer que “o maior nacionalista é aquele que quer ver sua pátria (a dele, naturalmente) encabeçando todos os Estados do mundo”.
Brasil, Bolívia, Uruguai, Chile... No livro Os Estados Unidos e o Chile: o imperialismo e a derrubada do governo Allende, escrito a quatro mãos, seus autores, o norte-americano J. Petras e o australiano M. Morley, observaram:
“Washington realizou com sangue frio uma política de bloqueio, sabotagem e outras formas de luta dirigidas para a derrubada do governo legalmente eleito. (Informações baseadas em depoimentos de dirigentes da CIA e de outras organizações prestados à Subcomissão para Assuntos Interamericanos do Congresso dos EUA são encontradas em já extensa bibliografia, por exemplo na obra de K. A. Katchaturov, editada pela Ciivilização Brasileira, A Expansão Ideológica dos EUA na América Latina).
E pensar que a chamada guerra psicológica -- hoje acionada por Washington na América Latina, paralelamente, quando não à diplomacia do dólar (que consiste na substituição de projéteis por capital), à diplomacia militarista (que se rege pela política do big stick) -- teve origem na Inglaterra, um reino que em guerra contra a República Argentina, e não contra uma junta militar, pela ótica bastante estranha de pequena parcela, ainda bem, da imprensa brasileira, abriga um regime civilizado. Foi de lá que em princípios do século XIX partia mais uma expedição de “anjos da paz”, como os ingleses se intitulavam, rumo ao Atlântico Sul, propondo-se a “libertar” os nativos da região -- eles aportaram em Montevidéu -- da “escravidão” de Espanha, “essa nação arrogante e vendida”, conforme escreveram num jornal bilíngue, em inglês e espanhol, o Southern Star, que se apressaram a lançar após o desembarque. “Os ingleses chegam não como conquistadores, mas como defensores” -- publicaram. Estava declarada a guerra psicológica.
Talvez este episódio baste ou sirva para explicar a virtual solidariedade da Espanha com a Argentina, no momento atual, tendo o chanceler espanhol Jaime de Pinies nas Nações Unidas considerado a posição britânica no conflito pelas Malvinas um “grave erro histórico”. Para a embaixadora dos Estados Unidos Jeane J. Kirkpatrick(3) no Conselho de Segurança da ONU, “nós temos uma velha aliança, e mais que isso, as mais estreitas relações de amizade com a Grã-Bretanha, país de que derivam nossas instituições políticas, legislativas e lingüísticas”. E para o embaixador do Panamá Jorge Illueca, o sacrifício de soldados argentinos, os tombados em batalha, “não será em vão, porque desta crise emergirá uma nova América Latina”.
Aí é que o carro pega, e começa a grande guerra ideológica, à sombra de uma “velha aliança”, dentro da história do bom filho à casa torna: a casa da mãe Inglaterra. Para essa guerra, tão ou mais suja que a das Malvinas, os povos latino-americanos têm de estar alertas.Os fantasmas de lençol não dormem.

(1) O Fluminense, caderno Encontro, Autor e Livro, 30 e 31 de maio de 1982
(2) Cumpriu dois mandatos presidenciais, de 1817 a 1825; aparece na galeria de presidentes, na Casa Branca, como democrata-republicano.
(3) Representou os EUA na ONU de 1981 a 1985, no 1º governo de Ronald Reagan.

A poesia acampou no Século de Drummond



A poesia acampou no
Século de Drummond*



Com uma musa que acabou numa feira livre de Espanha



À sua hora, Goethe notava que todo poema era de circunstância, e já no rescaldo da II Grande Guerra, tendo rebentado a Revolução Industrial, o poeta da Resistência francesa, Paul Eluard, a reconhecer, a cultivar, a desenvolver no circunstancial algo que se transporta “do particular ao geral.” Para Eluard, que adotara Liberté por musa maior, escrevendo-lhe o nome sur l’horizon, não a liberdade de circismo romano e sim a presidida em essência pelo direito inalienável do Homem ao pão e ao trabalho, a circunstância exterior deve ajustar-se à interior, como se o poeta por si mesmo a tivesse produzido; de l’horizon d’un homme à l’horizon de tous.
Não parece ser outro o núcleo de raciocínio de que Carlos Drummond de Andrade, agora aos 80 anos bem completados, se nutre desde as primeiras publicações em livro: Alguma Poesia (1930), Brejo das Almas (1934), Sentimento do Mundo (1940), A Rosa do Povo (1945).
Todo povo tem sua rosa, e a interpretação e/ou projeção drummondiana deste componente da flora política reflete uma consciência por igual política, conquanto, e necessariamente sim, adaptada ao (anti) metro peculiar da arte, sem o “ismo” dos montes Parnaso – motivo para reavaliações estéticas que sejam, baseado no fato de que por lá pastavam cavalos com asas, um deles o Pégaso, fruto do sangue jorrado da cabeça de Medusa: decepada por Peseo, que empunhara o escudo de Minerva. Se pastavam, existiam; e por que duvidar então da ubiquidade das musas! Umas, líricas; outras, heróicas.
Assim também são os bois do fazendeiro do ar.

Deus já andava triste, a se perguntar por que fizera o mundo, os anjos não disfarçando aquele olhar embora um tanto maroto de reprovação – as plumas caindo: “A graça, a eternidade, o amor” – quando Drummond encontrou-se pela primeira vez com José. Não o de versículo, este ainda que unibíblico e seriamente envolvido no caso da vinda do Messias feito cada boi do continente itabirano, um continente suspenso – circum-ambiente, no entanto inviscerado na realidade social. Mas o José “sozinho no escuro”, anônimo e múltiplo, desses de linha de produção econômica, com passado e presente de chão batido e um futuro que mais tarde se saberia ser paradisíaco. Literalmente, a Nova casa de José, o azul das paredes desbotado, ao menos na chegada.
O poeta de Itabira tinha armado coisas além de uma equação formal. Não se fizera boxeador da lingüística. E nem podia ter agido de outra maneira, porque o José “sem nome”, ou com uma profusão de nomes – portanto de difícil qualificação, desencantara-se com os adjetivos de uma retórica tão do paladar de classes dominantes.
Logo, Drummond não desertou. Não esqueceu que “o espião janta conosco”. O boi e o anjo, de mãos dadas na sua poesia. Ele sabe, e teve o tutano de proclamar que o boi é anterior ao tráfego. O boi José inclusive, ou principalmente este. E que a sua Itabira do epicentro das injustiças sociais poderá um dia levantar-se e, tendo-se invertido as posições, cuspir todas as suas inquietações, todas as suas perplexidades.
O boi, o anjo: estrelas de primeira grandeza na simbologia drummondiana. Estanques apenas a olho nu, e até mesmo neste plano, o do pisca-pisca, como se o poeta estivesse alertando para certas verdades escamoteadas em caminho de terra firme; no meio, a pedra que chegou a provocar menos tropeços do que palavrão. Em termos precisos os dois símbolos-mores da obra de Drummond, entre os quais pode-se admitir que fique a pedra como referencial de vida, ou de um ceticismo singular – que incute esperanças, são projeções de comportamento e mobilidade humanos, de tudo em movimento. Daí esta síntese de A Rosa do Povo:

No beco, / apenas um muro,/ sobre ele a polícia./ No céu da Propaganda / aves anunciam / a glória./ No quarto, / irrisão e três colarinhos sujos.

Do céu devastado de Eluard ao céu desfeito, porém logo refeito, de Drummond. Não o céu da propaganda, naturalmente, com o qual o poeta nada tem que ver.
E certo é que a poesia acampou no Século de Drummond. Com Lorca, Neruda, Alberti, Vinícius, João Cabral incelençando Vida e Morte Severina. Também nascido em 1902, como Carlos Drummond de Andrade, e que recentemente, na Espanha, ocupou a presidência de honra do VI Congresso Mundial de Poetas, evento, aliás, praticamente ignorado no Brasil (será por causa do vernáculo? ou, ipso facto, de alguma dúvida mesmo a respeito de nossa localização geográfica?),
Rafael Alberti a panfletar na virada dos anos 50:

Pueblos del mundo, pueblos! El poeta / hoy ya no canta, grita enfurecido.

Pablo Neruda não faria por menos em louvor da Revolução chilena, na sua Incitação ao Nixonicídio, num livro que saiu pela Francisco Alves em tradução de Olga Savary.
Do maranhense Ferreira Gullar tivemos o Poema Sujo; de Affonso Romano de Sant’Anna, Que país é este? Reeditam-se antologias de Manuel Bandeira, Cecília Meirelles com o seu Romanceiro da Inconfidência, Vinícius de Moraes com a sua Arca de Noé em separado e já em 11ª edição pela José Olympio, antologiados também Mauro Motta, Mário da Silva Brito e o próprio aniversariante, CDA, entre muitas outras vozes. Não faltam os recados de um Thiago de Melo, de Geir Campos – este capixaba que depois de uma Tarefa encontrou tempo para um Cantar de Amigo ao Outro Homem da Mulher Amada -, de Ledo Ivo, alagoano de Maceió, que aprendeu “a ler a terra” (ver A Noite Misteriosa, ed. Record) e que, por isto mesmo, não discrimina entre o cavalo e o seu ferrador. Os cachorros perseguem os ratos do mato / e promulgam a lei do mundo. Os perus em busca do sol no terreiro. Como os demagogos nos comícios e os agonizantes nos hospitais / eles falam uma linguagem espalhafatosa, limitada pela morte. Demonstrações de exercício poético sem compromissos escolásticos, assegurada portanto a integridade estilística. A evidência, a constatação de uma autodefesa contra modismos, estes, no geral, de natureza cíclica. E o modista alimenta uma única pretensão, que é a de inovar – na superfície do texto. No entanto, nada de novo sobre a terra, exceto boas semeaduras, que puxam as boas colheitas, o que, aliás, já é tudo.
De qualquer forma, não se despreze nunca o testemunho de um poeta, contanto que o poeta em referência tenha verdadeiramente algo a dizer e em linguagem adequada. Boa poesia, dessas que rasgam superfícies como em lúcidos vôos indicadores de caminhos ou denunciadores de desníveis para correção nos foros competentes do mundo, não costuma sair aos borbotões; exige, para se revelar, certa disciplina, ou certo jeito, mas sem que tais imposições da própria arte derivem, em primeira água, de discutíveis preceitos de lavor acadêmico.
Poetas de sentinela até na Amazônia, por toda parte. E a Bahia transporta-se até a Nigéria pela voz de Antonio Vieira da Silva em Song’s of África: Cava Zé / esta terra dura./ Cava Chico / tua sepultura./ Anda Joana / vê que desventura./ Remove sempre,/ esta terra é tua.
Há quem ande “em busca de raios e girândolas”, como Roberto Pontes em Memória Corporal (Antares). Jorge de Souza Araújo, ao traçar Os Becos do Homem, descobriu que “ao homem só resta reencontrar-se / nas retinas do mundo.” Na Dança das Descobertas, pela Imprensa Oficial de Belo Horizonte, Elias José vê no “espelho-olho do ditador” a lâmina, o punhal, o gelo, a compra e a venda, mas também o pesadelo. Em Corpo de Delito & Prosipoemas, de Ayrton Pereira da Silva, a “musa de plantão”: De que valem estas flores / se fanadas ficarão /no olvido dos desamores?
Sérgio Ricardo, em Elo: Ela (ed. Civilização Brasileira), rabisca uma careta no papel e vê “tudo atrasado – prestação... liberdade... E o que dizer da eterna transferência da decisão?.”
Estão, ainda, acampando, com lançamentos recentes: Nair Baptista Schoueri, que em Estrela Variável (ed. Fontana) vê o Homem “criança perene – sempre a brincar e encontrando / cobras entre roseirais / e beija-flores morrendo.” Sônia Sá em O Outro Lado de Mim (Argus) à procura de identidade: “Vou recolhendo idéias /no emaranhado de seres / e de coisas./ Disseco em aço / mil fraquezas e poderes,/ em torvelinho de agruras,/ devaneios e conjecturas.” O Cárcere de Maria José Braga Cavalcanti de Albuquerque em Diga um verso bem bonito: “Do fundo deste limbo / esperança nenhuma descortino,/ não há penumbra repousante / nem asa noturna que se abrande / ou se descobre em sono./ Fixo, tortura-me o olho redondo / da crua lâmpada cruel.” Marina Rangel, em Pedras d’Água, ouve o conselho das estrelas: “Não leve a vida chorando / que ela dura um momento.” No Vidro da Aurora de Marta Gonçalves – “o céu azul e o canto suave de paz correndo no corpo.”
Enquanto isso, como a situação não está sopa, por causa das contradições de uma reciprocidade de dependência entre países ricos e países pobres, nem as musas escapam dos tentáculos da “máquina do mundo.” Numa feira-livre de Espanha, bem perto do Cemitério de Alicante, onde repousam os despojos de Miguel Hernández, a musa física deste poeta que lutou na Guerra Civil e que deixou, entre outros livros de alta expressão das letras hispânicas, Vientos de Pueblo, pode ser encontrada atrás de uma banca de verduras e legumes. A musa-feirante, que se chama Josefina Manresa, luta desta maneira por sua própria sobrevivência.
Coisa destes fins do Século de Drummond. Ainda bem que existem o boi e o anjo. Formam um bom par: sem c a n g a.


*O Fluminense, capa do caderno dominical Encontro, 1° de novembro de 1982
“Naquela noite o clarim
não pediria silêncio” -
contou João Cândido ( * )


"Seria toda Revolução uma aurora?"
Oswald de Andrade

À leitura de mais um livro-documento de Edmar Morel -- A Revolta da Chibata, em 3ª edição pela Graal --, salta das entrelinhas um raro e edificante detalhe, em face do invólucro dos dias presentes. É o reconhecimento da figura clássica do boêmio como espectador acidental porém consciente, sobretudo humano, de fatos e/ou particularidades às vezes basilares aos próprios fatos. Da história de uma vida, de um grupamento social, de uma nação.
Pois aconteceu terem sido dois boêmios desse porte que puderam captar, a espaço de anos e numa associação perfeita, em suas andaduras pela noite, um a ousadia e o outro a humildade do marinheiro que, de passagem, galgara o almirantado na chefia da revolta de 22 de novembro de 1910 na Baía de Guanabara contra o regime escravo que persistia na Armada.
Oswald de Andrade, a 12 anos de seu édito antropofágico, ainda cheirando à atriz de teatro com quem se trançara numa pensão do centro do Rio, experimentava agora numa enseada da Glória, ao se ver a poucas braçadas de três vasos de guerra dirigindo-se para a saída do porto, um frêmito diferente: a sensação de que estava diante de uma revolução. E como que se inclinasse para o espelho do mar perguntou-se: “Seria toda revolução uma aurora?”.
Amanhecia.
O outro boêmio -- assim referido por Morel -- era o repórter Aôr Ribeiro, que quarenta e três anos depois da histórica revolta, “numa madrugada de março de 1953”, no cais do Mercado, surpreendia um velho marujo despedindo-se, com um beijo no casco, do encouraçado Minas Gerais, que acabara reduzido à “condição de um montão de ferro velho”, para venda como sucata, mas que nem por isso deixava de ser “um pedaço de sua vida”.
Esse marinheiro, dir-se-ia também um boêmio muito acima do copo, chamava-se João Cândido, em quem o tenente Felipe Moreira Lima viu “um Nélson dos morros... que não arrasara a Capital** por humanidade. E um jornal argentino reivindicava para Corrientes a glória de ter sido a terra de nascimento do herói”. Gaúcho da Vila da Encruzilhada do Rio Pardo, praça desde 10 de dezembro de 1895, da 40ª Companhia do Corpo de Marinheiros Nacionais, João Cândido, o Almirante Negro -- como ficou conhecido na época da insurreição naval contra a chibata e que muitos anos depois a Censura deixou passar à história da Música Popular Brasileira como o Navegante Negro vetando o Almirante porque ele não precisava mais de cartaz...-- assim relatou para Edmar Morel a deflagração do movimento:
“O sinal seria a chamada da corneta das 22 horas. O Minas Gerais, por ser muito grande, tinha todos os toques de comando repetidos na proa e popa. Naquela noite o clarim não pediria silêncio e sim combate. Cada um assumiu o seu posto e os oficiais de há muito já estavam presos em seus camarotes. Não houve afobação. Cada canhão ficou guarnecido por cinco marujos, com ordem de atirar para matar contra todo aquele que tentasse impedir o levante.
“Às 22h50min, quando cessou a luta do convés, mandei disparar um tiro de canhão, sinal combinado para chamar à fala os navios comprometidos. Quem primeiro respondeu foi o São Paulo, seguido do Bahia. O Deodoro, a princípio, ficou mudo. Ordenei que todos os holofotes iluminassem o Arsenal de Marinha, as praias e as fortalezas. Expedi um rádio para o Catete, informando que a esquadra estava levantada para acabar com os castigos corporais(...)”.
A noite de 22 de novembro de 1910 -- conta Morel em seu livro -- foi marcada por deslumbrante recepção ao novo presidente da República, marechal Hermes da Fonseca, no Clube da Tijuca, enquanto João Laje, um dos maiorais de O Paiz, em sua residência, no bairro de Botafogo, oferecia um jantar aos oficiais do Adamastor. O marechal, ao lado de todo o seu Ministério, ouvia a ópera Taunhàuser, de Wagner, quando um tiro de canhão sacudiu a cidade. Cinco minutos depois um outro ecoou pelo Rio. Vidraças, agora, eram quebradas em Copacabana e no Centro.
Chegaram a atribuir a chefia do levante ao almirante Alexandrino de Alencar, ministro da Marinha no governo anterior, de Nilo Peçanha, que recebeu em audiência, no Catete, o marinheiro (de 1ª classe) que assistira na Inglaterra, com alguns companheiros, à fase final da construção do Minas Gerais, nos estaleiros de New Castle, inteirando-se de todo o seu funcionamento. E João Cândido pedira ao então presidente que abolisse o açoite na Armada, o que já havia sido feito no papel, ainda que pela metade, no segundo dia da República, pelo decreto nº 3, de 16 de novembro de 1889, previsto, aliás, na própria Constituição Imperial.
Contudo, as penas cruéis continuavam em prática em todos os navios de guerra e no Batalhão Naval. Isto, que Morel não chega a dizer, nem insinuar, até mesmo porque escreveu A Revolta da Chibata baseado única e exclusivamente em documentos e testemunhos autênticos, com toda a imparcialidade que dignifica o repórter-historiador, embora esta sua postura lhe tenha custado a cassação dos direitos políticos e conseqüente desemprego, leva inclusive a pensar em espécie de insubordinação contra o texto de uma lei.
O almirante Alexandrino de Alencar estava a bordo do Principessa Mafalda, transatlântico italiano, a caminho da Europa. Portanto, logo concluiu o estado-maior de Hermes da Fonseca na noite de Wagner e Edmar Morel explicaria em seu livro: “A sublevação, na verdade, fora arquitetada nos estaleiros da Armstrong, onde a João Cândido e outros cabeças do motim foram dadas hábeis e proveitosas lições de navegação”.
Transcreve a mensagem dos rebeldes: “Não queremos a volta da chibata. Isso pedimos ao presidente da República, ao ministro da Marinha. Queremos resposta já e já. Caso não tenhamos, bombardearemos a cidade e navios que não se revoltarem. Guarnições Minas, São Paulo e Bahia”.
Apesar de longa espera pela abolição da chibata e das tentativas de resistência do Governo através do cruzador Barroso e do caça-torpedeiro Tymbira, João Cândido e seus homens não passaram do ultimato. E tinham a cidade aberta a uma fragata invencível em águas da Guanabara, da terceira maior potência naval do mundo. Quando se aperceberam disto, os homens do Governo cuidaram de acenar com anistia para os amotinados, no que eles acreditaram.
João Cândido estava mesmo do lado do Brasil, como atesta o seu último rádio, transmitido ao marechal Hermes da Fonseca: “Confiamos na vossa justiça; esperamos, com o coração transbordando de alegria, a vossa resolução, pois os culpados da nossa rebelião são os maus oficiais da Marinha, que nos fazem escravizados deles e não da bandeira que temos. Estaremos ao vosso lado, pois não se trata de política e sim dos direitos dos miseráveis marinheiros”.
E uma vez em terra, após os interrrogatórios de praxe, embora anistiados, “foram metidos em masmorras medievais na Ilha das Cobras, onde vários morreram asfixiados (16 marinheiros) com cal virgem (após terem clamado por água). O chefe, aquele que acabou com a chibata na Marinha, foi parar no Hospital dos Alienados” -- consta no texto de Morel. Por outro lado, que “Rui Barbosa aparecia como inspirador e redator oficial dos principais decretos de Deodoro”, entre eles o que instituiu a Companhia Correcional (referendado pelo próprio jurisconsulto e grande orador, sempre na defesa -- da tribuna -- dos fracos e oprimidos) limitando, no último artigo, em 25 o número de chibatadas como punição por “faltas graves”.
Rui Barbosa a bradar: “Extinguimos a escravidão sobre a raça negra; mantemos, porém, a escravidão (sic) da raça branca entre os servidores da Pátria”.
Mas não deve ter sido bem assim. A julgar pelo que escreveu um brazilianist daquele tempo, James Bryce, testemunha ocular do motim, ao contrário de Rui. Num trabalho que publicou sob o título South América Observations and Impressions (Observações e Impressões da América do Sul), Bryce afirma que “as tripulações eram quase inteiramente de negros”, e acrescenta: “Somente alguns homens brancos foram deixados a bordo. Eram engenheiros ingleses, detidos forçadamente com ordem de trabalhar nas máquinas. Os navios de guerra estavam liderados por um negro, chamado João Cândido, um homem de energia e resolução, que se tinha apoderado da situação, ordenando pôr na água todas as bebidas do Minas Gerais”.
Não estava muito acima do copo?!

( * ) O Fluminense, caderno Encontro, Autor e Livro, 20/21 de janeiro de 1980
Tal pai, tal filho*
*UOL EM 8 de março de 2009: EUA ficam mais pobres 16,5 trilhões de dólares e países emergentes terão falta de 700 bilhões de dólares, afirma o Banco Mundial

Eleito em dezembro de 2000 para ocupar a Casa Branca, George W.Bush passou a receber cumprimentos planetários, o que era natural. O governo brasileiro respirou aliviado, na convicção de que, com a derrota do democrata Al Gore, bons ventos haveriam de soprar para o hemisfério Sul favorecendo acordos comerciais com Washington em igualdade de condições. O então presidente Fernando Henrique Cardoso apostava no republicano, a ele se dirigindo em mensagem de congratulações, nestes termos: “Ao colocar as relações hemisféricas como uma das prioridades de sua agenda de política externa, vossa excelência dá-nos a certeza de que, todos juntos, poderemos efetivamente fazer deste o Século das Américas”. Acrescentando: “As condições para isso estão postas, e é com justificável expectativa que nos dispomos a trabalhar para transformar em realidade essa generosa perspectiva”. O presidente Cardoso destacou o aprofundamento do diálogo Norte-Sul como sendo a chave para a “redução das desigualdades” e a “promoção da prosperidade compartilhada nas Américas”. Por estas palavras de Cardoso, teve-se a impressão de que o Brasil caminhava para a construção da Alca, Área de Livre Comércio das Américas. Seis anos antes da eleição de Bush, filho, em 1994, o México firmava o Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos e Canadá, o Nafta. Passam-se mais de dez anos de livre comércio com os EUA e se lê agora no La Nación, de Buenos Aires: “Observadores constatam que milhões de mexicanos ainda não saíram da pobreza”. E foi justamente em 1994, com o ingresso do México no Nafta – uma ponte para chegar-se à Alca pelos planos de Washington, que um grupo de nações estabeleceu como meta estrutural do novo bloco o ano de 2005. Até dar-se o naufrágio na IV Cúpula das Américas, há dias realizada em Mar del Plata. Lá estava o dedo de Hugo Chávez, Washington não tinha a menor dúvida. Assim, a patrocinar o simples apeamento de Chávez do governo da Venezuela, certamente pensaram à saída do Salão Oval, seria melhor se o tivéssemos feito desaparecer de cena de uma vez por todas. Talvez como Omar Torrijos (1929-81) no Panamá, desaparecido em acidente aéreo até hoje discutível. Ou como Manuel Antonio Noriega, que por ter trabalhado para a CIA sob a direção de George Bush, pai, e decidido, mais tarde, servir ao seu Panamá contrariando interesses norte-americanos, já quando Bush alçara-se à presidência dos EUA, passou a sofrer implacável perseguição a ponto de agentes secretos o envolverem com o narcotráfico transformando o seu bunker em depósito de drogas para a imprensa documentar. Os EUA desembarcam tropas na Cidade do Panamá, matam covardemente centenas de civis que ocupavam o bairro El Chorrillo e só dão como missão cumprida quando põem as mãos no general Noriega, levando-o preso para julgamento, e condenação, na Flórida. E Bush, pai, não fizera segredo de sua gana de “eliminar Noriega do quadro político da América Latina”. Bush, filho, não fica atrás do pai em se tratando de Hugo Chávez com a proposta da Alba, Alternativa Bolivariana para as Américas, a um passo, entretanto, de entrar para o Mercosul. A Alba seria, pois, a mola propulsora de um projeto da Venezuela de alianças em torno do seu petróleo com países da região. Mas sabe-se que Chávez é o maior obstáculo encontrado no caminho da Alca. Isto explica o perigo a que estaria se expondo, sobretudo por sua atuação na Cúpula de Mar del Plata, inclusive na chamada Contracúpula. A propósito do golpe de Estado frustrado de 2002 na Venezuela, documentário exibido na televisão brasileira mostrou a clara participação de Washington em manifestações de rua em Caracas, nas quais os golpistas não conseguiram esconder dos cinegrafistas bandeiras norte-americanas..

Sangue de Castela

Sangue de Castela

Exaltar “respeitável tradição diplomática”, como a gestada pelo barão do Rio Branco, apenas para atacar avanços recentes de uma esquerda latino-americana que passou a tirar o sono do Império Americano, e de seus porta-vozes midiáticos, traduz-se por demonstração inequívoca de desespero.

Sobre a questão das reservas de gás natural e petróleo nacionalizadas pelo governo da Bolívia nesse 1º de maio de 2006, em cumprimento à vontade popular expressa em referéndum vinculante, de 18 de julho de 2004, O Globo (7/5/06), em editorial, fala que a diplomacia que atualmente “dá as cartas” é a do “berro, das propostas megalômanas envolvidas em legendas “bolivarianas” (aspas do editorialista) -- e, já agora, da truculência pura e simples”. Acrescenta que, “não por acaso, figuras como o presidente Morales gravitam para a órbita do coronel Chávez, e não para a linha brasileira”.
E qual seria a linha brasileira? Na mesma edição do Globo, Tereza Cruvinel, em Panorama Político, diz ter ouvido do chanceler Celso Amorim que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva “não pensa em fazer nenhuma revolução bolivarista ou socialista, mas governar um país capitalista dentro de regras capitalistas”.
No editorial por título Herança perdida, O Globo sugere (¡Atención, presidente José Luis Rodríguez Zapatero!) derivarem do “sangue castelhano” as “retóricas estridentes” de figuras como o presidente Hugo Chávez, da Venezuela -- o mais fustigado de quantos galgaram d e m o c r a t i c a m e n t e o poder na América Espanhola determinados a varrer de seu solo os velhos e contumazes exploradores externos de seus recursos naturais.
Se os Estados Unidos absorveram da Inglaterra valores ainda que pouco éticos (... “estamos sedentos de terras”, justificava o presidente Franklin Delano Roosevelt a doutrina intervencionista de seu país, em 1906, na III Conferência Pan-Americana, realizada no Rio), mas que os impulsaram a assumir a posição de superpotência, por que negar agora à América sangüínea o direito de integração politicamente correta?
Há uma diferença muito grande em política externa entre os Estados Unidos, seja de que partido for o seu presidente: republicano ou democrata, e a Venezuela que Chávez elevou a República Bolivariana ou a Bolívia que Morales, o primeiro indígena da História da América Latina eleito chefe de Estado, começou a emancipar para seu povo e sem avançar um palmo além de suas fronteiras. Ao contrário do que fizeram, e ainda fazem, os Estados Unidos no lombo de sua História.
Estigmatizam toda e qualquer iniciativa de Hugo Chávez, como a de Petrocaribe, do fornecimento de petróleo aos caribenhos a preços preferenciais: primeiro passo para a criação da Petroamérica, sem que faltem vontade política e fundos suficientes para sustentar a “aliança energética” que se pretende consolidar na América Latina e o Caribe, segundo o governo da Venezuela.
E não param de criticá-lo. Por ter Chávez anunciado como pilares desse projeto o petróleo venezuelano e a medicina cubana, reconhecidamente uma das mais avançadas, e generosas, do mundo.
Por ter ele ousado comprar bônus públicos argentinos por mais de US$ 950 milhões como lance inicial para a criação do Banco del Sur.
É nessas horas que George W. Bush... (Bush, não; não ficaria bem), que Condoleezza Rice, princesa guerreira, para os íntimos, deve sentir as dores do parto.

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

O cérebro: a cavaleiro do coração

o fundamento de uma
sólida felicidade
humana segundo Pavlov



O cérebro: a cavaleiro do coração (**)



O predomínio da dor sobre o prazer, dentro da velha conceituação teológica de dor como sendo o caminho que invariavelmente levaria o Homem a realizar-se, é de supor que remonta ao advento das guerras, já que historiadores imaginam terem sido os árias primitivos uma comunidade feliz, do primeiro ao último ano de vida.Aflorou a civilização, mas temperada no sangue das lutas fratricidas. Descartes disse:”Para alcançar a verdade é preciso, uma vez na vida, desfazermo-nos de todas as opiniões que recebemos e reconstruir, de novo e desde os fundamentos, todos os sistemas de nossos conhecimentos.” Foi o que de certo modo fez Ivan Petrovitch Pavlov, Prêmio Nobel de Medicina – 1904.Ao assentar a base dos conhecimentos exatos sobre a função nervosa superior, no princípio deste século**, dissecando o mecanismo fisiológico e não puramente psíquico dos reflexos (aqueles que nascem conosco e os que adquirimos durante a vida) em face dos estímulos do meio-ambiente (positivos e negativos), Pavlov apresentou o cérebro humano como bem parecido a uma fábrica. Senão vejamos o que ele diz em um dos estudos reunidos sob o título geral Os reflexos condicionados aplicados à Psicopatologia e à Psiquiatria (Ediciones Pueblos Unidos, Montevidéu, 1906):“Se todo o sistema nervoso central se divide em duas partes – aferente e eferente -, o córtice dos hemisférios representa a seção aferente isolada. Nela se realizam exclusivamente a análise e a síntese superiores dos estímulos recebidos, e, dali, as combinações já concluídas se dirigem à seção eferente. Dito de outra forma, a seção aferente é ativa, por assim dizer criadora, e a eferente é passiva, executiva.”Assim como uma fábrica é movimentada por projetistas e examinadores ou selecionadores da matéria-prima e pelo pessoal encarregado de executar o plano de obras, o nosso cérebro está freqüentemente criando reflexos em função dos estímulos que recebe do meio que o circunda e que, uma vez analisados, são entregues às suas células operárias. Se o empregado braçal é o último a responder pelo fracasso de um empreendimento, pelo que são diretamente responsabilizados os organizadores, o cérebro funciona regularmente até o ponto em que se mantêm em certo equilíbrio os processos de excitação e inibição: os pratos da balança geral do organismo. Isto, porque o cérebro comanda todos os demais órgãos, vinculando-os ao infinito mundo circundante, da mesma forma que à fábrica é atribuído o papel de instrumento propulsor do bem-estar social.Para Pavlov, a quem já cognominaram o Príncipe dos Fisiologistas, o cérebro, a rigor, observado de todos os ângulos, está a cavaleiro do coração, porque a função nervosa superior é a que “distingue o Homem, de forma categórica, dos animais,colocando-o infinitamente acima de todo o reino animal.” (Aplicação ao Homem de dados experimentais obtidos nos animais).Ante a proclamação pavloviana de que eram fundamentalmente fisiológicas e não psíquicas as relações humanas, começaram a evaporar-se os castelos de pensadores cujas especulações bem poderíamos medir por estes versos de Rucker em versão de Antero de Quental:O coração tem dois quartos./ Neles moram, sem se ver,/ Num a Dor, noutro o Prazer./ Quando o Prazer, em seu quarto,/ acorda cheio de ardor,/ no seu adormece a Dor./ Cuidado, Prazer! Cautela!... / Fala e ri mais devagar... / Não vás a Dor acordar...Originariamente, a dor e o prazer moram lá em cima, no cérebro, e nem sempre em quartos separados, travando uma batalha multissecular. O que não pensará o Homem de tantas civilizações alicerçadas no sofrimento, daqui a não se sabe quanto tempo, depois que houver abdicado inteiramente da condição animal? Já de agora, o alto pensamento científico repele, em tese, toda uma escala de idéias encerradas na expressão poética de que “quem passou pela vida e não sofreu foi espectro de homem (...)”O catecismo dos idealistas dominou gerações a fio inculcando-lhes, nos grandes hemisférios cerebrais, o sofrimento como sendo o princípio de todas as coisas e o único meio para a consecução de um fim com dignidade. Mas essa voragem de reflexos criados e recriados na mente humana por estímulos fantasmagóricos serviu, pelo menos, para demonstrar que o cérebro é capaz de tudo, até de inverter os papéis mais caros da humanidade: fazer a dor sobrepor-se ao prazer.Foi perante o Congresso Médico Internacional de abril de 1903, instalado em Madri, que o soviético Ivan Pavlov expôs pela primeira vez ao mundo científico o seu trabalho sobre Psicologia e Psicopatologia experimental nos animais.“Esta será, antes de tudo – assim dirigiu-se ele ao plenário – a história de um fisiólogo que passou dos temas puramente fisiológicos ao domínio dos fenômenos chamados comumente psíquicos.”Sem entregar-se a evoluções verbais, desde logo afirmou que localizara “condições de caráter psíquico” entre as glândulas digestivas, tendo-se ocupado, durante muitos anos, da atividade normal desta função. Referiu-se, então, em particular, às glândulas salivares como sendo um órgão aparentemente de importância muito relativa mas que, estava convencido, se converteria no “objeto clássico das investigações do novo gênero.” Da premissa de que, “se se dá ao animal tipos de alimentos duros, secos, ele segrega muita saliva, e, se os alimentos são ricos em água, a secreção é bem menor”, Pavlov partiu para o estudo da extraordinária capacidade de adaptação da atividade das glândulas salivares, tomando o cão por objeto das suas experiências, para concluir que nele se manifestam reflexos constantes e exatos, “reflexos que parecem revelar inteligência, porém o mecanismo dessa inteligência está exposto com toda a clareza como a palma da mão.” Assim é que explicou tratar-se o fenômeno da adaptação ou adequação de “uma excitação exterior especial, que produz uma reação especial na substância viva.” Nada viu, contudo, de particular no fator de adaptação, “salvo a reunião precisa dos elementos de um sistema complexo entre si e desse complexo com o meio exterior”, tal como acontece a qualquer corpo inanimado – que só e x i s t e “graças ao equilíbrio de átomos isolados e de grupos de átomos entre si e de todo o seu conjunto com o meio exterior.”O princípio fundamental do organismo, seu equilíbrio interior e exterior, descoberto por Pavlov, em 1901, com base teórica nos estudos de I. Sèchenov sobre a atividade reflexa do cérebro humano, foi mais tarde consagrado como Princípio da Conexão Temporal (PCT).Não tardou que os dados colhidos das experiências pavlovianas fossem aplicados em todos os campos de atividade analítica, substituindo-se os métodos subjetivos pelos objetivos. Um pedagogo, K. Ushinski, chegara a observar que, enquanto a Medicina se apoiava “no estudo positivo do organismo humano e nos objetos da Natureza que influem nele”, a Pedagogia conformava-se “com as teorias confusas, contraditórias e fantásticas dos psicólogos sobre as quais (sic) não é possível construir nada sólido.”Em 1907 a revista Russikivrach publicava um ensaio do pediatra N. Krasnogorski sobre a fisiologia e fisiopatologia do cérebro infantil, já quando um grupo de ginecologistas, destacando-se Velvoski, Platonov e Nikolaiev, investigava as origens das dores do parto, preparando-se para proclamar que elas não passavam de reflexo condicionado nas noivas e nas mães de quase todos os tempos, através da palavra ou sugestão. Isso, porque “a palavra – quem o diz é Pavlov – é para o homem um estímulo condicionado tão real como todos os restantes comuns a ele e aos animais e de maior alcance que qualquer outro, superando qualitativa e quantitativamente a todo estímulo condicionado nos animais.”A julgar pela tradução feita do Hebraico para o Latim e do Latim para a Língua Portuguesa, do 1º Livro de Moisés chamado Gênesis, no capítulo Tentação de Eva e queda do Homem lê-se que Deus disse à Mulher:“Multiplicarei grandemente a tua dor e a tua conceição; com dor terás filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará.”O Papa Pio XII, por ocasião de um congresso de ginecologistas realizado no Palácio Apostólico do Vaticano, aduziu que, “punindo Eva, Deus não quis proibir, como não proibiu, às mães, que utilizassem os meios que tornam o parto mais fácil e menos doloroso”, e que “a Ciência e a Técnica podem, pois, utilizar as conclusões da Psicologia Experimental, da Fisiologia e da Ginecologia – como no novo método psicoprofilático – a fim de eliminar as fontes de erros e os reflexos condicionados dolorosos e de tornar o parto tão indolor quanto possível.”Foi em 1930 que o método psicoprofilático da parturição começou a ser largamente adotado nas repúblicas soviéticas, em substituição ao universal e ao hipnossugestivo. Ante a repercussão do seu êxito no Ocidente, não demorou que o francês Fernand Lamaze fosse estagiar em Leningrado, na clínica do dr. Nikolaiev, e já de volta a Paris declarou-se entusiasmado dizendo que, em 30 anos de prática obstétrica, jamais vira coisa igual.No Brasil ele foi lançado também com bons resultados, pelo dr. Hirsch Schoor, há 13 anos, em São Paulo, e em agosto de 1955 o dr. Fernando Pedrosa Filho orientava um dos primeiros partos realizados por esse processo no Rio de Janeiro. No ano seguinte, viajava para a França, a fim de aperfeiçoar-se na clínica do dr. Lamaze.O fato é que os obstetras da escola pavloviana encaram como muito natural uma mulher dar à luz com um sorriso – se bem que depois de muito esforço – uma criança que, no caso, geralmente nasce mais sadia do que as nascidas em meio às contrações irregulares, em função do reflexo paradisíaco (medo de sofrer), porquanto a nova parturiente, entrando em atividade no trabalho de seu parto, e não caindo em passividade, está alimentando de oxigênio a seu filho.A tese de que o parto, em suas origens, teria sido indolor é robustecida pelos depoimentos de sertanistas segundo os quais as índias inteiramente afastadas da civilização não padecem no ato da maternidade. O médico Ataliba Bellizi, que há tempos percorreu várias tribos do Norte e do Brasil Central pelo Serviço Nacional do Câncer, deu-me o seu testemunho disso e de que nas mais atrasadas a jovem, tão logo comunica a seus pais que vai casar, submete-se, sem o saber, a intenso tratamento para a parturição, ao caminhar léguas e léguas e até remar contra a correnteza, diariamente, para suprir a taba.Um fato curioso que o médico-sertanista presenciou numa tribo do Sul do Pará, a Uchikring: Enquanto a mulher trabalha, o seu companheiro limita-se a flanar de um lado para outro com o arco e a flecha, a pretexto de velar pela integridade da nação. Imediatamente após o nascimento de seu filho, ela volta ao trabalho e ele se recolhe à taba, entregando-se a uma dieta que consiste em comer apenas manjuara, torrada, espécie de formiga que valeria o gosto do ácido fórmico. O índio uchikring acredita que se não observar esse regime à risca ficará estéril, depois de o acometer terrível dor de cabeça.O cérebro do gentio tem dessa coisa, que enfim não é de admirar tanto – confrontada com muita que se vê no mundo civilizado.Já dizia Pavlov que somente “o completo e exato conhecimento de nosso órgão superior, o cérebro, será nosso legítimo bem e o fundamento de uma sólida felicidade humana”.



( * ) O Fluminense, pág. 4, Prosa & Verso, suplemento literário sob a direção de Marcos Almir Madeira e Sávio Soares de Sousa, 22 de outubro de 1966 Original de FERNANDO HENRIQUES GONÇALVES então editado como Reportagem Pavloviana ( ** )(Séc.XX)